direito constitucional sylviaromano

Gênese Anticolonial do Constitucionalismo Latino-Americano
Anticolonial Genesis of Latin American Constitutionalism

Resumo
Abstract
Text
Introdução: Por que são latino-americanas as constituições?
O nascimento dos Estados Nacionais latino-americanos
As sociedades latino-americanas e as independências
A liberdade francesa e a escravidão em Saint Domingue
O Paraguai e o constitucionalismo
Considerações Finais
Bibliografia
Datas de Publicação
Histórico
Resumo
Este artigo analisa o constitucionalismo latino-americano e seu caráter anticolonial no nascedouro dos Estados Nacionais do continente. Para tanto, busca descrever as contradições sociais existentes no momento das independências, no começo do século XIX. Estuda o caráter do constitucionalismo latino-americano, utilizando exemplos das repúblicas do Haiti e do Paraguai e conclui com as dificuldades de sua implantação, que se mantém até hoje.

Palavras-chave:
Constitucionalismo latino-americano; Haiti; Paraguai; Anticolonialismo

Abstract
This article analyze Latin American constitutionalism and its anticolonial character in the birth of the continent’s national states. For that seek to describe the existing social contradictions at the time of independence, the early nineteenth century. Article studies the character of Latin American constitutionalism using examples from the Republics of Haiti and Paraguay and conclude with the difficulties of its implementation, which continues to this day.

Keywords:
Latin American constitutionalism; Haiti; Paraguay; Anticolonialism

Introdução: Por que são latino-americanas as constituições?
Há uma produção teórica muito extensa sobre o constitucionalismo latino-americano, chamado algumas vezes de ‘novo’ ou ‘neo’, mas não há consenso sobre seu início, sua gênese. Roberto Viciano Pastor1, em obra que comparte com outros autores, denomina de novo e desenvolve a ideia de que o é em relação ao constitucionalismo europeu e não a si mesmo. Assim, nega que haja um “velho” constitucionalismo latino-americano, como se o anterior fosse reprodução do europeu, portanto não merecendo o adjetivo de latino-americano. Diz ainda que o novo nasce com a Constituição venezuelana de 1999, por ser a primeira com participação efetivamente popular. Nessa concepção, a novidade é praticamente andina e entende que havia um constitucionalismo universal (europeu); em 1999, a América Latina inovou com as três constituições andinas, da Venezuela, Equador e Bolívia. Ao contrário disso, desde o início do constitucionalismo, há na América Latina uma busca permanente por alternativa local anticolonial como forma jurídica de constituir Estados Nacionais. Neste artigo será abordada apenas parte da trajetória dessa busca com os dois primeiros países a alcançarem a independência, Haiti e Paraguai, ambos claramente antieuropeus.

O que caracteriza o constitucionalismo latino-americano não é só o fato de escrever uma constituição na América Latina por constituintes da região, mas por seu conteúdo revelar formações sociais por um lado diferentes das da Europa e, por outro, com uma identidade regional. Assim, para ganhar o título de latino-americanas, as constituições têm de ter uma marcada identidade que as diferenciem das demais regiões do planeta. É necessário entender essas diferenças e identidades, nem sempre claras, já os povos da América Latina, pensados na diversidade indígena e afrodescendente, entre outras, são muito vastos apesar dos Estados serem tão parecidos entre si. O processo colonial sofrido aproxima todos os países da região; eis um primeiro ponto de identidade, a formação colonial. O segundo ponto, derivado do colonialismo, é a forma de exploração do trabalho, escravagista e genocida, e o terceiro é a profunda exploração extrativista da natureza, seja mineral, seja vegetal, o que implica em um controle antipopular da terra e da natureza.

No início do século XX, com a criação dos Estados de Bem-Estar Social, houve uma mudança na teoria constitucional europeia que passou a defender a existência de uma força normativa2 nos textos constitucionais aprovados. Este ‘novo’, que a América Latina contribuiu fortemente com a Constituição mexicana de 1917, já fazia parte do pensamento latino-americano anticolonial desde o Haiti, em 1804, portanto outra característica latino-americana que deve ser ressaltada. Quer dizer, quando Konrad Hesse elaborou sua teoria da força normativa da constituição, na América Latina já se disputava a aplicação direta das normas constitucionais, não apenas no século XX com a Constituição mexicana de 1917, mas antes disso, no Haiti, no Paraguai, na Constituição bolivariana de Chuquisaca e mesmo na discussão perdida no Brasil, que não conseguiu impedir a manutenção da escravidão com a Carta outorgada de 1824.

O que caracterizou o constitucionalismo do continente no fim do século XX, chamando a atenção dos teóricos, foi a inclusão de direitos mais ou menos autônomos dos povos indígenas e outros tradicionais, além de uma forte proteção da natureza, muitas vezes denominada de meio ambiente. Esses dois direitos, povos e natureza, se contradizem e se opõem aos direitos individuais protegidos pela tradição constitucionalista europeia, capitalista. A inclusão de povos com direitos não individuais e proteções ou direitos da/ou sobre a natureza que restringem direitos de propriedade individual da terra é o que dá a essencialidade do caráter latino-americano das constituições do século XX e XXI, a começar pela brasileira de 1988.3 Esses direitos se antagonizam com os direitos individuais por serem coletivos em sua essência e existência, entendidos não como a soma de direitos individuais, mas como pertencentes a comunidade ou grupo humano determinado, no caso de povos, e indeterminado, no caso da natureza e, em consequência, da terra. Essas características são a marca da anticolonialidade, por isso são de tão difícil aplicação nas sociedades capitalistas dependentes.

As constituições que inovaram na formulação deste conteúdo podem, portanto, ser chamadas de novas porque, embora já houvesse a discussão dos direitos dos povos e da natureza, e do anticolonialismo, desde o nascimento dos Estados Nacionais, no começo do século XIX, esses não estavam explícitos. A maioria das constituições formadoras eram formalmente muito parecidas com as europeias, entretanto estava presente o gérmen da discussão sobre o Estado Nacional como protetor das especificidades sociais locais e limitante da propriedade individual da terra e de acumulação de riqueza. Essa discussão foi vencedora tanto no Haiti como no Paraguai, por isso a opção por estes dois nascimentos, que, de resto, são os primeiros.

Este artigo pretende estudar o nascimento deste constitucionalismo nas independências. Para isso, será analisado o momento de nascimento dos Estados Nacionais e as forças ou atores sociais presentes naquele momento. Os dois casos analisados serão as constituições oriundas da Guerra do Haiti e a ausência de um texto escrito com o nome de Constituição no Paraguai. Ambos são paradigmáticos da luta anticolonial e auxiliam no entendimento da gênese do constitucionalismo latino-americano, entendido como a adoção das ideias da modernidade para a criação de Estados Nacionais com fundamento em regras jurídicas, acrescida da idiossincrasia do continente, portanto anticolonial, anti escravagista e que favoreça as culturas locais, principalmente indígena.

O nascimento dos Estados Nacionais latino-americanos
Os Estados latino-americano e caribenhos nasceram sob o jugo do colonialismo e sob a pressão de um escravagismo orgânico. A gênese das constituições latino-americanas e seu constitucionalismo está presente na discussão das condições de formação das sociedades independentes porque tiveram que enfrentar o debate sobre o escravagismo e a ocupação da terra, dificultando a aplicação dos modelos liberais que se apresentavam na Europa. A discussão sobre a ocupação da terra está muito presente na formação das sociedades da América Latina em contradição com a ocupação liberal da América do Norte4. Na América Latina, as metrópoles mantiveram a terra sobre absoluto controle, assim como o trabalho escravo. As elites, nas independências, pretenderam manter o controle sob a terra e a escravidão, por isso sua divergência com os povos originários, os camponeses e os “Libertadores”. No Brasil, depois da independência, a terra foi tão controlada quanto antes, sendo inacessível aos trabalhadores.5 Essa discussão gerou, em diversos países, incompatibilidades com o constitucionalismo europeu ou norte-americano, ou pelo menos diferenças fortes, demonstrando a insuficiência das teorias constitucionais exógenas. Dessa forma, as discussões, ou melhor, a discussão sobre o nascimento dos novos países independentes, sua forma jurídica e organização política tem traços próprios que desde então vão indicando o que viria a ser o constitucionalismo latino-americano tão explícito do século XXI.

Ao se analisar as constituições e os discursos constitucionais de Bolívar, Toussaint L’Overture, Francia, Artigas, San Martin, Marti ou Morelos, fica clara a insuficiência das propostas europeias e norte-americana. Mesmo no Brasil, onde a independência e a Constituição foram feitas por um herdeiro português e que parece não ter havido debate nem resistência, meio escondido na história, é possível sentir esta preocupação6. Ainda que as posições que levavam em conta a realidade local tenham sido derrotadas ou traídas, estas marcas ficaram e se revelaram em outros momentos históricos, como no México e na Bolívia, no século XX. Foram reveladas também nas leis que compuseram o mundo jurídico de cada país, como exemplo, a Lei de Terras, Lei nº 601/1850, no Brasil7.

As contradições entre colonialismo e independência, liberdade e escravidão, natureza e produção para exportação, sociedades hegemônicas e sociedades tradicionais, fortemente presentes na gênese do constitucionalismo latino-americano, no século XIX, podem desvelar as inovações ocorridas no final do século XX e XXI, que tem como ponto culminante a Constituição mexicana de 1917, as andinas do século XXI e a cubana de 2019. Alguns autores, seguindo uma classificação de Raquel Yrigoyen8, sustentam que o ‘novo’ constitucionalismo nasceu no fim do século XX e se aprimorou em degraus ou momentos – esses crescem reconhecendo a existência de povos até o autorreconhecimento estatal como plurinacional. Esta trajetória assim entendida deixa curta a história e esconde os ricos debates e lutas na formação dos Estados Nacionais no começo do século XIX e mesmo no fim do XVIII, deixando de considerar a extraordinária revolução negra do Haiti. Assim, é necessário voltar às origens, esquecendo a palavra ‘novo’ e a rápida evolução do século XX e XXI para entender as profundas origens do constitucionalismo latino-americano nas lutas pelas independências. As discussões, debates, angústias e práticas da formação de Estados Modernos na América Latina estiveram ausentes nas discussões europeias e nos escritos dos teóricos europeus e eurocentristas que, em geral, viam no emaranhado legislativo constitucional do século XIX uma reprodução automática e literal das constituições do chamado Velho Mundo. Os constitucionalistas europeus que estudam o contexto latino-americano se surpreendem com as soluções encontradas para dar vida aos direitos dos povos e da natureza, terra, principalmente nos séculos XX e XXI. O século XIX é esquecido, como se não houvesse nem debates nem práticas na formação dos Estados Nacionais. A leitura dos espanhóis Bartolomé Clavero9, Viciano Pastor10 e Martínez Dalmau11, por exemplo, demonstra essa admiração e, ao mesmo tempo, incompreensão da origem dessas constituições plurinacionais, pioneiras em reconhecer direito de povos, desafiando os antigos critérios de autonomias, mas mantendo uma necessária soberania nacional.

Os autores europeus de Direito Constitucional não americanistas mostram certo desdém pelas constituições da América Latina, por exemplo, o professor Maurice Duverger que publicou alentado livro em 1978 sobre Constituições e Documentos Políticos12 sem qualquer referência à Revolução e Constituição mexicanas. Hoje está claro que, em 1917, o México escreveu um dos mais importantes textos legais fundadores do Bem-Estar Social e da intervenção do Estado nas ordens econômica e social, assim como uma constituição com força normativa. A Constituição mexicana de 1917 merece integralmente o adjetivo de latino-americana, com caráter anticolonial, apesar de já ter sido traída tantas vezes. Com o rompimento das ditaduras na América Latina, nos anos 1980, os juristas ibéricos, principalmente, passaram a olhar com maior atenção as constituições que começaram a surgir. É o caso da Constituição brasileira de 1988 e, em seguida, a colombiana de 1991. Estas duas constituições impressionaram pela clareza na proteção dos direitos indígenas e a extensão aos povos afrodescendentes e pelo reconhecimento dos diretos sobre o meio ambiente, nome jurídico que compreende a natureza. Importantes constitucionalistas portugueses e espanhóis passaram a estudar estas constituições e ampliaram o estudo às outras constituições do continente. O sevilhano Bartolomé Clavero dedicou vários livros e artigos sobre o tema, sempre preocupado com as questões indígenas. Outro sevilhano, Joaquín Herrera Flores, organizou cursos de mestrado e doutorado na Espanha com ênfase na América Latina, com temas, professores e alunos latino-americanos13. Em Portugal, constitucionalistas como Jorge Miranda e Gomes Canotilho14 também se voltaram a estudos principalmente da constituição brasileira. Houve uma densa discussão das constituições brasileira e colombiana. E as novidades de estenderam por todo o continente, até chegar às admiradas constituições do Equador (2008) e da Bolívia (2009), que definiram os Estados como plurinacionais e garantiram direta e indiretamente, respectivamente, os direitos da natureza, deixando clara a existência de peculiaridades latino-americanas anticoloniais e identidades entre elas, a ponto de se falar, então, em constitucionalismo latino-americano.

A terra, sua ocupação e os direitos a ela referentes foram discussões infraconstitucionais no século XIX, mas ganharam status constitucional em 1917 no México, o que depois se expandiu para o continente, finalmente reconhecido como direito coletivo ao meio ambiente ou à natureza, e constitucionalizando o que se chamou de função social. As relações de trabalho, livres e coletivas, os direitos das mulheres e restrições ao direito individual e patrimonialístico da propriedade imóvel, urbana e rural também foram ganhando espaço nas constituições com cada vez mais força normativa.

Todavia, estas inovações e diferenças não são flores sem haste que pairam no espaço sem ligação com as lutas concretas contra 500 anos de colonização. A limitação temporal dos estudos constitucionais latino-americanos acaba ofuscando as práticas e os debates ocorridos ao longo dos últimos duzentos anos. É necessário buscar o início do constitucionalismo latino-americano nas lutas pela independência, um processo continuado desde Tupac Amaru e Sepé Tiaraju, até os direitos da natureza da constituição equatoriana de 2008, passando por Zumbi dos Palmares e Toussaint L’Overture e textos constitucionais, como as constituições do Haiti de 1804, do México de 1917, da Bolívia de 1938, a negativa constitucional de Francia e as constituições de Bolívar. Nesse sentido, a Constituição boliviana de 2009 pode ser incompreendida se não for conhecida a de 1938, a Revolução de 1952 e a Constituição Bolivariana de Chuquisaca de 1826. Entender essa história ajuda a compreender a dificuldade de implementação das belas constituições do continente.

Havia forças díspares e contraditórias nas sociedades coloniais no momento das independências e elas explicam a discussão anticolonial e o medo das elites em romper com a colonialidade e a escravidão.

As sociedades latino-americanas e as independências
Na época da chegada das primeiras caravelas ibéricas, passagem dos séculos XV para XVI, a população do continente era, em cálculos moderados, de 70 milhões de pessoas, distribuídas em milhares de povos organizados em pequenos grupos ou em grandes impérios15. A população na América em 1500 era maior do que a europeia. Grondin e Viezzer anotam que a população americana era de 67 milhões em 1500 e no processo colonial foram mortos 61 milhões16. Os cronistas da época relatam esses genocídios; Frei Bartolomé de Las Casas, em sua vasta obra, conta o assassinato sem causa de milhões de pessoas em poucos anos17. Segundo as Nações Unidas, hoje vivem na América Latina 45 milhões de indígenas18. Esses números, não sendo um estudo demográfico, indicam que a colonização nas Américas foi de uma violência ímpar amplificada com a tragédia dos africanos sequestrados e trazidos em condições sub-humanas. O historiador da University of London, Kenneth Morgan, estima que aportaram nas Américas mais de 12 milhões de pessoas19 nos quatro séculos de tráfico de escravizados africanos. O autor explica a dificuldade de acertar estas contas porque o tráfico, especialmente no século XIX, era clandestino. Esse número, somado aos europeus, asiáticos e norte-africanos que chegaram ao continente, oferece uma dimensão do que foi a substituição de população, com graves consequências culturais. Por um lado, o genocídio indígena, por outro, a imigração forçada e a miscigenação abalaram as sociedades locais a ponto de destruir os impérios existentes e exterminar povos livres. É possível dizer que nem os chegantes nem os substituídos se mantiveram incólumes às mutações culturais. Alguns, como os africanos negros e os indígenas atraídos, foram perversamente obrigados a esquecer ou esconder suas origens culturais, sua língua, sua religiosidade e sua arte20. Outros simplesmente passaram a viver de maneira diferente do que viviam em seus países e seus filhos aprenderam coisas impensáveis no país de seus pais.

Mas não só as gentes passaram por este processo de mutação e substituição. A natureza, os não humanos, também. A economia colonial foi perversamente extrativista ou agrícola; as minas de ouro, prata e outros metais fundamentais para a formação da riqueza das metrópoles e a formação do capitalismo foram devastadoras da natureza e a maior parte do trabalho, escravizado ou servil, era indígena, o que impôs mudanças nas suas ordens sociais. A outra parte da economia colonial, a agricultura de exportação, destruiu a natureza local da mesma forma. As grandes lavouras, nas terras baixas e férteis, ocuparam mão de obra escrava africana, tanto para extrair minérios como para a produção agrícola em larga escala. Portanto, as consequências foram perversas com a natureza, o que impôs um rígido regime de controle sobre as terras para garantir acesso somente aos grandes latifundiários. Por outro lado, as metrópoles se apropriaram rápida e violentamente dos conhecimentos dos nativos para a localização das minas e para uso das plantas domesticadas que vieram compor a culinária europeia e literalmente matar a fome do continente, como batata, milho, tomate, e acrescentar glamour em suas festas e teatros, como tabaco e cacau.

Dessa forma, como colônia, é possível dizer que a América sofreu uma transformação das gentes e da natureza, e até mesmo esta separação entre gente e natureza foi uma concepção trazida da Europa. Quem não sucumbiu ao colonialismo, quem dele se esquivou, fugiu ou se escondeu, continuou a viver em harmonia, como os indígenas, os chamados escravos fugidos e outros povos que foram se retirando para o interior, misturando, plantando e colhendo os frutos generosos da natureza, aprendendo a conviver com ela e a mantê-la.

Duas Américas passaram, então, a existir: a América colonial, que excluiu a natureza, explorou o trabalho em forma escravagista e formou riquezas acumuláveis para as metrópoles e controlou a terra apenas para produção agrícola de larga escala; outra, distante, escondida, que manteve a natureza preservada com ela convivendo, abrigando povos indígenas, com suas línguas e tradições, e que também abrigou novos povos, fugidos ou desiludidos do mundo colonial, como os quilombolas21 e outros camponeses, praticando agricultura de subsistência, mantendo a biodiversidade.

O grupo formado pela América não integrada, com povos indígenas resistentes ou sobreviventes, sequestrados africanos e seus filhos que já não podiam ou não sabiam voltar para sua pátria, mas não desejavam, ou não eram bem-vindos no convívio da sociedade hegemônica, colonial, queria distância do mundo colonial e preferiu o silêncio e invisibilidade22 ainda que mantivessem certas relações. Parte desse grupo passou a viver na periferia do sistema colonial, conservando com dificuldade sua identidade, outros se afastaram, repudiando qualquer aproximação e repelindo os avanços coloniais. Esta parte da América, depois da independência e mais próximo ao século XX, cresceu em população e número de povos com a chegada de brancos, meio-brancos, meio-negros, quase-índios, que, enganados ou arrependidos, também foram deixando de lado o Estado organizado ou civil e se embrenharam numa vida íntima com a natureza. Os caboclos, que se arranchavam onde podiam, sem direito à terra, se tornaram posseiros, ocupantes, “invasores” na terminologia colonial, provendo as próprias necessidades, livres, sem fome, sem dinheiro e sem direitos. Assim como os índios e quilombolas, esses posseiros reivindicaram a terra, foram se tornando povos tradicionais, ou tribais, segundo a Convenção 169, da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Estes povos no século XX, apesar de vistos como imensas reservas de mão de obra, eram, e continuam sendo, inoportunos, porque ocupam as terras que serão necessárias para a expansão da sociedade hegemônica. Todos eles juntos, embora não formem um grupo homogêneo, mantêm interesses muito próximos à essência do constitucionalismo latino-americano: são povos, reclamam direitos coletivos e precisam da terra como natureza para se manter como são e a chamam de terra, lar, casa, com codinomes como mãe-terra, mãe-natureza, tekoha ou pachamama, entre muitos outros. Lutam pela terra, mas sobretudo lutam por um modo de vida que, ainda quando não tenham clara consciência, é anticolonial e anticapitalista.

No final do século XVIII, a América Latina não colonial era formada por indígenas e quilombolas que pretendiam manter a distância os europeus e evitar ou impedir que tomassem suas terras e eles mesmo como trabalhadores. Não que não tenham participado das independências, o fizeram em grande medida, mas como soldados, acreditando que a independência significaria liberdade e autonomia. Em geral, não foram enganados pelos Libertadores, mas pelos governos que se seguiram.

A outra América, devastada pelo extrativismo mineral e agricultura extensiva e monocultural, era formada pelos proprietários e trabalhadores escravizados e outras gentes periféricas, a sociedade colonial. Para gerir as colônias, as metrópoles mantiveram feitores, pequenos proprietários, administradores, policiais, burocratas, chamados de homens livres ou homens bons. Sempre homens e sempre brancos ou quase brancos, além dos europeus diretamente ligados à metrópole. Isto formou uma casta que a América espanhola chamou de elite crioula (élite criolla) e o Brasil de aristocracia, em sua maior parte formada por descentes de europeus. Alguns foram estudar na Europa e voltaram para ocupar cargos importantes na colônia, sempre sob a direção de europeus de nascença, fidalgos, quase nobres23.

Em algumas colônias, especialmente francesas, parte dessa elite era mulata, filhos de uma miscigenação forçada e criminosa e treinada para sustentar a escravidão. A elite crioula foi se tornando proprietária das terras, concessionários das minas, sócios minoritários nas exportações e comerciantes ricos. Em muitos lugares foram se afastando dos interesses das metrópoles e passaram a sonhar com a independência, e desde o final do século XVIII conspiravam. Essa elite era influenciada pelo iluminismo e pelas ideias europeias em que se espelhavam, mas o conteúdo da liberdade e da igualdade em seus discursos e práticas ganhou cores próprias, especialmente porque na América teriam que enfrentar a questão racial e a superação do escravagismo24, que não estavam em questão na Europa.

Os escravizados, os servis e os mais ou menos assalariados, sempre dependentes, subjugados e maltratados, viviam em péssimas condições. Os empregados, durante todo o período colonial e mesmo depois, já com a constituição dos Estados Nacionais, eram recrutados geralmente de forma forçada como escravizados africanos ou indígenas ou imigrantes mais ou menos voluntários. Por isso havia uma permanente comunicação entre as duas Américas, quer dizer, os livres da primeira estavam sempre ameaçados a violentamente serem arrastados como não livres para o mundo colonial, assim como muitos mantinham esperança de voltar ou ingressar na liberdade, e às vezes conseguiam.

Os escravizados que retornaram à liberdade e trabalhadores agrícolas que abandonaram a plantation, não poucas vezes com dívidas, e que foram se tornar posseiros distantes, escondidos, acabaram formando sociedades autônomas que foram sistematicamente combatidas e criminalizadas pelo poder colonial e depois pelos Estados Nacionais constitucionalizados, em geral com muita violência. Quando os trabalhadores, por fuga ou ardil, deixavam o mundo colonial, formando um novo povo ou aderindo a um existente, como os quilombolas, eram sempre ameaçados por estarem em terras proibidas. As autoridades metropolitanas os caçavam sem escrúpulos, os Estados Nacionais tratavam de ‘integrá-los’, com políticas de proibição do uso da terra, regularizações fundiárias e assimilação pelo trabalho assalariado. São inúmeras e comumente mal contadas as guerras contra camponeses, indígenas e quilombolas, todas terminadas em massacres e aprisionamentos. Até século XVIII, estas guerras foram contra indígenas e africanos.

Ambas as Américas tinham interesse na independência e promoveram ou participaram de forma não homogênea da criação dos Estados Nacionais e suas constituições, formando ou contribuindo para um constitucionalismo anticolonial. Todos falavam em liberdade, mas seguramente cada um deles emprestava ao termo um significado diferente. Humboldt anota que “em termos de comércio e de política, no momento das discussões sobre as independências, a palavra liberdade expressava somente uma ideia relativa”25. São inúmeros os levantes indígenas, todos radicalmente contra a metrópole sem propostas de integração, alteração legislativa ou reconhecimento de direitos. As lutas eram contra a colonização e pela manutenção das sociedades originárias e pela tentativa de expulsão dos invasores, quer dizer, também contra os crioulos, diretamente identificados com a colonização e os estrangeiros. Um dos grandes exemplos desta resistência indígena foi a chamada rebelião de Tupac Amaru e Tupac Katari, no Alto Peru, que manteve por um período a independência de La Paz26, no século XVIII.

Durante os três séculos que antecederam as independências, portanto, foi se formando uma sociedade peculiar. Enquanto na Europa a sociedade se organizava com base no individualismo, racionalismo, liberdade e igualdade, na América se aprofundava e institucionalizava concepções racistas contra negros e indígenas, ampliando a escravidão. Esta formação social colonial que tinha como base trabalho escravo e administração exógena gerou fontes de descontentamento que moldaram diferentes reações. Cada ator social reagia de forma diferente, mas com certa padronização em toda América Latina.

No começo do século XIX, os líderes das elites crioulas formados na ilustração europeia reclamavam a independência para continuar e desenvolver seus negócios livremente. Houve fortes divisões internas, mas todos defendiam a necessidade de organizar Estados Nacionais com garantias formais de direitos civis e estruturação de poderes. Entre estes líderes havia os que imaginavam que podiam associar-se aos europeus, com as antigas ou novas metrópoles e os que preferiam uma independência profunda e sem laços coloniais, pelo menos num primeiro momento.27 Essas forças, comandadas por extraordinários generais e líderes, como Bolívar, San Martín e Artigas, impulsionaram as guerras de independência na América espanhola e propuseram constituições que pudessem se parecer com os povos que organizavam, mas enfrentaram oposição interna de outros membros da elite que, de forma sistemática, os afastaram do poder nos novos Estados criados assim que o exército espanhol foi derrotado. O constitucionalismo anticolonial latino-americano serviu para derrotar a metrópole, mas não era implantado pela elite crioula no poder que reaviva a colonialidade, com a manutenção de controle antipopular da terra, escravidão, submissão aos povos indígenas e dependência de mercados externos.

A Teoria de Estado forjada a partir do iluminismo destes líderes, especialmente Bolívar e Artigas, embora possa se parecer formalmente com as constituições aprovadas e com as ideias dos teóricos europeus, está muito longe da prática aplicada pelos governantes, com exceções. Para dar um exemplo singelo, a liberdade pensada por Bolívar e Artigas era abolicionista e de garantia de direito à terra aos indígenas. Não foi essa a prática do continente.

Antes da independência propriamente dita, as lutas foram permanentes e, em geral, esquecidas “… la hicieron los negros. Los nombres de sus caudillos han quedado ignorados”, afirmava Arciniegas na primeira página do livro citado. A elite branca fez ensaios de independência marcados por uma forte intelectualidade e o sonho de construir um país livre não só do colonialismo, mas das diferenças internas, como foi o liderado por Tiradentes no Brasil e Francisco de Miranda28 na Venezuela, entre outros. Em 1929, José Carlos Mariátegui chamou esses Estados de semicoloniais porque, embora com governo próprio, se subordinavam a interesses forâneos29.

Este caldo de contradições resultou em propostas constitucionais distintas, com visões de Estados e políticas diferentes, algumas já com características latino-americanas, com propostas anticoloniais de defesa da liberdade, antiescravista e de melhor uso da terra, portanto, com respeito à natureza e aos povos. As independências e suas constituições foram marcadas pelas contradições das duas Américas, mas principalmente pelas contradições internas da América colonial, que se traduzia por constituições com caráter latino-americano e governos pró-coloniais.

Cada país independente que se constitui na América Latina teve sua especificidade. As grandes histórias da construção do constitucionalismo latino-americano foram: 1) a guerra de independência do Haiti; 2) a independência do Paraguai; 3) as independências dos países que integravam a pátria grande sonhada por Bolívar; 4) a independência do México e sua constituição pioneira do século XX; 5) José Marti e a independência de Cuba e revolução socialista; 6) As independências do vice-reino do Prata; 7) a independência do Brasil. Este artigo está limitado à análise das duas primeiras histórias: Haiti e Paraguai.

A liberdade francesa e a escravidão em Saint Domingue
“… la colonia de Saint Domingue, fue, por lejos, la colônia más rica que haya tenido jamás em parte alguna una potencia colonial”30. Saint Domingue conheceu a maior guerra negra das Américas. Os haitianos enfrentaram as três potências europeias da época, França, Espanha e Inglaterra e atemorizaram o mundo americano alertando para o risco da sublevação negra, inspirando Hegel a escrever a dialética do amo e o escravo, segundo Buck-Morss31. Pelo menos dois grandes romances latino-americanos do século XX contam esta história, El reino de este mundo, do cubano Alejo Carpentier e La isla bajo el mar, da chilena Isabel Allende. A longa guerra travada na ilha (1791-1804) foi integralmente promovida pelos africanos e seus descendentes não mulatos, foi a mais autêntica e precisa guerra pela liberdade: guerra de escravizados contra amos32. A maioria absoluta da população era escravizada, os poucos fugitivos viviam nas cordilheiras, os marrons, e eram perseguidos e mortos impiedosamente pela administração francesa. A elite crioula formada por alguns poucos brancos e mulatos serviam aos interesses dos proprietários latifundiários franceses que raramente viviam na América e mantinham poder econômico na Metrópole.

Um dia, no final do século XVIII, liderados por Toussaint L’Overture o Haiti amanheceu rompendo grilhões, declarando o fim da escravidão porque todos os homens eram livres como sempre deveriam ter sido, repetindo o que estava escrito na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Faziam coro aos cidadãos de Paris e se consideravam cidadãos franceses. De fato, L’Overture havia descoberto que na Metrópole o povo havia feito uma revolução, e que a sociedade era livre, igual e fraterna. Hasteou a bandeira da Revolução e enfrentou quem resistia. Os proprietários de terras e gentes fugiram ou morreram, os mulatos livres e a elite branca, capatazes, burocratas, seguiram os fugitivos ou aderiram reticentes e temerosos aos revolucionários.

Estava iniciada a guerra que tornaria Saint Domingue na República do Haiti, independente, soberana e latino-americana. Mas não era bem assim que imaginava Toussaint L’Overture que estava maravilhado com a revolução francesa e não cansava de repetir sua consigna. Para ele liberdade, igualdade e fraternidade era tudo o que poderiam desejar os africanos escravizados em toda América. Imaginava que Saint Domingue continuaria sendo um pedaço da França revolucionária, livre e fraterna. Não havia nenhuma razão para ser um território independente, seria uma parte da França livre, mesmo porque sabia já da avidez da Espanha e da Inglaterra e como território francês seria muito mais forte. Por várias vezes tentou fazer acordo com a França, mas recebia como resposta que não havia sido abolida a escravidão. A França ilustrada, livre e revolucionária, se debatia entre declarar o fim da escravidão e alterar o regime das colônias que lhe garantiam altos ingressos ou manter a escravidão e abrir uma profunda contradição interna. Afinal venceu a economia, mas politicamente continuou oscilando entre ser explícita na negativa da liberdade ou justificar a hostilidade contra L’Overture por outras razões. L’Overture foi enganado, preso e morto na França, por Napoleão.33

Os homens e as mulheres livres não tinham como voltar à África e a terra que lhes fizeram adotar à força, Saint Domingue, sempre conheceram como parte da França e poderia continuar sendo desde que todos fossem livres. Possivelmente seria diferente se o exército de L’Overture fosse formado por indígenas e tratassem os franceses como invasores. A luta dos negros era contra a escravidão e os franceses haviam feito uma sangrenta revolução pela liberdade. Tudo isso se encaixava na lógica do General ex-escravizado. É claro que estava irmanado com o povo francês, mas não contava que o racismo construído para manter a ética da escravidão tinha calado tão fundo na Europa que não poderia admitir uma parte dela dirigidas por negros.

Em 1793, afinal, foi proclamada a abolição da escravidão e poderia ter encerrado a Guerra Negra. As hostilidades, entretanto, continuaram. L’Overture se fez proclamar Comandante em Chefe da Colônia, mas a França não aceitou. A Inglaterra e a Espanha mantiveram as hostilidades, também. Era inaceitável um Estado Nacional negro, já não era a independência que pesava, mas o sistêmico racismo colonial. Para encerrar as disputas internacionais em 1801, L’Overture chamou uma Assembleia Constituinte com representantes de toda ilha e promulgou a Constituição haitiana de 180134.

A primeira Constituição da América Latina foi escrita sem nenhuma interferência externa, por livre determinação do povo haitiano e sob a direção de um militar vitorioso. Mas seu primeiro artigo estabelecia: “Santo Domingo em toda a sua extensão, e (cita as ilhas adjacentes), formam o território de uma única colônia, que faz parte do Império Francês, mas que está sujeito a leis próprias”.35 Quer dizer, L’Overture proclamava a independência, mas não o afastamento da França, confiava que Paris seria a capital dos países e pessoas livres.

Napoleão não sancionou a Constituição e não aceitou L’Overture como dirigente da colônia. Para restabelecer a “autoridade francesa” enviou uma expedição com 25 mil homens sob o comando do General Leclerc. A guerra reiniciou e a expedição fracassou totalmente. Sem outra saída, a França chamou L’Overture a Paris, em 1803. Enganado por Napoleão, foi preso e levado a uma masmorra onde morreu. A revolta e o desânimo tomaram conta da ilha, mas o General Jean-Jacques Dessalines, também ex-escravizado, segundo homem na hierarquia e sucessor L’Overture, assumiu o comando e declarou a independência, chamando nova constituinte36. A Constituição do Haiti independente foi promulgada em maio de 1804. Era a segunda Constituição da América Latina e Caribe37. Estava constituído o primeiro Estado Nacional independente da América Latina, popular, anticolonial e antiescravista.

O povo e os generais do Haiti aprenderam que os dirigentes da revolução francesa, os ilustrados, racionais e liberais europeus, os queriam apenas como escravos, nem mesmo na condição de colônia autônoma serviriam. Não poderiam ser cidadãos. A História lhes reservaria mais uma decepção: não foram reconhecidos como nação independente por nenhuma potência europeia, nem pelos Estados Unidos da América. Sentiram o peso da liberdade e as represálias à luta anticolonial, sobretudo, sentiram o peso do racismo.

Estas duas constituições são fruto de um constitucionalismo latino-americano na essência e não só pelo fato de terem sido escritas em território latino-americano, por latino-americanos de nascimento ou adoção forçada. Ambas são anteriores à Constituição espanhola de Cádis, 1812, que influenciou o pensamento jurídico constitucional da América Espanhola. São anteriores até mesmo à Carta outorgada por Napoleão à Espanha, chamada de Constituição de Baiona, escrita por Napoleão antes de invadir a Espanha em 1808.

Ambas as constituições haitianas são muito parecidas entre si, apesar da primeira declarar-se colônia de França e a segunda um Império independente. A ideia constitucional do Haiti independente era de que a Constituição regeria efetivamente a vida do povo, portanto teria força normativa. Por isso, cada vez que havia necessidade de alteração na vida nacional, era promovida uma alteração na Constituição, não por emendas, mas a reescrevendo. Assim, o Haiti teve muitas constituições no curto período anterior às demais independências latino-americanas: 1801, 1804, 1805, 1806, 1807, 1811, 181638.

O Haiti passou a ser um país importante no processo de independência da América Latina não só pelo exemplo de luta e persistência. Simon Bolívar lá encontrou abrigo, recebeu proteção, ajuda financeira, armas e até uma prensa tipográfica e comprometeu-se a abolir a escravidão em cada independência que promovesse39. Embora não fosse reconhecido pelas potências europeias, era respeitado e reconhecidos pelos latino-americanos. Mas não apenas, provavelmente foi das ideias de Dessalines que Bolívar imaginou a República de presidentes vitalícios não hereditários que defendeu e aplicou especialmente na Constituição de Chuquisaca.

As Antilhas, onde primeiro chegaram os espanhóis em 1492, foi o epicentro do genocídio indígena. San Domingos, Puerto Rico, Cuba e Jamaica tiveram sua população originária praticamente extinta pela liquidação física ou miscigenação forçada, o que explica porque não aparecem os indígenas nas lutas de independência, apenas os grupos sociais integrantes do processo colonial. A Guerra do Haiti é negra, de trabalhadores escravizados! Mas é essencialmente anticolonial. Por isso, a sociedade que se constituiu ali pode ser considerada a origem, a gênese do constitucionalismo latino-americano. O desenvolvimento posterior do Haiti também é essencialmente anticolonial ou pós-colonial. As grandes potências formadas no vácuo colonial e escravista, França, Inglaterra e os Estados Unidos da América, não aceitaram a independência haitiana e, com bloqueio econômico e permanente provocação de litigiosidade, o mantiveram em tensão interna e externa permanente.

A prosperidade do Haiti nas primeiras décadas de independência, com base na produção agrícola de autossubsistência foi reconhecida por Humboldt como a mais apropriada para as Antilhas independentes40. Para conceder a independência à antiga colônia, em 1825, o governo francês exigiu o pagamento de 150 milhões de francos para indenizar os antigos proprietários de escravos. Os outros países, incluindo os Estados Unidos, alegaram que somente poderiam reconhecer a independência do Haiti depois da França. O governo local, pressionado inclusive militarmente, cedeu e aceitou pagar em 5 anuidades; para pagar a primeira, tomou um empréstimo da própria França de 30 milhões de francos. Em 1838, a França diminui a dívida, impagável de qualquer forma, a 60 milhões41. A independência foi reafirmada, mas o país estava falido, endividado e sem acesso aos mercados externos. As novas metrópoles destruíram a prosperidade descrita e elogiada por Humboldt. Os enfrentamentos e provocações continuaram até que, em 1844, a ilha foi dividida ao meio e os haitianos foram expulsos do lado oriental, que formou a República Dominicana. Então, em 1854, motivado pelo descontentamento da população, se iniciou um regime autoritário e autocrático para “el regocijo de la comunidad internacional y racista”, diria Johanna von Grafenstein42

O feliz reino deste mundo nascido em guerra medonha pelo sonho de liberdade que estava tão próxima depois da sangrenta revolução da metrópole sucumbiu porque ousou ser igualmente livre, não aceitou a colonialidade, não acreditou no racismo e buscou um caminho de desenvolvimento próprio. Como não chamar estas primeiras constituições de latino-americanas? Como não dizer que aqueles Libertadores não pensaram e praticaram um constitucionalismo latino-americano? É verdade que não eram indígenas, mas tampouco eram a elite crioula. Haiti aprendeu a duras penas os males do colonialismo pós-colonial que, em última instância, são os mesmos do escravismo e promotores do capitalismo. Haiti foi vítima, antes e depois da independência, do racismo colonialista e porque se negou a produzir a riqueza alheia, foi impedido, mais uma vez à força, de construir a riqueza de seu povo.

O Paraguai e o constitucionalismo
Muito longe das Antilhas, no coração da América do Sul, outro país se alçava em independência anticolonial e também pagaria caro a ousadia.

A Província do Paraguai, subordinada ao Vice-Reinado do Prata, estava a meio caminho das ricas minas de Potosi, no Alto Peru, e o porto exportador, Buenos Aires. Localizado entre os rios Paraná e Paraguai, era um vastíssimo território ocupado por muitos povos indígenas independentes, principalmente o povo Guarani que estendia seus domínios desde as bases da cordilheira, para além do Chaco, até próximo do litoral atlântico e o Rio Uruguai ao sul. A região e o povo Guarani foram o centro das experiências jesuíticas de uma colonização sem colonos, na expressão de Meliá43, chamada de Missões. O povo Guarani, formado por hábeis agricultores, desenvolveu entre outras muitas coisas o cultivo da erva-mate, amendoim, milho, mandioca44. Nas reduções jesuíticas das Missões, desenvolveu habilidades de fundição, criação de gado, cerâmica, construção civil, fiação de tecidos de algodão que seriam extremamente úteis durante a independência.45

A reação política ocorrida na Espanha quando Napoleão, em 1808, entregou a coroa espanhola a seu irmão Luís ante a abdicação dos Reis Carlos IV e Fernando VII em Baiona, repetiu-se em todas as colônias. As elites de Buenos Aires tomaram diferentes posições, ora em defesa de Fernando VII, que se dizia enganado, ora em defesa da Corte de Cádis e, em alguns casos, com propostas independentistas anticoloniais. Na região, duas outras potências ajudavam a complicar o quadro político: Portugal que tinha interesse na região cisplatina e a Inglaterra, inimiga da França e da Espanha, tencionava controlar o Rio da Prata.

A margem esquerda do Rio Uruguai – atual estado do Rio Grande do Sul e República Oriental do Uruguai – estava controlada pelo General José Artigas que acusava Buenos Aires de manter aliança com Portugal e com a Espanha. Artigas propunha uma independência sem condições, abolição da escravatura e distribuição de terras a todos os chamados americanos, indígenas e negros, e virtual expulsão de estrangeiros46. Além disso, não admitia entregar a Colônia do Sacramento nem a Província Cisplatina a Portugal. Artigas, com um exército popular, bem organizado, mas pobre e mal armado, não aceitava menos do que a organização de uma nação inteira, o que incluía não admitir a concentração do poder em Buenos Aires, nem a aliança com a Inglaterra, nem a aproximação com Portugal cujo governo estava no Rio de Janeiro47.

Esta luta contra Buenos Aires e Portugal representava em toda a sua plenitude o que Bruschera chamou de dialética da emancipação ibero-americana, de um lado “o patriciado das cidades capitais” e de outro “o sentimento de libertação dos povos, interpretado pelos grandes caudilhos” na busca do “ser histórico continental”.48 As independências da América do Sul e os chamados libertadores sustentavam esse “sentimento de libertação”, mas todos foram traídos tão logo as elites crioulas se viram livres dos espanhóis. Prevaleceu, portanto, a ordem do “patriciado”, como conclui o autor, mas o único país em que a libertação anticolonial dos povos venceu na América do Sul foi justamente o Paraguai, sob o comando do Dr. José Gaspar Rodriguez de Francia.49

No conturbado período de 1811 a outubro de 1814, em que o antigo vice-reino do Prata se esvaía e Buenos Aires tentava manter o controle e domínio, enfrentando lutas intestinas e externas e, fazendo alianças e acordos com a Inglaterra e Portugal, a província do Paraguai foi se distanciando. Era intensa a atividade política no Paraguai; no princípio, a maioria defendia a fidelidade ao Rei Fernando VII, mas já havia a defesa da independência completa. Desde o início, Dr. Francia fazia eloquentes e densos discursos contra qualquer alinhamento colonial, propondo uma independência total. Francia foi ganhando adeptos principalmente entre o povo, os camponeses, os pequenos proprietários, todos americanos e, evidentemente, entre a oposição dos estrangeiros e setores da economia mais ligados às metrópoles. Com muita habilidade, Francia foi afastando as lideranças não convencidas com a República e com a Independência e com o “sentimento de libertação dos povos”. Foi proclamada a República sob a direção de Francia, para negar qualquer relação com as monarquias e, finalmente, declarada a independência tanto em relação à Espanha como ao Rio da Prata, Buenos Aires.

Em 1813 foi realizado o primeiro Congresso Nacional, com mil votantes, representantes de todas as regiões, com massiva participação camponesa e popular com um domínio bastante confortável ao Dr. Francia. Neste Congresso foi aprovado o “Reglamiento de Gobierno”, um documento com características constituintes que utilizava termos da Antiguidade romana e da modernidade francesa. Ali apareceu pela primeira vez a palavra República (Republica del Paraguay) e ainda nomeava o governo como um Consulado de dois membros. Esses eram Dr. José Gaspar Rodriguez de Francia e Pedro Juan Caballero, com iguais poderes, mas que se alternariam a cada ano na direção do Estado. O documento é muito mais do que um esboço de constituição, mas trata principalmente da forma de governo e dos poderes dos cônsules. São 17 artigos, sendo que o último consolida um Congresso de mil sufragistas, como o que estava aprovando o Regulamento, garantindo que qualquer mudança somente poderia ser estabelecida por esse Congresso. Era o constitucionalismo em prática.

A Província do Paraguai tornou-se um país independente. Organizou-se segundo os interesses da população e constitui-se em uma República, a primeira da América do Sul. O primeiro Congresso constituinte, de 1813, não redigiu ou aprovou uma Constituição propriamente dita, como se viu, mas foi organizado segundo um sufrágio universal e a maioria dos membros era representante de trabalhadores, funcionários e artesãos. Foram dois meses de reuniões e Assunção vivia um clima de construção de Nação50. A proposta de constituir um Estado Nacional independente, segundo as possibilidades, habilidades e vontades do povo e da natureza em que lhes coube viver, marcadamente rural, com respeito à outra América, indígena, sem escravidão ou servidão, estava desenhado no Paraguai de Francia e de seus sucessores, por isso pode-se dizer que aí está o berço do constitucionalismo latino-americano na América do Sul.

Coube ao Dr. Francia o primeiro ano de consulado. Foi então promulgada uma lei em 1.° de março de 1914 (Resolución Consular) que atacou diretamente a elite crioula formada pela oligarquia comercial de Assunção e espanhóis residentes, chamados de peninsulares.51 A Lei, cujo preâmbulo dizia ser “medida necessária para facilitar o progresso da sagrada causa da liberdade da República contra as maquinações de seus inimigos”, proibia o casamento entre homem europeu e mulher “americana conocida y reputada como española”, branca, portanto, desautorizando os casamentos entre europeus e permitindo apenas que se casassem com “con indias de los pueblos, mulatas conocidas y negras”. Política inversa ao branqueamento da população praticada sem sucesso efetivo, mas intensificador do racismo em outros países como o Brasil. A partir daí o cerco contra os estrangeiros, espanhóis e outros europeus foi apertando de tal forma que em pouco tempo a maior parte tinha se mudado para Argentina e Brasil, onde em geral mantinham interesses econômicos e apoiavam a colonialidade.

Em 3 de outubro de 1814, outro Congresso com mil deputados, altamente representativo da Nação, com grande participação de camponeses, determinou novas formas de governo acabando o Consulado e designando Dr. Francia o Ditador Supremo da República por cinco anos, pela expressiva margem de mais de 85% dos votos52.

O descontentamento das elites era visível e Francia, com o apoio renovado do Congresso e das classes populares, continuou investindo contra os interesses econômicos e eclesiásticos. Necessitando manter a política de construir a nação, Francia seria, cinco anos depois e por unanimidade, eleito pelo Congresso Ditador Perpétuo da República.

Os dois termos, Cônsul e Ditador, não têm a mesma conotação que se lhe empresta no século XXI, são termos tirados diretamente da Roma antiga.53 Deste modo, os títulos provavelmente foram determinados pela erudição do Dr. Francia, cuja personalidade e cultura está expressa numa das mais importantes obras de ficção da literatura latino-americana, Yo, el Supremo, do paraguaio Roa Bastos. A ideia de mandatário perpétuo, em geral não hereditário, se repetiu nos países que foram sendo criados após as independências, como no Haiti, no Paraguai e, depois, na Constituição de Chuquisaca de inspiração bolivariana. A ideia foi defendida por Bolívar em suas cartas e outros escritos54, principalmente para a América do Sul, por desconfiança dos libertadores nas elites locais que poderiam retornar à colônia ou fazer acordos com novas metrópoles contra os interesses do povo. Esse também era o temor de Francia, que tinha o absoluto apoio do povo, quer seja por seu despojamento de bens materiais, quer seja por sua dedicação em efetivamente resolver os problemas do país. General José de San Martín, o outro libertador, criador de repúblicas, como a do Chile, no final das lutas quando voltou à Argentina e finalmente teve que exilar-se na Espanha, considerava que os Estados Nacionais latino-americanos deveriam restaurar as monarquias,55 com dinastias americanas, caso contrário os interesses das elites crioulas locais fariam acordos neocoloniais contra seus povos e a favor de que antigas ou novas metrópoles voltassem a comandar os novos países, como, de fato, aconteceu.

O Paraguai ficava cada vez mais isolado e sofrendo hostilidades dos vizinhos. Com domínio sobre a terra e a produção, Francia foi orientando o trabalho e organizando o povo para suprir as necessidades e garantir a defesa contra eventuais ataques. O país rapidamente se tornou autossuficiente em algodão, gado e cereais e iniciou uma indústria baseada na fundição, tecelagem e cerâmica. As experiências missioneiras estavam sendo utilizadas. Em longo ofício datado de 25 de dezembro de 1820, Francia se dirige ao Comandante Fernando Acosta para que ele reclame às autoridades brasileiras que reconheçam Paraguai como República independente e parem de incentivar roubos de gado e outros bens em prejuízo da alimentação do povo.56 Este ofício demonstra as hostilidades dos vizinhos para com a prosperidade do Paraguai independente, ficando claro que havia sido encontrado um caminho latino-americano para o desenvolvimento que não dependia das metrópoles europeias.

A legislação implementada por Francia tinha um caráter latino-americano contrário a qualquer colonialismo e tendia a proteger a independência das hostilidades constantes dos vizinhos. Há pouco conhecimento na América Latina desta vitoriosa experiência que transformou um país isolado, sem saída para o mar senão atravessando territórios hostis, na mais importante potência sul-americana.

Em 1840 faleceu o Doutor Francia. Apesar da comoção social que se estabeleceu, a sucessão foi tranquila e manteve as políticas de Estado já estabelecidas. Carlos Antonio López assumiu o Governo e encomendou uma atualização da legislação. Em 1844, foi reescrito o Regulamento Governamental de 1813, chamado de Ley de Administración Pública. Não se chamava Constituição, ainda que se parecesse e os teóricos paraguaios do constitucionalismo assim a chamem. O título de ditador perpétuo foi retirado e o governante passou a se chamar Presidente da República, com um mandato de 10 anos. A eleição se daria por maioria, considerada como tal a metade dos votos mais quatro.

Em 1862, passados 50 anos da independência, assumiu a presidência o filho de Carlos López, Francisco Solano López. O país não tinha dívidas, era já um grande centro industrial e manufatureiro, tinha desenvolvido navegação fluvial e linhas férreas, mas era um país fechado, praticamente sem comércio exterior. Solano López, homem de cultura e educado na Europa, tentou abrir o país propondo tratados de amizade com os vizinhos que, em geral, nunca foram ratificados.57

O Paraguai e sua independência tinha ido longe demais. Os vizinhos o desprezavam e cobiçavam. Iniciou-se, então, a guerra fratricida chamada no Brasil de “Guerra do Paraguai” e no Paraguai de Guerra Grande ou Guerra da Tríplice Aliança. O fato é que Brasil, Argentina e Uruguai, contraindo empréstimos da Inglaterra, entraram em guerra contra o Paraguai que resistiu heroicamente. Foram cinco anos de destruição. As cifras do massacre são controversas, mas nenhuma é aceitável humanitariamente. Nidia Areces estima que de 60-70% da população morreu em consequência da guerra, de cada cinco mortos apenas uma era mulher, sendo em algumas partes uma relação ainda maior. Anota que o desequilíbrio na população pós-guerra ocorreu não apenas entre sexo, mas entre gerações. E ainda foram perdidos acervos culturais, bibliotecas, arquivos, lugares, além da proibição do uso da língua guarani. Acrescente-se a isso a perda de parte do território58. Foi o preço da não submissão.

Vívian Trías afirma que Francia e os dois López provaram que era viável um modelo de desenvolvimento libertador na América Latina, e que para o interromper foi necessária “una guerra implacable y abrumadora”59. Até hoje a história dessa Guerra Grande é mal contada na América Latina exatamente porque ela destruiu um modelo de desenvolvimento diferente do colonialismo e da colonialidade posterior, e a forma de constituir o Estado Nacional, discutido e criado junto com o povo. Isso explica a importância de entender este processo no estudo do constitucionalismo latino-americano e a razão de ser inserido em gênese.

Com o Paraguai destruído e diminuído em seu território, em 1870 foi sancionado o primeiro documento jurídico com o nome de Constituição, a Constitución de la República del Paraguay. Estava destruída por uma guerra implacable a rica experiência da independência marcadamente anticolonial e popular da América Latina. A nova Constituição seguia a tradição constitucionalista europeia, muito parecida com a argentina e a espanhola, já não havia novidade nem ameaça, o Paraguai estava destruído.

Considerações Finais
As independências do Paraguai e do Haiti foram exemplos da derrota colonial e da elite proprietária e neocolonial. As duas independências jamais foram assimiladas pelas novas potências. Há, porém, diferenças profundas entre elas. Haiti é africano, Paraguai indígena. Haiti nasceu de uma longa guerra contra os impérios e foi destruído pelo estrangulamento econômico e racismo da colonialidade, Paraguai nasceu do desprezo da colonialidade, não sem resistência e luta, e foi destruído 60 anos depois por uma guerra de extermínio que envergonha os vencedores.60 Nos dois processos está presente a guerra de destruição, nos dois o cerco econômico. Neste sentido, estas duas formações sociais estatais expressam em seus inícios a tentativa de pôr em prática uma profunda e clara proposta de constituir Estados latino-americano, isto é, de constituir um Estado Nacional popular, anticolonial e no qual a terra sirva a todos.

L’Overture adotou o constitucionalismo com Constituição à moda francesa, como se viu, Dr. Francia optou por organizar o Estado paraguaio sem necessidade de redigir uma constituição. Se partirmos do princípio puramente formal que constituição é uma lei que leva o nome de Constituição e que estabelece a organização do Estado e a garantia de direitos individuais, então o Paraguai não foi constituído por uma Constituição e sim por um Regulamento de Governo ditado inovadoramente por Francia. Entretanto, o que mais interessa para a constituição do Estado no Paraguai é o Congresso Popular que o definiu e não o documento escrito que dele resultou. Tampouco segue o modelo constitucionalista criar um estado independente como colônia da França. Neste sentido, a Constituição de 1801, haitiana, tampouco seria uma Constituição, mas fez nascer uma ideia constitucional anticolonial que se realizou com força em 1804.

Porém, deixando de lado o formalismo, o constitucionalismo é a estruturação, a partir de hipotética autodeterminação popular, de Estados Nacionais com hierarquias definidas e direitos reconhecidos numa legalidade expressa. É claro que essa autodeterminação é imaginada, hipotética, porque é a expressão da força hegemônica num determinado momento histórico e não necessariamente a vontade discutida, consultada e determinada pelo povo. No caso das duas independências, porém, os Estados que se formaram eram populares no sentido de terem sido erigidos pela vontade soberana do povo, caso contrário Haiti não teria vencido a Guerra de Independência e o Paraguai não teria resistido ao ataque militar por tanto tempo.

Na América Latina, quase todas constituições das independências expressavam essa essência latino-americana voltada para os povos, mas assim que o poder era assumido, seus princípios e materialidade eram esquecidos e passavam a valer as normas de direito comum ou civil sobre as terras e as gentes, negando direitos coletivos, sem proteger a natureza e pouco se importando com o povo, mantendo na maioria dos casos a escravidão, apesar da proclamação formal, na Constituição, da liberdade como um direito de todos. A manutenção da colonialidade, assim, se fazia na prática de uma constituição sem força normativa, exatamente ao contrário do Paraguai “sem constituição” e do Haiti com sua declaração de liberdade colonial.

Quando se lê as constituições do final do século XX e XXI, é possível sentir que são uma espécie de renascer das velhas causas populares do início do século XIX, repetindo a contradição entre a vontade popular e vontade das elites. A diferença entre as Constituições formadoras e as atuais é que a essência popular e anticolonial passou a ser escritas a partir de um aprendizado de duzentos anos de frustração, com protagonismo indígena. No Paraguai e no Haiti, a vontade popular se sobrepôs na prática, independentemente dos acertos ou desacertos das constituições. Nas constituições do final do século XX a vontade popular entrou em disputa direta para fixar o texto da constituição, cada vez de forma mais explícita. Pôr em prática essa vontade popular, porém, é outra questão, porque as forças anticoloniais continuam fortes, atuantes e dominantes. Quando a derrota interna das elites parece definitiva, acodem as forças externas econômicas ou militares.

Tal como antes, a dificuldade de implantação dos dispositivos anticoloniais das constituições latino-americanas, desde a brasileira de 1988 à boliviana de 2009, está presente. E as razões são as mesmas: as oligarquias continuam tentando destruir ou impedir a construção de sociedades fraternas.

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SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés. A essência socioambiental do constitucionalismo latino-americano. Revista da Faculdade de Direito da UFG. Goiânia, vol. 41, n. 1, p. 197-215. jan/jul. 2017.
STANNARD, David. American holocaust: the conquest of new word. New York: Oxford University Press. 1992. 391 p.
SUSNIK, Branislava. Una visión socio-antropologica del Paraguay: XVI-½XVII. Asunción: Museo Etonográfico Dr. Andrés Barbero. 197 p.
TRIAS, Vívian. El Paraguay de Francia, el Supremo, y la guerra de la tríplice aliança. Buenos Aires: Crisis. 1975. 79 p.
VICIANO PASTOR, Roberto. Estudios sobre el nuevo constitucionalismo latinoamericano. Valencia, Espanha: Tirant Lo Blanch. 2012.
__. Estudios sobre el nuevo constitucionalismo latinoamericano. Valencia, Espanha: Tirant Lo Blanch. 2012.
YRIGOYEN FAJARDO, Raquel. Pluralismo Jurídico, derecho indígena y jurisdición especial en los países andinos. El Otro Derecho. Vol. 30, n. ILSA/Bogotá. 2004. p. 171-196.
1
VICIANO PASTOR, Roberto. Estudios sobre el nuevo constitucionalismo latinoamericano. Valencia, Espanha: Tirant Lo Blanch. 2012.
2
HESSE, Konrad. A força normativa da constituição. Tradução Gilmar Mendes. Porto Alegre: SAFabris. 2010.
3
SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés. A essência socioambiental do constitucionalismo latino-americano. Revista da Faculdade de Direito da UFG. Goiânia, vol. 41, n. 1, p. 197-215. jan/jul. 2017.
4
FITZMAURICE, Andrew. Sovereignty, property and Empire: 1500-2000. Cambridge: University Press. 2014. 360 p.
5
SILVA, Lígia Osório. Terras devolutas e latifúndio: efeitos da lei de terras de 1850. Campinas: Ed. da UNICAMP, 1996.
6
No Brasil do começo do século XIX houve discussões, com José Bonifácio, para incluir na Constituição a distribuição de terras para todos, o fim da escravidão e o reconhecimento dos direitos dos povos indígenas. Porém o Imperador promulgou uma Constituição típica da colonialidade.
7
SILVA, Lígia Osório. Terras devolutas e latifúndio: efeitos da lei de terras de 1850. Campinas: UNICAMP, 1996.
8
YRIGOYEN FAJARDO, Raquel. Pluralismo jurídico, derecho indígena y jurisdición especial en los países andinos. El Otro Derecho. Vol. 30, n. ILSA/Bogotá. 2004. p. 171-196.
9
CLAVERO, Bartolomé. Derechos indígenas y cultura constitucional en América. México: Siglo XXI. 1994.
10
VICIANO PASTOR, Roberto. Estudios sobre el nuevo constitucionalismo latinoamericano. Valencia, Espanha: Tirant Lo Blanch. 2012
11
DALMAU, Rubén Martínez. Los Nuevos paradigmas constitucionales de Ecuador y Bolivia. La Tendencia – Revista de análisis político -, Quito, nº 9, p. 38, , março/abril de 2009.
12
DUVERGER, Maurice. Constitutions et documents politiques. Paris: Presses Universitaire de France. 1978.
13
Cursos oficiais da Universidade Pablo de Olavide, em Sevilha, Andaluzia, Espanha.
14
J.J. Gomes Canotilho é co-autor e co-organizador da alentada obra “Comentários a constituição do Brasil”. 2ª ed. São Paulo: Saraiva. 2018.
15
STANNARD, David. American Holocaust: the conquest of new word. New York: Oxford University Press. 1992. 391 p.
16
GRONDIN, Marcelo e VIEZZER, Moema. O maior genocídio da história da humanidade. Toledo: Gráfica e Editora. 2018. 298 p.
17
LAS CASAS, Bartolomé. Brevísima relación de la destrucción de las Índias. Medellin/Colombia: Editorial Universidad de Antioquia. 2011. 209 p. (pg. 10 e seguintes).
18
AGENCIA BRASIL. Relatório da ONU aponta aumento do número de indígenas na América Latina. Disponível em: http://agenciabrasil.ebc.com.br/internacional/noticia/2014-09/relatorio-da-onu-aponta-aumenta-do-numero-de-indigenas-na-america . Acesso em 2 abr. 2019.
19
MORGAN, Kenneth. Cuatro siglos de esclavitud atlántica. Tradución de Carmen Castells. Barcelona: Editorial Planeta. 2017. 287 p.
20
MOURA, Clóvis. Dialética radical do Brasil negro. 2ªed. São Paulo: Editora Anita Garibaldi. 214. 336 p. especialmente pg. 233-273.
21
A tradução do termo quilombola para as línguas utilizadas na América Latina não é simples, mas podem ser chamados de palenques, marrons, cimarrón, jíbaros etc.
22
MOURA, Clóvis. Rebeliões da senzala. 3ªed. São Paulo LECH, 1981. 282 p.
23
RAMOS, Jorge Abelardo. História da Nação Latino-americana. Trad. Marcelo Hipólito López et alii. 3ª ed. Florianópolis: Insular. 2014. 584 p.
24
RAMOS, Jorge Abelardo. História da nação Latino-americana. Trad. Marcelo Hipólito López et al. 3ª ed. Florianópolis: Insular. 2014. 584 p.
25
HUMBOLDT, Alexander de. Political essay on the Kingdom of New Spain. v. 4. London: Longman. 1814. 374 p. p. 97. “In affairs of commerce, as well as in politics, the word freedom expresses merely a relative idea”. elivro grátis. Disponível em: https://books.google.com.br/books?id=tu0MAAAAIAAJ&printsec=frontcover&dq=humboldt&hl=pt-BR&sa=X&ved=0ahUKEwjPtKih_97hAhV4HbkGHeR6BdEQ6AEITzAF#v=onepage&q=humboldt&f
26
LEWIN, Boleslao. La rebelión de Tupac Amaru y los origenes de la independencia de Hispanoamérica. Buenos Aires: SELA. 1967. 944 p.
27
ARCINIEGAS, Germán. La libertad: el destino de América. Bogotá: Editorial Planeta Colombiana. 2009. 224 pg.
28
MARTÍNEZ, Francisco. Francisco de Miranda: El Precursor. Serie Líderes de Venezuela. Caracas: Edicomunicacion. 2001.
29
MARIÁTEGUI, José Carlos. La tarea americana: selección de estudios e prólogo introductorio de Héctor Alimonda. Buenos Aires: Prometeo/CLACSO, 2010. 272 p. pg.125.
30
GRUNER, Eduardo. Haití: la única revolución de esclavos triunfante. IN: PINEAU, Marisa. Huellas y legados de la esclavitud en las Américas: proyecto Unesco La ruta del Esclavo. Saenz Peña, Argentina: Universidad Nacional de Três de Febrero. 2012. 239 p. pag. 223.
31
BUCK-MORSS, Susan. Hegel y Haití: la dialéctica amo-esclavo, una interpretación revolucionaria. Trad. Fermín Rodriguez. Buenos Aires: Editorial Norma. 2005. 103 p.
32
ARISTIDE, Jean-Bertrand. Tousaint L’Overture: la revolución haitiana. Traducción de Alfredo Brotons Muñoz. Madrid: Akal. 2013. 174 p.
33
JAMES, Cyril Lionel Robert. Los jacobinos negros: Toussaint L’Overture y la Revolución de Haití. Traducción de Rosa López Oceguera. Título original: Black Jacobins: Toussaint L’Overture and the San Domingo Revolution. Buenos Ayres: RyR, 2013. 525 p.
34
DUARTE, Evandro Charles Piza & QUEIROZ, Marcos Vinícius Lustosa. A Revolução Haitiana e o Atlântico Negro: o Constitucionalismo em face do Lado Oculto da Modernidade. Direito, Estado e Sociedade n.49 p. 10 a 42 jul/dez 2016.
35
No original: “Saint-Domingue dans toute son étendue, et Samana, la Tortue, la Gonâve, les Cayemites, l’Ile-à-Vaches, la Saône et autres îles adjacentes, forment le territoire d’une seule colonie, qui fait partie de l’Empire français, mais qui est soumis à des lois particulières”. Disponível em: http://mjp.univ-perp.fr/constit/ht1801.htm. Acesso em: 14 mai. de 2019
36
JAMES, Cyril Lionel Robert. Los jacobinos negros: Toussaint L’Overture y la Revolución de Haití. Traducción de Rosa López Oceguera. Título original: Black Jacobins: Toussaint L’Overture and the San Domingo Revolution. Buenos Ayres: RyR, 2013. 525 p.
37
Idem.
38
Haiti escreveu constituições em 1801, 1805, 1806, 1807, 1811, 1816, 1843, 1846, 1849, 1867, 1874, 1879, 1888, 1889, 1918, 1932, 1935, 1946, 1950, 1957, 1964, 1983, 1987, além de algumas revisões, sendo a última em 2011. Todos os textos utilizados neste artigo são da Digithèque MJP: http://mjp.univ-perp.fr/mjp.htm , acessado múltiplas vezes, sendo a última em 15 de maio de 2019.
39
LYNCH, John. Simón Bolívar. Traducción castellana de Alejandra Chaparro. Barcelona: Crítica. 2010. 478 p.
40
HUMBOLDT, Alexander Freiherr von. Ensayo político sobre la isla de Cuba, (Introd. por Fernando Ortiz; correcciones, notas y apéndices por Francisco Arango y Parrreño, J. S. Thrasher). La Habana: Cultural, 1960, p. 323.
41
GRAFENSTEIN, Johanna von. Haiti en el siglo XIX: desde la Revolución de esclavos hasta la ocupación norte americana (1791-1915). Istor, Revista de Historia Internacional, CIDE, Año XII, número 46. Otoño de 2011, pp. 3- 32, ISSN 1665-1715.
42
Idem. p. 9.
43
Barlomeu MELIÁ é um dos mais importantes etnólogos do povo Guarani e estudioso das Missões. Utilizou o apropriado termo em conferência proferida em Curitiba, na PUC/PR, em 2016.
44
SUSNIK, Branislava. Una visión socio-antropologica del Paraguay: XVI-½XVII. Asunción: Museo Etonográfico Dr. Andrés Barbero. 197 p.
45
PALÁEZ PADILLA, Jorge. Pueblos originarios y Estado nación en Paraguay: el proceso de construcción nacional durante la Dictadura perpetua de José Gaspar Rodríguez de Francia. San Luis Potosí/México: CENEJUS. 2015. 241 p.
46
O’DONNELL, Pacho. Artigas: la versión popular de la revolución de mayo. 1ª ed. Buenos Aires: Aguilar. 2012. 256 p.
47
RAMOS, Jorge Abelardo. História da nação latino-americana. Trad. Marcelo Hipólito López et alii. 3ª ed. Florianópolis: Insular. 2014. 584 p.
48
BRUSCHERA, Oscar H. Artigas. Coleção “Los Nuestros”. Montevideo: Editorial Nuestra América. Tradução de João Manuel Rodrigues. 1971. 180 p. pg. 9.
49
idem.
50
GUERRA VILABOY, Sergio. El Paraguay de Doctor Francia. Crítica & Utopia. Nº 5. Dictadura y Dictadores. Buenos Aires. Setiembre de 1981.
51
Texto do Decreto disponível em: Acesso em: mai. 2019.
52
ARECES, Nidia R. De la independencia a la guerra de la Tróplice Alianza (1811-1870). In: TELESCA, Ignacio. Historia del Paraguay. Asunción: Taurus Historia. 2010. 443 p. p. 157.
53
O Hino do Paraguai, que terminou de ser escrito apenas em 1846, afirma no verso segundo: Nueva Roma, la Patria ostentará/ dos caudillos de nombre y valer,/ que rivales —cual Rómulo y Remo—/ dividieron gobierno y poder./ Largos años —cual Febo entre nubes—/ viose oculta la perla del Sud./Hoy un héroe grandioso aparece/ realzando su gloria y virtud…
54
BOLIVAR, Simón. Obra politica y constitucional. Prólogo, antología y notas de Eduardo Rozo Acuña. Madrid: Tecnos. 2007. 203 p.
55
LYNCH, John. San Martín: soldado argentino, héroe americano. Traducción Alejandra Chaparro. Barcelona: Crítica. 2009. 382 p.
56
FRANCIA: 1817-1830/ Comentários Guido Rodrigues Alcalá. Vol II. Edición comentada, aumentada y corrigida de la colección Doroteo Barrero del Archivo Nacional de Asunción. Asunción: 2009. 1771 pg. p. 700.
57
ARECES, Nidia R. De la independencia a la guerra de la Tróplice Alianza (1811-1870). In: TELESCA, Ignacio. Historia del Paraguay. Asunción: Taurus Historia. 2010. 443 p. pg. 159.
58
idem. pg. 193.
59
TRIAS, Vívian. El Paraguay de Francia, el Supremo, y la guerra de la tríplice aliança. Buenos Aires: Crisis. 1975. p. 79
60
TRIAS, Vívian. El Paraguay de Francia, el Supremo, y la guerra de la tríplice aliança. Buenos Aires: Crisis. 1975.

PSICOLOGIA E PSICANALISE SYLVIAROMANO

Sylvia Romano < Este artigo discute os
critérios diagnósticos em psiquiatria e psicanálise a partir de um
estudo de caso assistido pela equipe multiprofissional do IPUB/UFRJ e
acompanhado pela equipe da Pesquisa Clínica em Psicanálise do Programa
de Pós-graduação do IPUB. Fazemos um estudo comparado entre o material
da anamnese da paciente e o material da entrevista psicanalítica feita
na pesquisa para demonstrar o modus operandi da psicanálise cujo cerne
é fazer emergir o sujeito a partir de sua fala. Essa diferença traz
sérias conseqüências na condução do tratamento. Palavras-chave:
Psicopatologia, diagnóstico, psiquiatria, psicanálise, estudo de caso
30 REVIST A LATINOAMERICANA DE PSICOPATOLOGIA FUND AMENT A L ano V, n.
1, mar/20 02 Em março de 1997 teve início, no Instituto de Psiquiatria
da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPUB-UFRJ), a Pesquisa
“Diagnóstico, prognóstico e cura em psicanálise”, posteriormente
incorporada à “Pesquisa clínica em psicanálise”. Essa pesquisa viria a
reunir, para o trabalho na Universidade, psicanalistas filiados a
diferentes instituições analíticas, bem como analistas com diferentes
níveis de formação, desde aqueles com vasta experiência clínica e
titulação acadêmica àqueles que, mais jovens, iniciam seu percurso
estando no Instituto na condição de alunos de Pós-graduação. Junto com
a Pesquisa, e como uma de suas atividades, inaugurava-se também no
Instituto a prática regular da apresentação psicanalítica de
pacientes. Quinzenalmente, por indicação da equipe de cuidados ou do
médico assistente (em geral um residente de psiquiatria), um paciente
é trazido à entrevista. Após a entrevista, a equipe e o conjunto de
colaboradores da pesquisa discutem o caso, interessados não apenas na
discussão diagnóstica, mas também nas possíveis indicações quanto à
direção do tratamento. Em alguns casos (como o que discutiremos aqui),
o trabalho se desdobra em um acompanhamento do caso, pela discussão
periódica com os profissionais envolvidos na assistência. O IPUB é,
além de uma instituição de ensino, um hospital universitário, com
ambulatório, enfermarias de internação, plantão de emergência e
serviços-dia, entre outros dispositivos. Vale dizer, uma instituição
psiquiátrica. A manutenção de uma pesquisa clínica em psicanálise, a
prática regular de apresentação de pacientes e, sobretudo, o
engajamento da quase totalidade dos pesquisadores na assistência
levada a cabo na instituição (prestando atendimento direto 31 ARTIGOS
ano V, n. 1, mar/20 02 ou na forma de supervisão) denotam uma posição:
a de afirmar a pertinência da psicanálise no campo de práticas
destinadas ao tratamento da loucura. Entendemos a psiquiatria como um
campo de saber e de práticas diversas, inaugurado pelo gesto de Pinel,
campo em relação ao qual a psicanálise não está em oposição, ainda que
nele introduza cortes significativos. Sabemos como se situa a invenção
freudiana em relação ao saber psiquiátrico, sobretudo quanto ao fato
de que Freud desloca a loucura do registro do erro e propõe que ela é
uma forma particular do sujeito dizer a verdade. Freud cria, assim, as
condições para que se venha a reconhecer no louco o estatuto de um
sujeito cuja fala tem positividade. Cria, em última análise, novas
referências para o campo terapêutico da psiquiatria, referências a tal
ponto relevantes que, em maior ou menor escala, têm sido convocadas a
cada vez que se quer fundamentar uma mudança consistente da
assistência. Atualmente, o triunfalismo da psiquiatria biológica
ameaça reduzir a clínica psiquiátrica à mera aplicação apriorística de
condutas: feita a equivalência entre os sintomas observados pelo
médico e o diagnóstico determinado nos sistemas de classificação, está
dada a conduta, prescindindo-se do sujeito e de suas circunstâncias.
Ao mesmo tempo, porém, o campo da psiquiatria observa o surgimento e o
amadurecimento de inúmeras iniciativas de uma clínica psiquiátrica
renovada. Nesta, a doença mental interessa na sua dimensão subjetiva.
Trata-se de psiquiatria, não de psicanálise, mas de uma psiquiatria
atravessada pela questão do sujeito. Neste contexto, a psicanálise
volta a ter lugar, ajudando a constituir o campo terapêutico e as
referências éticas desta psiquiatria com sujeito. Neste artigo, a
partir de um caso clínico, discutimos a lógica diagnóstica da
psiquiatria e da psicanálise procurando ir além da repetição das
conhecidas formulações sobre diagnóstico estrutural versus diagnóstico
fenomenológico. Uma paciente idosa, que chamaremos aqui de Maria,
trazida ao hospital pelo marido porque, segundo ele, há quatro dias
deixara de se alimentar, de falar, de manter hábitos de higiene, de
evacuar e de urinar. Recolhera-se à cama. Aceitou a internação sem
nada falar, e não formulou, ela mesma, nenhuma queixa. Após quatro
semanas de internação, recebeu alta para acompanhamento ambulatorial.
O caso foi apresentado pela equipe de cuidados na sessão clínica
psiquiátrica (sem a presença da paciente) e, pouco depois, a equipe
solicitou à paciente que participasse de entrevista psicanalítica
(apresentação de pacientes), conduzida pelo Dr. Antonio Quinet, no
âmbito da pesquisa acima referida. Esta circunstância permite cotejar,
no específico de um caso, duas lógicas diagnósticas diferentes, com
efeitos obviamente diferentes. De uma para outra, passou-se das
variações psiquiátricas em torno de “transtorno depressivo”, “síndrome
estuporosa” e “esquizofrenia catatônica” (uma verdadeira dispersão
diagnóstica, reveladora da confusão induzida pelo reducionismo
descritivo dos DSM) para um diagnóstico estrutural de histeria. 32
REVIST A LATINOAMERICANA DE PSICOPATOLOGIA FUND AMENT A L ano V, n. 1,
mar/20 02 O diagnóstico psiquiátrico A anamnese psiquiátrica apresenta
como motivo da internação o quadro descrito acima (parou de falar, se
alimentar, evacuar e urinar, etc.). Relata que a paciente não formula
queixa e resume a história de sua doença, iniciada há pouco mais de
vinte anos, com internação por quadro de apatia, mutismo, recusa de
ingestão alimentar e insônia. Desde então, passou por cerca de vinte
internações, sempre com o mesmo quadro. Essas internações duravam de
trinta a quarenta dias e, nelas, a paciente era, invariavelmente,
submetida a uma média de cinco sessões de eletroconvulsoterapia (ECT),
aparentemente a única terapêutica que a fazia sair do quadro
estuporoso. Nessa última internação a paciente é atendida pelo
psiquiatra que apresenta o caso pela primeira vez, tendo a paciente
saído do quadro e recebido alta sem haver sido submetida a ECT. A
remissão se deu com o uso de benzodiazepínicos e acompanhamento pela
equipe. A anamnese registra ainda que não há relatos da paciente, em
qualquer momento de sua evolução, escutar vozes, ver vultos, ter
episódios de humor exaltado ou mania de grandeza. Desde a internação
até o momento do exame, a paciente não defecara nem urinara, e se
recusara a ingerir alimentos. Ao exame, resiste ativamente às
mobilizações dos membros, tranca os lábios, cerra os dentes, e mostra
resistência ao exame físico e às tentativas de erguê-la do leito. O
médico descreve atitude negativista, mutismo, hipovigilância e
hipotenacidade, humor triste, afeto esmaecido, hipocinesia,
hipopragmatismo e negativismo ativo. Finalmente, o diagnóstico. O
diagnóstico sindrômico indicado pelo médico é o de síndrome catatônica
– na sessão clínica, apontou-se que este diagnóstico estaria mais
exato se definisse a síndrome como estuporosa. O diagnóstico
nosológico foi estabelecido segundo os dois sistemas internacionais de
classificação – a Classificação Internacional de Doenças (CID), da
Organização Mundial de Saúde, 10a revisão (CID 10); e o Diagnostic and
Statistical Manual of Mental Disorders, 4a edição (DSM-IV). Nos termos
da CID 10, o diagnóstico nosológico foi de “transtorno depressivo
recorrente, episódio atual grave com sintomas psicóticos”. Nos termos
da DSM-IV, “transtorno depressivo maior recorrente, severo, sem
sintomas psicóticos, crônico, com características catatônicas”. Como
diagnóstico diferencial, isto é, como segunda hipótese diagnóstica,
menos provável, mas da qual o quadro ainda não fora completamente
diferenciado, foi indicada esquizofrenia catatônica. Temos, portanto,
síndrome catatônica; síndrome estuporosa; transtorno depressivo
recorrente com sintomas psicóticos; transtorno depressivo maior
recorrente sem sintomas psicóticos; e, finalmente, como diagnóstico
diferencial, esquizofrenia catatônica. Convém entender o que isso quer
dizer. A começar pela distinção entre diagnóstico sindrômico e
diagnóstico nosológico. Como se sabe, uma síndrome é um conjunto de
sinais e sintomas. Não é, por assim 33 ARTIGOS ano V, n. 1, mar/20 02
dizer, a doença de fundo. Por exemplo, nos termos da psiquiatria, uma
síndrome delirante-alucinatória (isto é, a ocorrência de delírios e
alucinações) pode se dar em uma esquizofrenia, uma psicose reativa
breve, uma psicose maníaco-depressiva (nos termos atuais, transtorno
afetivo bipolar), etc. A síndrome seria o conjunto de delírios e
alucinações, e a doença de fundo, se podemos chamá-la assim, seria a
esquizofrenia, ou a PMD, etc. O diagnóstico sindrômico, portanto,
descreveria esse conjunto de sinais e sintomas, sem definir a doença
de fundo. Já a nosologia é, como está no dicionário, “o estudo das
moléstias”. O diagnóstico nosológico, portanto, indicaria qual é a
“moléstia”, qual é a doença de fundo, nos termos da nosografia
psiquiátrica (nosografia, por sua vez, é a “descrição metódica das
doenças”). O primeiro objetivo dessa distinção estaria em orientar a
clínica mais imediata, no sentido de sistematizar, pelo diagnóstico
sindrômico, os sintomas que devem ser atacados, sobretudo porque as
terapêuticas em psiquiatria são “sintomáticas”. Por exemplo, o lítio
não “cura” o transtorno bipolar de humor, mas estabiliza seus
sintomas; os fármacos antipsicóticos não “curam” a esquizofrenia, mas
controlam seus sintomas positivos, do tipo alucinação e delírio. O
diagnóstico sindrômico teria ainda a função de orientar o próprio
diagnóstico nosológico, uma vez que certas síndromes não ocorrem em
certas patologias, ou são patognomônicas de uma patologia, etc. O
diagnóstico nosológico, identificando a doença propriamente dita,
orienta uma intervenção de mais longo prazo e de alcance supostamente
mais profundo. Inserir o quadro clínico nos termos da nosografia, isto
é, decrevê-lo nos termos de categorias psicopatológicas
generalizáveis, permite uma avaliação prognóstica, permite que se
escolha a terapêutica segundo uma relação de custo e benefício mais ou
menos conhecida, etc. Deve-se notar que essa distinção entre síndrome
e nosologia, entre sintomas e doença, não equivale à distinção
psicanalítica entre fenômenos e estrutura, porque mesmo o diagnóstico
nosológico é fenomenológico (e, seguindo uma tendência atual, cada vez
mais “sindrômico”, como desenvolveremos adiante). Voltemos ao caso. O
diagnóstico sindrômico de estupor levou aos seguintes diagnósticos de
fundo: “transtorno depressivo recorrente, episódio atual grave com
sintomas psicóticos” (CID 10); e “transtorno depressivo maior
recorrente, severo, sem sintomas psicóticos, crônico, com
características catatônicas” (DSM-IV). Sendo diagnósticos bastante
descritivos, explicam-se praticamente por si mesmos, não havendo muito
o que acrescentar do ponto de vista psiquiátrico. Salvo, é claro, a
contradição na qual o primeiro diagnóstico afirma que há sintomas
psicóticos, e o segundo o desmente, afirmando que não há sintomas
psicóticos. A possível explicação está no fato de que a CID inclui o
“estupor depressivo” como um dos sintomas que caracterizam o episódio
como “episódio depressivo grave com sintomas psicóticos”, ao passo que
a DSM condiciona essa classificação à presença de alucinações e
delírios. Assim, o que à primeira vista parece um erro grosseiro do 34
REVIST A LATINOAMERICANA DE PSICOPATOLOGIA FUND AMENT A L ano V, n. 1,
mar/20 02 médico revela-se um “erro” mais sutil – atribuível não ao
médico, mas aos próprios sistemas de classificação – e que consiste em
que as minúcias classificatórias obscureçam a questão clínica
essencial: de que natureza é o estupor? O afeto depressivo acompanha
aí uma neurose ou uma psicose? Ou, ainda, o estupor catatônico,
diferindo do estupor dissociativo, suporia uma diferença marcante
entre psicose e neurose no campo nosológico? Na rubrica “episódio
depressivo grave com sintomas psicóticos”, a CID 10 adverte o clínico
de que o estupor depressivo deve ser diferenciado da esquizofrenia
catatônica e do estupor dissociativo. Provavelmente levado por sua
impressão inicial, um tanto equivocada de síndrome catatônica, e não
estuporosa, o psiquiatra indica como diagnóstico diferencial apenas a
esquizofrenia catatônica. Se tivesse procurado por estupor
dissociativo, teria encontrado uma descrição semelhante ao quadro
observado: “O estupor é diagnosticado com base em uma diminuição
extrema ou ausência de movimentos voluntários. O indivíduo deita-se ou
senta-se amplamente imóvel por longos períodos de tempo. Fala e
movimentos espontâneos e propositais estão completa ou quase
completamente ausentes. Ainda que algum grau de perturbação de
consciência possa estar presente, o tônus muscular, a postura, a
respiração e, algumas vezes, a abertura e os movimentos coordenados
dos olhos são tais que fica claro que o paciente não está adormecido
nem inconsciente”. Para que esse estupor seja considerado como
dissociativo, é preciso ainda que não haja “evidência de causa
física”. No caso de que tratamos, a paciente chega ao hospital
recusando-se a falar, comer, defecar e urinar. A um estímulo do médico
responde com “um ligeiro entreabrir de olhos, com uma momentânea
fixação do olhar”. Durante o exame, a paciente “resiste ativamente às
mobilizações dos membros e tranca os lábios, cerra os dentes, e mostra
resistência ao exame físico e às tentativas de erguêla do leito”. O
que temos, então? Uma paciente que chega ao hospital em estupor,
recusando-se a falar. Em função de seu mutismo inicial, o médico não
consegue avaliar uma série de itens da súmula psicopatológica, mas, de
todo modo, não vê evidências de sintomatologia psicótica positiva
(alucinações e delírios), nem no quadro atual, nem na história
pregressa. Só há, a rigor, um único aspecto sobre o qual o médico é
capaz de uma afirmação peremptória: a paciente “resiste ativamente” à
sua intervenção, mostra um “negativismo ativo”. Temos, ainda, que a
paciente vem trazida por um marido que diz ao médico que ela “só sai
com ECT”. Dessa vez, porém, sai do estupor com benzodiazepínicos, sem
a eletroconvulsoterapia, e segundo o relato da equipe que a
acompanhou, no contexto de um atendimento intensivo realizado “ao pé
do leito”. Deixando para trás a profusão descritiva dos manuais, e
reduzindo a clínica à sua expressão mais simples, o que temos
finalmente? Em psiquiatria, a síndrome de estupor aponta para
esquizofrenia catatônica; depressão (psicótica ou neurótica); ou 35
ARTIGOS ano V, n. 1, mar/20 02 transtorno dissociativo (histeria). O
estupor seria o sintoma; e esquizofrenia, depressão ou transtorno
dissociativo as doenças. Nos termos da psicanálise, depressão não é
doença, mas um estado, um afeto, que se encontra nas duas estruturas,
neurose e psicose; e “transtorno dissociativo” denota histeria. No
caso apresentado, não há qualquer indício de esquizofrenia; tampouco
há sintomatologia psicótica evidente. Logo, a distinção entre
depressão neurótica ou psicótica, bem como a hipótese de histeria,
dependem de algo que está ausente da apresentação psiquiátrica: a fala
da paciente. Poder-se-ia dizer que sua fala está ausente porque a
paciente esteve em mutismo. Sim, mas ainda durante a internação ela
saiu de seu mutismo, chamou o médico pelo nome, pediu licença para
passar o carnaval em casa, etc. E saiu do mutismo, segundo relato,
porque conversaram com ela intensivamente, ao pé do leito. Por sinal,
teve alta e foi indicada para acompanhamento ambulatorial. Logo, essa
“conversa” está ausente da anamnese psiquiátrica porque ela importa
cada vez menos para a fundamentação de um diagnóstico em psiquiatria.
Se é como objeto que a paciente se apresenta no hospital, chama a
atenção que ela esteja, na anamnese psiquiátrica, impedida de
comparecer como sujeito, uma vez que nada aparece de sua fala. De
fato, o diagnóstico em psiquiatria é uma “agregação de sintomas”
(SARACENO, ASIOLI e TOGNIONI, 1994, p. 13), e essa é uma clínica do
olhar, mais do que da escuta. Fazer falar é o ofício do psicanalista.
Vejamos, então, como comparecem, na fala da paciente, a distinção
entre psicose e neurose, e a hipótese de histeria. Um raciocínio
diagnóstico pela psicanálise Dissemos que a resposta a nossas
indagações, temos que buscá-la na fala da paciente. Ausente da
apresentação psiquiátrica, é protagonista na apresentação
psicanalítica de pacientes. Aqui, não apenas o paciente é chamado a
comparecer de viva voz como a entrevista é conduzida de modo a fazer
comparecer o sujeito. Podemos dizer, portanto, que a apresentação tem
tripla função: de transmissão, permitindo aos mais jovens acompanhar o
trabalho de um analista “ao vivo” (único contexto em que isso é
possível, ainda que o analista esteja numa situação atípica); de
diagnóstico, mais-além dos fenômenos; e de encontro clínico, cujos
efeitos são imprevisíveis. No que diz respeito ao diagnóstico da
paciente aqui em questão, orientando-nos pelo recorte que a
psicopatologia psicanalítica faz na nosologia psiquiátrica, nossa
indagação deve ser: é psicose? É neurose? Nesse caso, é neurose
obsessiva? É histeria? Uma primeira observação indica, já, o seguinte:
não há na entrevista, como veremos, maior evidência de psicose; não há
nada da ordem de uma neurose obsessiva; por eliminação, temos uma
indicação diagnóstica de histeria. No entanto, 36 REVIST A
LATINOAMERICANA DE PSICOPATOLOGIA FUND AMENT A L ano V, n. 1, mar/20
02 essa indicação, dando-se por eliminação, ainda não está justificada
teórica e clinicamente. Nossas tarefas, então, são duas: interrogar
se, efetivamente, podemos descartar o diagnóstico de psicose; e
positivar o diagnóstico estrutural de histeria. Quanto à hipótese de
psicose, a apresentação deprimida da paciente, estuporosa,
entregando-se como objeto ao leito, ao marido e ao eletrochoque,
indica a necessidade de interrogar se não se trata de uma melancolia.
Em que medida o estupor da paciente não é uma resposta a um Outro
absoluto, “caindo como objeto para descompletálo”, como aponta Alberti
(1997, p. 223)? Na depressão profunda, o melancólico está “todo
submetido ao Outro, até o ponto do estupor” (Ibid.). É certo que as
aparências enganam, mas é preciso tomá-las em consideração, ainda que
para perceber esse engano, e fenomenologicamente as duas descrições se
assemelham. Na vertente da psicose, o que temos que buscar? Temos que
buscar, nessa fala, os fenômenos elementares (que são as alucinações
verbais, o automatismo mental e, sobretudo, os distúrbios de
linguagem). Em se tratando de melancolia, temos que observar o que é
seu traço mais característico, a auto-acusação, que possui o estatuto
de um delírio. Finalmente, temos que discernir a posição do sujeito
face ao lugar do Outro – se uma posição reduzida a objeto de gozo do
Outro, que adquire consistência (psicose), ou se numa posição de
responder pela fantasia ao enigma do desejo opaco do Outro, que perde
consistência de gozo (neurose). Na vertente da neurose, temos que
indagar se há uma dialetização possível da posição frente ao Outro;
indagar sobre a divisão do sujeito. Resumidamente: não há na fala da
paciente à entrevista algo que é fundamental na melancolia, a
auto-acusação. A dor, tão enfatizada por Freud em “Luto e melancolia”,
também não aparece intensamente. Ao contrário, ela diz que sua vida é
boa quando não está doente e que se não fosse a doença ela seria
feliz. A doença, por sua vez, não mostra a centralidade do “eu” que se
observa na melancolia. Ela vem de fora, “de repente”. Também não se
observam, na fala da paciente, os distúrbios de linguagem que
caracterizam a psicose (neologismos, frases interrompidas, vazios de
significação…), bem como alucinações ou delírios que traduzam a
morte do sujeito. Do ponto de vista da psicose, resta interrogar a
posição frente ao Outro, o que podemos fazer no desenvolvimento da
hipótese de uma neurose histérica. Interroguemos, portanto, o
diagnóstico de histeria. Temos como ponto de partida a definição que
Maria dá de sua doença: sua doença é não falar. Reiteradamente, ao
longo da apresentação, a paciente é questionada sobre sua doença e
responde da mesma maneira. O início da entrevista é emblemático: o
psicanalista pergunta qual é o seu problema e Maria responde: “Há 18
anos que eu venho assim doente, né? Não como, não bebo, não tomo
banho, só fico em cima da cama, não falo com ninguém”. O analista pede
que explique melhor e ela diz: “Há 18 anos que eu venho doente, não
como, não bebo, não tomo banho, não falo com ninguém, só 37 ARTIGOS
ano V, n. 1, mar/20 02 em cima da cama”. Ele insiste, ela responde: “A
doença vem de repente”. Ele pede um exemplo: “Ah, ela vem eu começo a
ficar deitada, né? Começo ficar deitada, aí… aí eu fico… sem
comer, sem beber, já não falo mais com ninguém.” Nesse pequeno
fragmento, nessas primeiras linhas, já temos muita coisa: 1) sua
doença é não falar; 2) sua doença vem de fora, de repente, isto é, não
há uma implicação subjetiva; 3) o não falar não é apenas sua doença,
mas também a posição que Maria ocupa na entrevista. Avançando na
entrevista, encontramos outros elementos desse não falar. Na trilha de
não se implicar, a paciente diz que sua doença é “de família” e aponta
vários parentes que sofreram da mesma enfermidade. Entre eles um irmão
que “também morreu dessa doença (…) também era calado”. Diz ela: “A
doença dele era assim quase igual à minha, calada”. Logo adiante, em
resposta a uma pergunta, afirma que vem “nervosa já desde pequena”
porque “assistia a doença” desse irmão. E descreve uma cena: “Ele
ficava nervoso, ficava sem falar, a minha mãe ficava falando com ele,
ele não respondia, ficava assim nervoso, aí eu também, eu ficava
nervosa”. Tinha, então, cinco anos. Instada a falar sobre isso,
acrescenta: “Eu ficava assim também… querendo falar também, e não
falava”. Esses fragmentos já acrescentam algumas coisas mais: 4) sua
doença é igual à do irmão, o que permite pensar num sintoma formado
por identificação; 5) essa doença (e essa possível identificação) está
associada a uma cena, que envolve o irmão e a mãe; 6) essa doença não
é apenas não falar, mas querer falar e não falar, o que mostra a
divisão do sujeito em seu sintoma, ou na posição à qual está
identificada. Esse último ponto fica evidente também em outra fala da
paciente sobre sua doença, quando diz que o que tem não é “loucura”:
“… eu sou normal, né? Eu sei o que tá se passando (…) Eu só fico
mesmo sem comer, sem beber, sem falar, mas eu sei de tudo. Só não
falo”. Finalmente: Maria comete um único lapso durante a apresentação.
Um só, mas suficiente. No início da entrevista, dissera mais de uma
vez que vem doente há 18 anos. Adiante, é perguntada sobre quando sua
doença começou: “aos dezoito anos”. Dezoito anos? “É. Eu tava com 46
anos”. Dezoito anos, ela já o contara antes, foi a idade em que Maria
se casou. Na ocasião, seus pais não aprovavam que ela se casasse.
Instada pelo noivo a fazer uma escolha, fugiu de casa com ele. Em
torno disso, aparece na fala de Maria uma segunda cena: sua mãe não
queria perdoá-la, então seu pai “ajoelhou nos pés dela e pediu pra ela
me perdoar. Aí ela me perdoou. Aí ela disse assim ‘tá vendo, ele gosta
de você…” Esse novo fragmento nos dá mais alguns elementos: 7)
mostra a presença do recalque, corroborando a idéia de uma estrutura
neurótica; 8) é uma indicação do inconsciente de que seus sintomas têm
relação com a forma pela qual se casou; 9. há mais uma cena associada
a sua doença, a do pai de joelhos diante da mãe, pedindo por ela,
Maria. 38 REVIST A LATINOAMERICANA DE PSICOPATOLOGIA FUND AMENT A L
ano V, n. 1, mar/20 02 É inevitável apontar a natureza edipiana dessa
última cena: o pai mostra seu amor pela filha intercedendo em favor
dela junto à mãe. Mas a cena não mostra só o Édipo: mostra, nele, um
pai fraco, um pai cuja intervenção sobre a mãe é a de se ajoelhar, um
pai que cumpre sua função simbólica com certa precariedade. A mãe, por
sua vez, não é apenas forte, mas tirânica: “Ela gostava muito de
bater, batia muito na gente; (…) eu apanhava muito”; “meu pai não
dava muita opinião não, porque a minha mãe é que gostava mais de
mandar”. Se a clínica é a manifestação ordenada e articulada de
elementos co-variantes, isto é, se uma estrutura é dada pela relação
de alguns traços pertinentes entre si, que dispensam uma profusão
fenomenológica, já temos o suficiente para uma primeira afirmação
positiva do diagnóstico de histeria: há conflito, logo, há recalque,
há sujeito dividido; o sintoma é formado por uma identificação com um
irmão, um homem; há duas cenas que indicam uma construção fantasística
na base do sintoma, e numa delas o pai é um pai fraco, objeto de
disputa entre ela e a mãe; não há implicação subjetiva, mas, ao
contrário, indiferença. No entanto, falta algo essencial, ainda que só
possamos aceder a isso pela via de uma construção. Trata-se da posição
desse sujeito na fantasia. Temos uma primeira cena: o irmão deixa de
falar e isso faz com que a mãe, normalmente severa, fale com ele, peça
a ele que fale. Nessa cena, o mutismo do irmão coloca a mãe como
desejante e faz dele objeto do desejo da mãe, não cedendo nesse
momento à demanda que ela lhe faz para que fale. Aos 18 anos, Maria
foge de casa para consumar um casamento que os pais não aprovam.
Temos, então, a segunda cena: o pai de Maria se ajoelha diante da
mulher, intercedendo em favor da filha face a uma mãe tirânica. Há
ainda um terceiro tempo, o do desencadeamento do sintoma, quase vinte
anos depois. Interrogada, a paciente não informa nada sobre esse
desencadeamento, mas o lapso diz o mais importante: quaisquer que
tenham sido as circunstâncias desencadeadoras, seu sintoma tem origem
na forma como se casou. Ela não está doente “há 18 anos”, mas “aos 18
anos”. Se a fantasia é a resposta que o sujeito dá ao enigma do desejo
do Outro, e está na base do sintoma, podemos construir o seguinte: a
posição de não falar à qual a paciente está identificada é uma posição
na fantasia cujo sentido é barrar o Outro e fazê-lo desejante,
faltoso, descompleto. Se o pai aparece como fraco na tentativa de
barrar o gozo da mãe (barrar o Outro), a paciente se identifica ao
irmão que, com seu sintoma, barra a mãe em sua demanda imperiosa. Se a
paciente ocupa, na fantasia, a posição do irmão, alguém estará no
lugar da mãe, que cuida, mas que fala por ela e é tirânica – no caso,
o marido. Vemos, portanto, que o quadro sintomático vem fazer o Outro
desejante e colocar a paciente na cena de recusa à demanda do Outro:
fale, funcione, cumpra suas tarefas de dona de casa, etc. 39 ARTIGOS
ano V, n. 1, mar/20 02 É necessário, nesse ponto, voltar à questão da
melancolia. Se há um insucesso do pai, enquanto pai simbólico, em
barrar o gozo da mãe; se a paciente, para barrar o Outro, deve
identificar-se como objeto e cair em posição de mortificação; não
temos aí melancolia? A interrogação é inevitável. No entanto, como já
dissemos, a fala da paciente não traz o delírio de auto-acusação
fundamental na melancolia. Além disso, parece suficientemente
fundamentada a idéia de que o estupor, o mutismo, a mortificação,
entre aspas, têm mais o estatuto de sintoma (ou de acting-out) do que
de uma resposta que vem do real. Noutras palavras, está mais na ordem
do paradoxo do sintoma, de a um tempo elidir e representar o sujeito,
do que de uma desaparição do sujeito. Ou nos termos mais conhecidos:
tem o estatuto de retorno do recalcado, e não de algo que, foracluído
no simbólico, retorna no real. Em outras palavras, dissemos que esse
sujeito não é objeto de gozo do Outro. O Nome-do-pai fez função
simbólica. Aos 18 anos, Maria fez uma escolha que contrariou uma mãe
tirânica. Vinte anos depois, alguma coisa desarrumou-se na posição que
sustentava face a seu desejo e a esse Outro. Sua resposta foi a
“dissociação”, o estupor. No entanto, o preço do sintoma é, nesse
caso, altíssimo. É o preço de entregar-se ao imobilismo, ao silêncio,
à tristeza, ao estupor, às internações, ao eletrochoque, para “atuar”
uma fantasia. A direção do tratamento na psicanálise, obviamente, vai
no sentido inverso. De todo modo, um desarranjo já parece ter sido aí
introduzido pela escolha da equipe (plena de implicações clínicas) de
não responder à demanda de eletrochoque e oferecer a ela não a
psicanálise, mas uma terapêutica da palavra. Como resultado dessa
oferta, uma nova demanda: dessa vez, ao sair de seu mutismo, ela pede
ao doutor que não lhe dê eletrochoque. Pouco antes da apresentação
aqui relatada, Maria iniciou atendimento com uma aluna do Curso de
Especialização em Atendimento Psicanalítico do Instituto. Nas duas
entrevistas realizadas, o marido fez questão de estar junto a ela. A
apresentação de pacientes foi a primeira ocasião em que o marido se
viu impedido de participar. Como resultado mais imediato, primeiro
efeito da apresentação, o marido alegou problemas de saúde e uma
viagem para não mais trazer a paciente ao atendimento. Semanas depois,
Maria foi novamente trazida ao hospital pelo marido, novamente em
estado deplorável. Dessa vez, porém, novos acontecimentos indicaram
que essa entrevista pode ter tido outros efeitos. Na entrevista, fora
assinalada a semelhança de seu nome com o do irmão, e também o fato de
que os nomes de todos os oito irmãos e irmãs eram compostos pela
palavra “amar”. Nessa nova internação, Maria voltou a sair do estupor
e do mutismo sem eletrochoque. A primeira frase que disse foi: O meu
mal é amar demais. 40 REVIST A LATINOAMERICANA DE PSICOPATOLOGIA FUND
AMENT A L ano V, n. 1, mar/20 02 Um comentário final Acompanhamos duas
lógicas diagnósticas. A psiquiátrica, fenomenológica; e a
psicanalítica, chamada estrutural, que se propõe a ir além dos
fenômenos. Para encerrar, um último comentário. Se o diagnóstico
psiquiátrico sempre foi fenomenológico, é importante notar que,
atualmente, assistimos a uma tendência na psiquiatria. Trata-se da
tendência de substituir as grandes categorias (neurose, psicose
maníaco-depressiva, esquizofrenia, toxicomania…) por descrições
especificadas de fenômenos objetivos. Um exemplo da CID 10:
“transtorno mental e de comportamento decorrente do uso de solventes
voláteis, síndrome de dependência, atualmente abstinente, porém em
ambiente protegido”. Acredite se quiser, isso é um diagnóstico e tem
um número: CID 10, F18.2.21. É importante reter, acerca disso, o
seguinte. Essa é uma tendência mais ou menos recente e reflete a
influência exercida pelo sistema norte-americano de classificação. A
Classificação Internacional de Doenças, da Organização Mundial de
Saúde (a CID) transformou-se significativamente na versão atual (a
décima), aproximandose da lógica descritiva do Diagnostic and
Statistical Manual of Mental Disorders (DSM). Em relação à versão
anterior, as categorias nosográficas da CID são cada vez mais
descritivas, detalhistas, casuísticas, em detrimento das grandes
categorias que já caracterizaram a psicopatologia psiquiátrica. Basta
dizer que o capítulo sobre “Transtornos Mentais e de Comportamento”,
da CID 10, tem mais de 360 subcategorias diagnósticas, algumas das
quais ainda podem ser mais especificadas, segundo cursem com ou sem
sintomas adicionais, em curso contínuo ou episódico, etc., o que eleva
o número final de diagnósticos possíveis a cerca de 800. Na introdução
ao capítulo, os editores enfatizam essa ampliação como uma vantagem e
tratam ainda de outras mudanças em relação à versão anterior. Uma
delas é a abolição do uso da divisão entre psicose e neurose: “… os
transtornos são agora arranjados em grupos de acordo com os principais
temas comuns ou semelhanças descritivas”, e o termo “neurose” é
reduzido a um “uso ocasional” (CID 10, 1993: 3). Em termos da própria
psiquiatria, isso significa uma tendência da classificação da OMS de
se aproximar da fragmentação que já caracterizava o norte-americano
DSM. Sem nem mesmo chegarmos a evocar as categorias de sujeito e
estrutura, o que se vê aí é um empobrecimento interno à própria lógica
psiquiátrica. Empobrecimento que consiste em privilegiar a descrição
dos sintomas, privilegiar a síndrome em detrimento da doença, em
detrimento da categoria de doença. No que diz respeito à interessante
distinção entre diagnóstico sindrômico e diagnóstico, isso resulta em
eliminá-la na prática, uma vez que o diagnóstico nosológico é, cada
vez mais, um diagnóstico sindrômico. Essa minúcia descritiva parece
formalização, mas na verdade vem no lugar da formalização das grandes
categorias. Não por acaso, os editores 41 ARTIGOS ano V, n. 1, mar/20
02 reivindicam que as descrições e diretrizes diagnósticas da CID “não
contêm implicações teóricas” (1993: 2). Internamente à discussão
psiquiátrica, isso não é irrelevante. Denota uma vitória hegemônica da
dita psiquiatria biológica e uma derrota, talvez momentânea, daqueles
que pensam a clínica em outra perspectiva. E significa um
empobrecimento da clínica, o que é inclusive afirmado por muitos
psiquiatras. Felizmente, no caso aqui estudado, a obediência às
minúcias classificatórias não impediu que o psiquiatra e a equipe
conduzissem o caso com notável sensibilidade clínica e discernimento.
Não por acaso, a paciente saiu do estupor sem ECT, mas pela conversa
intensiva ao pé do leito – exemplo da boa clínica psiquiátrica,
resgatando a clínica como prática que se faz junto ao paciente, ao
leito, e como mediação entre o universal da nosografia e o singular de
cada caso. Uma maneira interessante (porque não habitual) de marcarmos
as limitações do diagnóstico em psiquiatria é recorrer a um manual
interno ao seio da própria psiquiatria, mas aí dissonante. O Manual de
Saúde Mental aqui citado (SARACENO et. al., 1994) foi traduzido, em
1991, pelo Ministério da Saúde do Brasil como um “guia básico para
atenção primária”. Esse manual critica o DSM por suas “categorias
diagnósticas muito articuladas e requintadas que não têm aplicação
prática na realidade clínica” e elogia a CID (então na nona edição)
por ser um sistema de classificação “simples e útil” e propõe um
“diagnóstico em grandes categorias”. Significativamente, esse manual –
psiquiátrico – divide as patologias entre aquelas caracterizadas “por
um conflito entre o sujeito e suas defesas para com suas próprias
pulsões” (são as “neuroses, transtornos de personalidade, distúrbios
psicossomáticos, alcoolismo e abuso de fármacos e de drogas”); e
aquelas que “se desenvolvem segundo uma vertente de desintegração”
(são a “esquizofrenia e psicoses afetivas”). Finalmente, o manual
define o diagnóstico psiquiátrico como “uma agregação de sintomas”.
Adiante, afirma que, como dado isolado, o diagnóstico psiquiátrico
“serve principalmente para estabelecer a estratégia de intervenção
psicofarmacológica” (SARACENO et. al., 1994, p. 13-6). Assim
estabelecidas, na própria psiquiatria, as limitações do diagnóstico
psiquiátrico, mencionemos o “mais-além dos fenômenos” que é próprio do
diagnóstico psicanalítico. François Leguil (1986, p. 61 e segs.)
define esse “maisalém” como sendo a exigência de que o diagnóstico
diga “as maneiras como se repartem na estrutura os efeitos de uma
confrontação com o enigma do desejo do Outro”. Leguil recorre ao grafo
do desejo, de Lacan, para dar ainda outra formulação a esse
“mais-além”. O grafo indica que o sujeito responde ao enigma do Outro
em quatro níveis: no nível das identificações ideais, “o diagnóstico
confina com a etiqueta”; no nível do eu e dos semelhantes, o
diagnóstico interessa ao sociólogo; no nível exclusivo do sintoma, o
diagnóstico indica o “significado do Outro”, enquanto que à clínica
interessa o que resulta disso para o sujeito; logo, o diagnóstico deve
ser situado no nível em que a fantasia se implica no sintoma. 42
REVIST A LATINOAMERICANA DE PSICOPATOLOGIA FUND AMENT A L ano V, n. 1,
mar/20 02 Foi o que se tentou desenvolver no diagnóstico psicanalítico
do caso de que tratamos aqui. No entanto, em psicanálise, o
diagnóstico é de estrutura, mas é também sob transferência. O que
exige mais uma palavra sobre a apresentação de pacientes. Nela, é
discutível dizer que se está sob transferência. Todavia, o analista
não abre mão de ocupar um lugar, e de fazer um trabalho que venha
produzir uma certa fala, que possa, idealmente, mostrar algo da
posição do sujeito na fantasia (assim foi na apresentação aqui
relatada, como pudemos ver). Portanto, não se trata apenas de dizer
que a fala do paciente está presente na apresentação psicanalítica e
ausente na psiquiátrica (na psiquiatria mais fiel à tradição clínica,
a fala do paciente também está presente). Trata-se de que na
apresentação (entrevista) psicanalítica, essa fala é produzida, num
certo registro da transferência, no registro de um certo
endereçamento. Aí reside a tentativa do mais-além dos fenômenos. O
mais-além dos fenômenos é a relação, a posição diante do outro. Assim
como um diagnóstico decorre de uma definição prévia (explícita ou
implícita) sobre a função de uma terapêutica, também influencia, ele
mesmo, os alcances de um tratamento. No caso aqui apresentado, o
diagnóstico de transtorno depressivo recorrente só alcançará iluminar
e intervir sobre cada recorrência depressiva. A psiquiatria resolve
esse problema intervindo sobre as situações mais agudas e encaminhando
esses pacientes para a “psicoterapia”. Certo, mas aí começa o
trabalho. Ao propor que o diagnóstico incida não exclusivamente sobre
o sintoma, mas sobre a implicação do sujeito no sintoma, a psicanálise
cria as condições para que a própria intervenção clínica vá mais-além.
Referências ALBERTI, S. Os quadros nosológicos: depressão, melancolia
e neurose obsessiva. In: A dor de existir e suas formas clínicas. Rio
de Janeiro: Kalimeros, 1997. CID 10 / ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE SAÚDE –
Classificação de Transtornos Mentais e de Comportamento da
Classificação Internacional de Doenças. 10a ed. Porto Alegre: Artes
Médicas, 1993. DSM-IV / AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION – Diagnostic
and Statistical Manual of Mental Disorders. 4th ed. DSM-IV American
Psychiatric Association, Washington, 1994. FIGUEIREDO, A.C. A relação
entre psiquiatria e psicanálise: uma relação suplementar. Informação
psiquiátrica, v. 18, n. 3, p. 87-9, 1999. FREUD, S. Luto e melancolia.
In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas. Rio
de Janeiro: Imago, 1974. v. XIV. KAPLAN, H. e SADOCK, B. Compêndio de
psiquiatria. Porto Alegre: Artes Médicas, 1990. LEGUIL, F. Mais-além
dos fenômenos. In: A querela dos diagnósticos. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1989. 43 ARTIGOS ano V, n. 1, mar/20 02 QUINET, A. Teoria e
clínica da psicose. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997.
SARACENO, ASIOLI e TOGNONI. Manual de Saúde Mental. São Paulo:
Hucitec, 1994.ResponderEncaminhar

Acumulação primitiva, expropriação e violência jurídica: expandindo as fronteiras da sociologia crítica do direito

Sylvia Romano




<sylviaromano@gmail.com>17 de ago. de 2021 09:32Responderpara mimAcumulação primitiva, expropriação e violência jurídica: expandindo as
fronteiras da sociologia crítica do direitoPrimitive accumulation, expropriation and legal violence: expanding
the borders of critical sociology of law Resumo
 Abstract
 Text1. Introdução 1 1 A primeira versão deste artigo apareceu como
“Kapitalistische Landnahme: Eine Erweiterung der kritischen
Rechtssoziologie” na Série Working Paper 3/17 do DFG
-Kollegforscher_innengruppe Postwachstumsgesellschaften. Gostaria de
agradecer a Benjamin Seyd, Emma Dowling, Florian Butollo, Karina
Becker, Klaus Dörre, Ligia Fabris Campos, Maria Backhouse e Yannick
Kalff pelas críticas e sugestões, que recebi durante minha estadia
como Senior Fellow no Kolleg Postwachstumsgesellschaften da
Friedrich-Schiller-Universität Jena, na Alemanha, no inverno de 2017.
Gostaria de agradecer, ainda, a Carolina Vestena, Cesar Mortari
Barreira, Lena Lavinas, Manuela Boatca, Paulo Fontes, Sergio Costa e
Virginia Fontes por comentários essenciais para o desenvolvimento da
presente pesquisa.
2. Direito e capitalismo: o caráter idealista da crítica antiprodutivista
3. Forma jurídica no capitalismo
4. Direito e acumulação primitiva
5. Conclusão Referências
 Datas de Publicação
 HistóricoResumoO presente artigo tem por objetivo indicar uma possibilidade de
ampliação das condições de compreensão da reprodução sócio-jurídica do
capitalismo na sociologia crítica do direito. Primeiramente, demonstro
que o giro antiprodutivista (de tipo habermasiano) renuncia a esse
projeto epistemológico, conduz a sociologia crítica do direito ao
liberalismo-idealismo e, com isso, produz um déficit analítico na
compreensão da organização jurídica das estruturas fundamentais da
acumulação. Em seguida, pretendo indicar que a crítica do direito (de
tipo pachukaniana) oferece uma solução a esse impasse, ao reconhecer
que o dever ser já se encontra realizado nas estruturas de
desigualdade. Sustento, todavia, que tal crítica não consegue esgotar
as possibilidades de se conhecer a reprodução sócio-jurídica do
capitalismo, pois se limita a apreender a posição do direito apenas no
momento da troca de mercadorias. Para além desse momento, no entanto,
o desenvolvimento capitalista, pressionado por situações de
sobreacumulação, possui uma fase expansionista dirigida à tomada de
espaços não-mercantilizados, aonde se pode deixar fluir o excedente,
abrindo um novo ciclo de valorização. Essa fase será analisada por
meio da noção de repetição permanente da acumulação primitiva e da
teoria da expropriação capitalista do espaço. Minha hipótese é a de
que, nessas condições, o direito aparece como violência jurídica
explícita e prescrição expressa da desigualdade. Sob essas estruturas,
afirmo que o direito opera com base em: discursos jurídicos de
othering (direitos humanos), regimes de privatização (parcerias
público-privadas) e direito penal (criminalização do protesto e da
pobreza). Ao final, argumento que o conceito de acumulação primitiva e
a teoria da expropriação capitalista do espaço têm potencial de fazer
a sociologia crítica do direito avançar no conhecimento da reprodução
sócio-jurídica do capitalismo.Palavras chaves:
capitalismo; violência jurídica; acumulação primitiva; teoria da
expropriação do espaçoAbstractThe present article aims to indicate a possibility of expanding the
conditions of understanding of the socio-legal reproduction of
capitalism in the critical sociology of law. First I demonstrate that
the antiproductivist turn (following the Habermasian form) resigns
this epistemological project: It leads the critical sociology of law
to the liberalism-idealism and thereby produces an analytical deficit
in understanding the legal organization of the fundamental structures
of accumulation. Next, I suggest that the critique of law (following a
Paschukanian form) offers a solution to this deadlock by recognizing
that the “ought to be” (Sollen) is already achieved in the structures
of inequality. I argue however that such criticism can not exhaust the
possibilities of understanding the socio-legal reproduction of
capitalism, since it embraces the position of law only at the moment
of the exchange of commodities. Nevertheless, beyond this momentum the
capitalist development, pressured by situations of overaccumulation,
has an expansionary phase oriented to the taking of non-commodified
spaces, where the surplus can flow, opening a new cycle of
valorization. This phase will be analyzed through the notion of
permanent repetition of primitive accumulation and the theory of
Landnahme. My hypothesis is that, under these conditions, the law
appears as explicit legal violence and prescription of inequality.
Considering these structures, I state that law operates on the basis
of: legal discourses of othering (human rights), privatization regimes
(public-private partnerships) and criminal law (criminalization of
protest and poverty). Finally, I argue that the concept of primitive
accumulation and the theory of Landnahme have the potential to make
critical sociology of law to advance in the understanding of the
socio-legal reproduction of capitalism.Keywords:
capitalism; legal violence; primitive accumulation; theory of space
expropriation1. Introdução 1A crítica social sempre encontrou dificuldades para conhecer o
fenômeno jurídico. Na verdade, seu principal obstáculo tem sido um
desejo (que de tempos em tempos reaparece) de esboçar um programa
normativo para o direito, que fosse capaz de induzi-lo como meio de
emancipação, transformação social ou bastião das classes oprimidas.
Esse desejo tem, por diversas oportunidades, gerado sérios déficits
analíticos e descritivos nas formulações da sociologia crítica do
direito.Tais déficits podem ser encontrados tanto em um nível macro quanto
microssociológico. Em relação ao primeiro, o desejo por um programa
normativo tem levado a sociologia crítica do direito a não conseguir
perceber a ordem jurídica enquanto uma das estruturas fundamentais do
capitalismo. Em relação ao segundo nível, ele tem desprovido a
sociologia crítica do direito de instrumentos analíticos para
compreender as reestruturações regulatórias promovidas nas diversas
fases da acumulação do capital. Esse último problema fica ainda mais
claro quando os diferentes programas normativos são confrontados com
as transformações jurídicas e institucionais do neoliberalismo.
Indiferente a isso, o desejo permanece, todavia, contrafactual e se
converte em idealismo jurídico.Tomarei esse desejo como o ponto de partida para investigar uma das
principais questões epistemológicas da sociologia crítica do direito:
a possibilidade (limites e extensão) de se conhecer a reprodução
sócio-jurídica do capitalismo. Essa investigação será conduzida a
partir de um diálogo com o debate sociológico desenvolvido em língua
alemã. Outras referências teóricas e empíricas (como, por exemplo,
David Harvey e Edward Palmer Thompson) serão todavia mencionadas, mas
apenas no âmbito desse diálogo. 2Em primeiro lugar, pretendo mostrar, a partir de uma crítica à teoria
normativa do direito de Jürgen Habermas, que o desejo acima mencionado
renunciou a oferecer uma resposta à questão epistemológica citada e,
com isso, abandonou o campo da crítica social em favor do liberalismo
jurídico (Item 2). Em seguida, analisarei de que forma a sociologia
crítica do direito reagiu a esse risco por meio da crítica à forma
jurídica. Com essa última, foi possível reconhecer não apenas que o
dever ser já se encontra realizado nas estruturas de desigualdade do
capitalismo, mas também a relação entre forma jurídica e forma da
mercadoria. Pretendo sustentar, todavia, que a crítica à forma
jurídica não esgota as possibilidades de se conhecer a reprodução
sócio-jurídica do capitalismo (Item 3).Meu objetivo é demonstrar que, ao lado da crítica à forma jurídica, a
teoria da acumulação primitiva tem um enorme potencial em fazer
avançar a sociologia crítica do direito em sua questão epistemológica
fundamental (Item 4). Para isso, pretendo reconstruir os principais
autores dessa teoria (repito: no âmbito do debate alemão) e explicar
as condições de desenvolvimento do capitalismo com base em uma
repetição permanente dos processos de acumulação primitiva. Em
seguida, observarei a configuração jurídica dessa etapa capitalista
expansionista. Minha hipótese é que, nessas condições, o direito
aparece como violência jurídica explícita e prescrição expressa da
desigualdade. Enquanto tal, ele é constituído pelos discursos
jurídicos (sobretudo, os de direitos humanos) que produzem othering,
pela ordem jurídica da privatização (principalmente, as parcerias
público-privadas) e pelas técnicas repressivas do direito penal (que
criminalizam os movimentos sociais e a pobreza por meio, por exemplo,
de legislações contra o financiamento ao terrorismo).2. Direito e capitalismo: o caráter idealista da crítica antiprodutivistaNão é recente o debate sobre os efeitos produzidos na teoria crítica
como um todo pelo chamado “giro antiprodutivista” do pensamento social
desde os anos 1970 (entre outros, Antunes 2013: 112;
Dörre/Sauer/Wittke 2012: 13ss.; Rüddenklau 1982; Streeck 2013). Como
motor dessa reorientação, especulações a respeito de uma possível
crise da sociedade do trabalho e de suas energias utópicas começaram a
se tornar diagnósticos dominantes no interior das próprias teorias
críticas (Habermas 1973 e 1985). Tais diagnósticos sustentavam-se,
entre outras, em interpretações que atribuíam ao advento do Estado de
Bem-Estar o caráter apaziguador da luta de classes e se desenvolveram
com base em leituras sobre a chamada sociedade pós-industrial, que
teria levado à formação de uma massa supérflua por meio da
substituição via avanço tecnológico do trabalho vivo pelo morto (Bell
1973; Gorz 1983). Essas especulações levaram uma parcela
significativamente relevante da crítica social a destituir a
centralidade do trabalho como categoria sociológica fundamental e a
realizar um progressivo abandono do conflito socioeconômico como
objeto de investigação (Offe 1989).Não se trata aqui de reconstruir todas as variações teóricas que
emergiram do giro antiprodutivista. O mais importante é observar que,
quando se ocupa do fenômeno jurídico, esse giro tende a se desdobrar
em uma concepção idealista, que é incapaz de apreender os mecanismos
de reprodução do direito e seu papel na sociedade capitalista. Para
demonstrar essa afirmação, analisarei aquela que, originária da teoria
crítica, se tornou uma das mais influentes análises sobre o direito
nas últimas décadas. Refiro-me à teoria de Habermas.32.1. Centralidade do direito na crítica antiprodutivistaDo ponto de vista dessa teoria, o giro antiprodutivista levou à
formulação de um conceito de sociedade bipartida, em que tanto a
categoria trabalho quanto o conflito socioeconômico foram reduzidos a
uma mera ameaça destrutiva àquilo que seria o espaço de sociabilidade,
agora definido apenas por interações comunicativas.Com isso, Habermas propõe uma reorientação da crítica social,
dirigindo suas atenções para a então chamada esfera da interação,
âmbito que seria formado apenas por ações comunicativas mediadas
simbolicamente, que se orientam segundo normas compreendidas por mais
de um sujeito agente (Habermas 1968, 77ss). A referência para essa
mudança teórica, como se sabe, é a distinção interação/trabalho que,
no transcorrer da obra de Habermas, se transformou na distinção
sistema/mundo da vida.Para Habermas, o advento da sociedade moderna implicou a emergência de
uma estrutura social altamente diferenciada em funções, competências,
interesses etc. Tais diferenças são, porém, compreendidas nos termos
da oposição entre mundo da vida e sistema. Tal oposição, conforme
Habermas (1988: 258), é um processo social segundo o qual o avanço da
racionalização e da diferenciação levou ao desacoplamento de ambas as
esferas, que passaram a se distinguir simultaneamente uma da outra. A
sociedade moderna é, assim, dividida em dois âmbitos. De um lado, o
mundo da vida, horizonte do agir comunicativo livre de coação e
pressão, que se estrutura por meio da socialização das personalidades
individuais (processos de aprendizagem que constituem a identidade
pessoal necessária à interação), da reprodução cultural (repositório
de experiências utilizado pelos atores para a interpretação de seus
diversos contextos) e da integração social (conjunto de normas
legítimas que viabilizam a solidariedade), onde estão ancoradas a
esfera privada, a sociedade civil e a esfera pública (Habermas 1988:
208 ss). De outro, se encontra o sistema, espaço de reprodução de
ações instrumentais e estratégicas orientadas por uma racionalidade
com respeito aos fins, em que operam os meios dinheiro e poder
(Habermas 1998: 428).Toda a formulação habermasiana se desenvolve em torno da questão da
disrupção do mundo da vida pela expansão do sistema. O problema está
no desequilíbrio de caráter patológico pela expansão colonizadora do
sistema sobre o mundo da vida (Habermas 1988:445–594). Essa ideia de
desequilíbrio foi desenvolvida no transcorrer da obra de Habermas por
meio do problema teórico das condições da integração social (Schuartz
2002).Para Habermas (1998, 42), em função da superação da pré-modernidade
pelo desencantamento do mundo (Entzauberung der Welt), a integração
social tornou-se dependente exclusivamente de processos de
entendimento e discursivos. Esses processos exigem normas de
coordenação que, ao não poderem recorrer a um conteúdo moral unitário
como na sociedade pré-moderna, aumentam o risco de uma diferenciação
interna ao mundo da vida entre sistema e mundo da vida, o que gera
interações estratégicas e dissenso no próprio mundo da vida que, como
ideal regulativo, deveria visar justamente o contrário, isto é,
deveria visar o consenso. E mais: como a modernidade também depende do
sistema que passa a se desacoplar do mundo da vida, libera uma escala
ainda maior de ações estratégico-instrumentais, cujo resultado é a
difusão social do dissenso. Para resolver esse problema da integração
social, Habermas coloca o direito em cena.Nas palavras do autor, o direito permite a “regulação normativa de
interações estratégicas sobre as quais os atores se autocompreendem”
(Habermas 1998: 44). Dessa perspectiva, o direito assume a capacidade
de vincular as duas dimensões separadas – a comunicativa, voltada ao
entendimento, e a estratégico-instrumental, voltada aos fins. Seu
argumento se desenvolve nos seguintes termos: como as normas jurídicas
obrigam universalmente a todos os participantes de uma interação
estratégica, contém em si o motor da integração social, isto é, ainda
que as duas dimensões citadas estejam separadas aos olhos dos atores,
as normas podem satisfazer as duas dimensões contraditórias (Habermas
1998: 44). Habermas sustenta que, para a ação
estratégico-instrumental, o direito funciona como uma “limitação
factual”, que fixa regras às quais os atores veem-se obrigados a
adaptar seus comportamentos; para a ação orientada ao entendimento,
ele impõe obrigações recíprocas e, com isso, torna possível o
reconhecimento da intersubjetividade (Habermas 1998: 44). Diante desse
quadro, o autor conclui que o direito é a instância normativa da
sociedade que realiza a mediação entre sistema e mundo da vida e que
permite a tradução de impulsos comunicativos advindos do mundo da vida
em termos de poder e dinheiro, bloqueando, assim, a expansão da
racionalidade instrumental e estratégica.Esses impulsos teóricos geraram um amplo debate sobre o potencial do
discurso jurídico e sua dimensão emancipatória, sobre o caráter
cosmopolita do direito, sobre a formação de uma comunidade jurídica
global, bem como sobre a renovação do projeto kantiano da paz
(jurídica) perpétua.4 Quais, no entanto, foram as principais perdas
analíticas geradas por essa orientação antiprodutivista?2.2. Antiprodutivismo, idealismo jurídico e alienação do direitoDentre as diversas perdas, duas se destacam. A primeira delas
refere-se ao fato de que, desde quando tal giro se iniciou, foi
desencadeado um “esquecimento” gradativo do capitalismo como categoria
analítica. E isso até – e principalmente – na própria sociologia
crítica do direito. Com a separação metodológica entre interação e
trabalho, não foi mais possível identificar que a reprodução do
direito é socialmente integrada e que a relação (social) de exploração
é determinada e, ao mesmo tempo, atua sobre a reprodução do direito
como um de seus determinantes. Na medida em que se separa
artificialmente o que se desenvolveu historicamente de maneira
indivisível, perde-se o referencial do direito na construção da
sociedade dos produtores de mercadorias e, com isso, o sensor para a
percepção do fenômeno jurídico nas próprias relações capitalistas.A segunda perda analítica implica uma mudança de objetivos na prática
da crítica: da ênfase na compreensão das crises, antagonismos e
contradições do direito na sociedade capitalista para a ênfase na
busca por normas sociais capazes de desempenhar a função social
integrativa. Isso significa que as desigualdades socialmente
construídas passaram a ser tratadas como desvios ou patologias,
investigadas a partir de desajustes com as normas produzidas pela
própria sociedade (desigual). Com isso, a norma se torna medida da
realidade e da transformação/emancipação.Note-se que a reorientação antiprodutivista da crítica social ao
caráter normativo da sociedade perdeu o elo com a dialética
histórico-materialista (pois pressupõe a separação entre produção e
norma, trabalho e interação, capitalismo e direito). Por outro lado,
para permanecer como crítica social, precisou manter a perspectiva
emancipatória. Como, todavia, não pode assumir a possibilidade de
superação (Aufhebung) que os processos contraditórios internos ao
trabalho social deflagram por conta da confluência entre reprodução
material e simbólica, a crítica social do giro antiprodutivista
precisou recorrer ao mesmo projeto da filosofia política liberal: os
direitos constitucionais e os direitos humanos. Com isso, a crítica
social do giro antiprodutivista se tornou gradativamente uma teoria do
direito e da justiça.Como ela não trabalha com o potencial negativo da dialética, é
obrigada a conceber os direitos (liberais, fundamentais e humanos)
como positividade (“um sucedâneo comunicativo para a filosofia da
história”) (Bachur 2006). Por isso, para Habermas (1992: 430ss), os
direitos são considerados condição de possibilidade para a construção
de uma ordem cosmopolita, na medida em que assegurariam liberdades
individuais e, com isso, a possibilidade de associações voluntárias
que bloqueariam o uso do sistema político por interesses privados. Os
direitos (humanos) seriam, assim, motores de expectativas normativas
de uma sociedade civil global (Weltbürgergesellschaft), capaz de
conduzir para uma esfera pública transnacional as questões do mundo da
vida (ib.).Mas qual seria, então, a relação entre direito e capitalismo para a
crítica social antiprodutivista? Para ela, essa pergunta ainda é
respondida com base na tese da distinção entre capitalismo e
democracia. Dessa tese são geradas duas concepções. A primeira
sustenta que os recursos motivacionais e normativos disponíveis são
insuficientes para legitimar a intervenção estatal (no capitalismo
tardio) (Habermas 1973). A segunda compreende o direito como limitação
factual da acumulação de capital e de poder, nas situações em que essa
acumulação libera uma quantidade elevada de ações estratégicas, capaz
de conduzir a uma situação generalizada de difusão social do dissenso
(Habermas 1998: 44).Em ambas as concepções (a da legitimação no capitalismo tardio e a da
criação de integração social), o direito e a democracia são vistos
como um conjunto de normas e princípios, apresentado como imune à
realidade (contrária), isto é, como se os discursos e regulações
jurídico-democráticos pudessem ser isolados dos interesses e relações
materiais, que, ironicamente, conformam relações sociais das quais ele
mesmo faz parte. Na medida em que as concepções antiprodutivistas e
normativas não reconhecem que o direito é elemento constitutivo do
presente desviante, não conseguem ver nem a ideologia nem a violência
jurídicas da acumulação. Isso se tornou ainda mais claro, pois a
prognose dos problemas de legitimação do capitalismo tardio não se
confirmou: tanto o neoliberalismo conseguiu mobilizar novos recursos
motivacionais e normativos (Boltanski/Ève Chiapello 2005), quanto o
capitalismo financeiro e seus processos mercantilizadores dos espaços
públicos empregaram meios jurídicos para deixar fluir tendências
especulativas (Picciotto 2011).Na verdade, a crítica social antiprodutivista desenvolve uma concepção
idealista de direito, como se ele pudesse se reproduzir
independentemente das relações de produção. Os direitos são
apresentados sem qualquer vínculo com análises sobre as mudanças do
capitalismo global ou de como essas mudanças podem operar como
condições para os processos políticos. Para tal crítica, o direito
parece surgir espontaneamente, alheio a uma base material ou a uma
racionalidade objetiva.É possível pensar o direito enquanto algo indiferente aos processos
históricos de seu tempo? Ou, ainda, como supor que a produção,
circulação e reprodução do capitalismo não podem desempenhar qualquer
papel na formação e desenvolvimento dos direitos (humanos, por
exemplo)? Nenhuma das dimensões das crises do capitalismo exerce
influência em sua aplicação e uso? Há validade empírica em
idealizá-los apenas como um discurso contrafactual, um horizonte
normativo e emancipatório?A concepção idealista de direito fundamenta-se naquilo que De Giorgi
(1980: 143 ss), com base em Hegel e Marx, denominou mecanismos de
distanciamento do mundo e do finito. Para tal concepção, a realidade
se apresenta como algo estranho ao direito que, constituído enquanto
um horizonte emancipatório, é representado “como um produto que se
encontra fora da própria realidade” (ibid., 144). Trata-se, assim, de
um processo de alienação. Da perspectiva temporal, esse processo de
alienação implica compreender os direitos como uma estrutura normativa
vinculada ao futuro, isto é, à transformação da sociedade atual. Com
isso, tais teorias sempre operam a partir de uma distância entre os
direitos e o mundo: este último é tratado como o outro, um presente
desviante a ser negado e superado.Dessa distância é possível inferir uma pretensão teórica de não
contaminação ou indiferença do direito em relação ao real, de modo que
nem a violação é considerada parte do universo jurídico, nem a
observância é pensada à luz das relações sociais e assimétricas de
produção. Enquanto normativo, esse tipo de modelo é forçado, de um
lado, a desconsiderar o presente ou a finitude em si como objeto da
reflexão e, de outro, a excluir o discurso jurídico das relações
objetivas em que se constitui. Neste sentido, essa concepção normativa
dos direitos é instrumento de alienação do próprio direito, pois o
opõe ao mundo, escondendo o processo real do qual ele faz parte. Para
se utilizar de uma outra expressão de De Giorgi (ibid., 23), é parte
integrante do “projeto burguês de esquecimento e repressão da
instância material”.3. Forma jurídica no capitalismoSe já era questionável fazer teoria da democracia sem economia
política (Streeck 2013:102) ou, em outras palavras, falar seriamente
sobre a reprodução dos direitos sem falar ao mesmo tempo de
capitalismo, o contexto atual explicitou ainda mais as limitações do
idealismo jurídico da critica social antiprodutivista. Ao enfatizar o
caráter normativo, tal idealismo se viu desprovido de categorias úteis
para compreender a principal transformação jurídica das últimas
décadas, qual seja, a reestruturação regulatória, iniciada a partir de
1973, que levou à emergência do direito neoliberal enquanto marco
jurídico da acumulação capitalista vigente e de seu processo de
financeirização (Gonçalves 2014).Essas dificuldades estão associadas aos limites analíticos do esquema
capitalismo/democracia, que se tornaram cada vez mais visíveis diante
das mudanças contemporâneas. Diferentemente de outros momentos
históricos que demandaram regimes ilegais, as atuais políticas
reprodutoras de desigualdade estão se realizando nos termos da
racionalidade procedimental e democrática do Estado Constitucional de
Direito. Nesse âmbito, por exemplo, a Suprema Corte dos EUA tornou-se
um lugar privilegiado para se observar como decisões judiciais
reforçam as estratificações socioeconômicas (Gilman 2014).O mesmo pode-se dizer a respeito das medidas contemporâneas
autoritárias e cerceadoras das liberdades. Pense-se, por exemplo, que
o Conseil Constitutionnel (2015) considerou constitucional o estado de
emergência decretado pelo governo francês após os atentados de Paris,
de 13 de novembro de 2015. No Sul Global, a realidade não é diferente.
No Brasil, há uma disputa de narrativa entre conservadores e
progressistas sobre o caráter golpista da destituição da presidenta
Dilma Roussef, em agosto de 2016, apenas porque o Supremo Tribunal
Federal validou todos os atos do respectivo processo (Saad-Filho
2016). Assim, diferentemente daquilo que foi afirmado por Offe (1983:
227) há pouco mais de três décadas, a hipótese de que não há separação
nem uma tensão fundamental entre capitalismo e democracia
constitucional parece ser cada vez mais plausível.Tal constatação tem exigido um deslocamento da reflexão crítica do
direito no sentido de reforçar a necessidade da crítica social retomar
o capitalismo como unidade de análise dos marcos normativos da
sociedade. Ao invés de distanciamento, o objetivo de tal retomada é
assumir o direito como parte integrante do mundo, isto é, como como
peça da engrenagem capitalista e de seus mecanismos de reprodução.
Trata-se, em outras palavras, de assumir que o direito já se realizou
na sociedade e é parte da sua existência material.Nos últimos anos, a principal contribuição interna à sociologia
crítica do direito que se opõe tanto à lógica das teorias normativas
quanto à separação analítica entre democracia e capitalismo é a
crítica materialista à forma jurídica (Buckel 2007 e 2010; Elbe 2004,
2008 e 2009; Harms 2000; Naves 2000). Essa proposta é formulada a
partir de um diálogo com a teoria marxista do direito, de Eugen
Pachukanis (2003[1924]). Trata-se de um debate principalmente teórico
que busca apresentar a crítica ao direito como elemento central da
crítica ao capitalismo e resgatar o materialismo histórico como método
de investigação das contradições do direito.3.1. Crítica à forma jurídicaA crítica pachukaniana à forma jurídica oferece um conceito de direito
que, construído a partir da teoria do valor, objetiva analisar o
direito na socialização capitalista. (Elbe 2004). Seu ponto de partida
é a concepção de Marx segundo a qual, na sociedade capitalista, a
sociabilidade do trabalho adquire a forma de valor (Heinrich 1999).
Isso implica que, no capitalismo, o trabalho individual concreto
realiza-se somente por meio da permutabilidade dos produtos, o que,
por sua vez, torna a forma do valor condição necessária da
socialização. Uma vez que a troca de mercadorias iguala diversos
produtos uns aos outros, ela cria uma igualdade abstrata entre
diferentes trabalhos, que, a partir de medidas – como, por exemplo, o
trabalho social médio –, possibilita a autorreprodução da desigualdade
e da própria apropriação do trabalho. A forma do valor adquire, assim,
um caráter fetichista e místico.Para a crítica da forma jurídica, a relação da forma do valor com o
direito surge da teoria da mercadoria (Paschukanis 2003[1924]: 112).
Seu ponto de referência é um trecho clássico de Marx (MEW, 23: 99),
escrito no primeiro volume de O Capital:As mercadorias não podem ir por si mesmas ao mercado e se trocar umas
às outras. Temos, portanto, que olhar para os seus guardiões, para os
proprietários das mercadorias. As mercadorias são coisas; são
incapazes de resistir aos homens. Se elas não se mostram solícitas, o
homem pode empregar violência contra elas, isto é, pode tomá-las. Para
relacionar essas coisas umas às outras como mercadoria, seus guardiões
precisam se relacionar como pessoas cuja vontade reside nessas coisas,
de modo que alguém só se apropria da mercadoria estranha ao vender a
sua própria; em consonância, portanto, com a vontade do outro, por
meio de um ato de vontade comum a ambos. Eles precisam, assim, se
reconhecer reciprocamente como proprietários privados. Legalmente
desenvolvida ou não, essa relação jurídica, cuja forma é o contrato, é
uma relação de vontades, na qual se reflete a relação econômica.A partir desse trecho, se sustenta que a troca de mercadorias e,
portanto, a realização do valor nela contida só pode se dar em uma
relação de vontades dos atores (Elbe 2004: 44-45). A condição
fundamental para a troca (capitalista) de equivalentes torna-se,
assim, a produção de um ato autônomo da vontade dos proprietários de
mercadorias. Essa vontade livre é estabelecida pela forma jurídica.
Trata-se da constituição de uma subjetividade que permite a circulação
do homem no mercado como um proprietário, que se encontra sem nenhum
tipo de impedimento para se vender (Naves 2000: 66 ss). Na verdade, o
direito redefine o homem em termos de propriedade, tornando-o, ao
mesmo tempo, sujeito e objeto (ib.). Por isso, a forma jurídica é um
fator fundamental do processo de alienação: ela faz o homem emergir
enquanto um proprietário que aliena a si mesmo (Cerroni 1974: 91).Dessa perspectiva, o direito é tratado na sociedade capitalista como
uma forma social que se realiza juntamente com a forma do valor
(Pachukanis 2003[1924]: 117ff.). Ele participa do processo de
abstração dos produtores concretos desiguais, que constituem a troca
de equivalentes pressuposta na permutabilidade direta entre
mercadorias (Elbe 2008: 234). Para isso, os instrumentos jurídicos
empregados são o conceito de sujeito de direito e os princípios de
liberdade e igualdade, todos constitutivos do Estado de Direito (Elbe
2004: 47;). O conceito de sujeito de direito é aquele que permite
levar as mercadorias, mas também o próprio homem ao mercado (para se
vender). Tal conceito só pode funcionar, no entanto, com base nos
princípios jurídicos da liberdade e da igualdade. Para dispor de si
mesmo, o homem precisa ser livre. Nesse sentido, a liberdade jurídica
é a livre disposição sobre si mesmo como mercadoria. Isso, no entanto,
não é suficiente para realizar o processo de troca de mercadorias. O
homem precisa também firmar contratos com outros homens. Para tanto, a
igualdade formal é fundamental. Nesses termos, ela significa o acordo
entre vontades iguais.Sujeito de direito, igualdade e liberdade jurídicas formam no plano
abstrato atores iguais, que podem trocar livremente mercadorias e
vender sua força de trabalho. Ao mesmo tempo, porém, possibilitam, na
instância material, a imposição de interesses privados e
desigualdades. Assim, discursos e instituições jurídico-democráticas
se configuram como uma das formas sociais que possibilitam o
desenvolvimento do capitalismo e seus mecanismos de exploração, sem
que seja necessário aplicar meios de violência direta e não-econômica.
Aqui, operam-se as relações fetichizadas e reificadas do capital.Essa configuração possibilita conceber a forma jurídica como mecanismo
de coesão social.5 Dessa perspectiva, a sociedade capitalista é
caracterizada pelo processo de redefinição das desigualdades
estratificadas então existentes. Esse processo contem um potencial
elevado de desagregação social (soziale Auflösung), pois implica a
ruptura e a fragmentação da concepção religiosa, unitária e
transcendental do mundo que determinava o socialmente possível nas
sociedades pré-modernas (De Giorgi 1980: 21ff.). De maneira oposta a
estas últimas, a sociedade capitalista decompõe e distingue o agir em
diversas esferas sociais diferenciadas e desiguais. Tem-se, assim, uma
criação permanente de insegurança e volatilidade das relações sociais
(id.: 22).6A reprodução da desagregação e das desigualdades constrange a própria
sociedade a afrontar o problema da coesão do agir. Como, no entanto,
sob condições capitalistas, as desigualdades e a desagregação não
podem ser eliminadas, a coesão torna-se possível apenas como abstração
(Badaloni 1972). Para tanto, a sociedade capitalista estrutura um
universo de abstrações e formas que se descola da realidade objetiva
das relações de produção (que é a estrutura da desigualdade) e se
apresenta como um sistema normativo de coordenação das ações. Esse
sistema é o direito (De Giorgi 1980: 22).O direito torna possível a coexistência, mas apenas enquanto
abstração. Em outras palavras, o direito estabelece um plano de
indiferença à diferença, isto é, iguala, na abstração, a desigualdade.
Trata-se de uma coesão unicamente formal e de um modelo de abstração,
que relaciona igualdades abstratas e indiferentes, na medida em que
oculta a racionalidade objetiva das relações sociais de produção (id.:
23-24).Para essa forma de coesão funcionar, é preciso que o ato constitutivo
das abstrações jurídicas não seja reconhecido como aquilo que ele é:
um processo de distanciamento e alienação. Para isso, a ideia de
vontade livre é, mais uma vez, fundamental. Por conta dela, o direito
aparece como uma estrutura autônoma, resultado de uma escolha da
própria sociedade (capitalista) que quer obter coesão (circulação)
entre suas partes, e não como o resultado de uma pressão seletiva das
estruturas desiguais. É, nesse sentido, que se pode compreender a
ideia de Pachukanis (2003[1924]: 117), segundo a qual “o fetichismo da
mercadoria é completado pelo fetichismo jurídico”. Este último cria a
imagem de que as normas jurídicas são regras universalmente válidas
colocadas pela comunidade e resultado de decretos e procedimentos
formais do Estado, como se elas não tivessem nenhum tipo de vínculo
com os fatos que produzem as desigualdades. Com isso, a forma jurídica
conclui a operação iniciada pela forma da mercadoria, o ocultamento da
reprodução das relações de produção.3.2. Desenvolvimento do capitalismo e fronteiras da crítica à forma jurídicaNão é incomum que a descrição pachukaniana seja acusada de reduzir o
direito à função de meramente possibilitar a troca das mercadorias,
como recentemente fez Buckel (2010: 140). Esse tipo de censura
desconsidera, no entanto, o caráter onicompreensivo da concepção de
reprodução social que Pachukanis utiliza para elaborar sua crítica à
forma jurídica. Dessa perspectiva, o autor entende na mesma linha de
Marx que, “no próprio ato de reprodução, não se muda apenas as
condições objetivas (…), mas os produtores também se transformam,
criando novas forças, representações, formas de circulação,
necessidades e novas linguagens” (MEW 42: 402). O ato de reprodução é,
assim, a síntese do desenvolvimento social de um produto histórico.
Trata-se de um processo socialmente amalgamado em que as atividades
instrumentais do homem sobre a natureza integram-se em um plexo de
mediações entre os produtores.Da perspectiva pachukaniana, o direito é visto a partir da realização
social da fabricação dos produtos, o que implica pensá-lo à luz de uma
unidade em que se articulam a operação técnico-produtiva (mundo da
objetividade) e a relação por parte daqueles que produzem (mundo da
subjetividade). Não há, portanto, trabalho sem interação, externo à
práxis social. A reprodução social abrange direito e economia ou, de
maneira mais precisa, compreende uma totalidade de movimentos
políticos, econômicos, jurídicos e culturais, em que as partes
integrantes e constitutivas do fato social total se conjugam (MEW, 42:
34).Quando desse projeto descritivo e abrangente da totalidade social
infere-se apenas um caráter funcionalista do direito (como faz
Buckel), as conclusões sobre a forma jurídica daí resultantes tendem a
recair nos mesmo problemas (já apresentados) da crítica social
antiprodutivista, qual seja, articula-se, no plano teórico, uma
separação artificial entre as dimensões entrelaçadas da reprodução da
sociedade capitalista.Obviamente que, no caso de Buckel (2007: 318), não se trata de pensar
nos termos habermasianos de uma sociedade bipartida entre interação e
trabalho. Ao sentir a necessidade de superar a suposta redução ao
funcionalismo, a autora sustenta que a forma jurídica não desempenha,
na verdade, uma função, mas produz um “efeito” sobre a economia
(Buckel 2010: 140). Em outras palavras, a transformação dos
possuidores de mercadorias em sujeitos jurídicos e a possibilidade de
troca de mercadorias seriam, assim, um efeito da própria forma
jurídica.Note-se que, com isso, a autora faz uma inversão da ordem estabelecida
pelo reducionismo econômico e passa a considerar a reprodução das
relações sociais de produção a partir de um determinismo jurídico. Em
outras palavras, para escapar de um suposto funcionalismo, Buckel é
levada, do mesmo modo que a crítica social antiprodutivista, a um
processo de esquecimento do capitalismo. Por isso, a autora busca
extrair de formas jurídicas, como, por exemplo, os procedimentos
legais e a dogmática jurídica, um modo de existência material do
direito (Buckel 2007: 240-242; 2010: 143ff. und 147). Essa formulação
renuncia a um postulado marxiano importante para Pachukanis, segundo o
qual as relações entre os homens com as coisas (relações técnicas de
produção) são mediadas pelas relações dos homens entre si (relações
sociais de produção).Sem essa perspectiva pachukaniana de mediação, a proposta de
reconstrução de uma teoria materialista do direito, tal como feita por
Buckel, não supera a esperança normativa presente no idealismo
jurídico. Por isso, a autora aposta na mobilização de “garantias
jurídicas do reconhecimento”, bem como no caráter contraditório da
universalização de seus procedimentos, para construir “projetos
contra-hegemônicos alternativos de modos de vida, relações e
subjetividades” (Buckel 2007: 321 ff.; 2010: 148). Essa compreensão,
no entanto, como mostra Barreira (2016), precisa renunciar a um
pressuposto fundamental da crítica à forma jurídica, qual seja, o fato
de que a sociedade capitalista não se imuniza contra, mas com a ajuda
das contradições, e o faz isso por meio do direito.Se o funcionalismo não é um problema metodológico da crítica à forma
jurídica, então qual seria sua limitação?3.3. Crítica à forma jurídica e dinâmica da acumulaçãoA crítica à forma jurídica serve para analisar o funcionamento do
direito em um momento específico da acumulação capitalista, qual seja,
o momento em que dinheiro é transformado em capital e que, por meio
desse, se faz mais-valia e vice-versa. Esse momento é representado
pela notória fórmula D-M-D’, em que dinheiro acumulado é investido em
mercadoria para produzir mais dinheiro (MEW 23: 161ff.). Trata-se,
assim, de um processo caracterizado pela conversão de força de
trabalho e matérias-primas em capital.Evidentemente, como mostrou Marx, tal conversão não se realiza por um
conjunto de critérios técnicos de eficiência que seriam válidos ad
eternum nem mesmo por uma correlação proporcional entre o valor da
mercadoria e o tempo de trabalho da produção. Em seu esforço por
revelar como a produção está organizada e seu produto distribuído,
Marx identifica que o valor de troca da força de trabalho é superior
aos custos médios de sua regeneração, pois ela produz um excedente,
uma mais-valia, que apenas os proprietários do capital podem se
apropriar. Esse excedente completa o valor da mercadoria produzida
(MEW 23: 165ff.).Para a normalização e estabilização desse percurso da acumulação, é
preciso que o capital estabeleça mecanismos de indiferença ao seu ato
expropriador constitutivo. Isso se torna possível pelo reflexo do
valor de troca das mercadorias no trabalho (MEW 23: 61). O valor de
troca torna as mercadorias equivalentes entre si, não obstante os
diversos valores de uso que elas possuem. Dessa equivalência emerge
uma identificação entre os diferentes trabalhos concretos, na medida
em que todos são expressões da atividade produtiva geral. Ao lado da
dimensão concreta desenvolve-se assim um caráter abstrato
(homogeneizador e equalizador) do trabalho (MEW 23: 56ff.). Tem-se,
assim, que, no interior da própria estrutura do trabalho, já estão
presentes os componentes e as condições para sua alienação. Enquanto o
abstrato expressa igualdade, o concreto implica desigualdades e
diferenças. Essa contradição primária entre identidade e
não-identidade inscreve mas, ao mesmo tempo, oculta a relação de
exploração na mercadoria (Fausto 1987:293). Torna-se, com isso, fator
fundamental da normalização e estabilização do modo de produção
capitalista.A crítica à forma jurídica é um modelo importante para observar os
desdobramentos dessa contradição primária. Ela explica por qual razão
a dominação adquire a forma de uma dominação abstrata, como a
expropriação do trabalho do produtor direto é invisibilizada e de que
forma a troca entre equivalentes proporciona a reprodução das
desigualdades. Trata-se, portanto, de um capítulo chave da teoria da
forma-valor, que permite pensar o direito no interior do ciclo em que
dinheiro é transformado em capital, por meio do capital se faz
mais-valia e por meio da mais-valia se faz mais capital. Mas o
capitalismo se resume a esse ciclo?Para continuar a ser capital, o capital tem de se valorizar sempre e,
dado que a produção de valor está atada ao trabalho, ele sempre
precisa de mais trabalho do que o necessário, levando-o a produzir um
excedente de trabalho e, portanto, de capital (MEW 25: 263). Como o
valor é um “fim em si mesmo” (Selbstzweck), ele se torna “desmedido”
(Masslos) (MEW 23: 161 e 167). Quando atinge um determinado volume de
grandeza, esse processo desmedido se depara com as condições sociais
possíveis de realização do valor criado, isto é, com a viabilidade de
se vender o que se produziu e de utilizar o potencial produtivo que se
gerou. Ao atingir essas barreiras, o valor aumentado não consegue mais
ser realizado. Tem-se, assim, uma sobreacumulação que mina as bases da
rentabilidade (MEW 25: 261ff.). Nesse momento, o capital precisa
recorrer a outro espaço, outro lugar, criar novas condições sociais
que permitam o excedente fluir, abrindo um novo ciclo de valorização.As relações sociais produzidas por essa dinâmica não correspondem
àquelas constituídas pelo princípio da troca de equivalentes. Elas não
dizem respeito aos mecanismos de estabilização da acumulação
capitalista, mas à sua dinâmica expansionista, aos seus imperativos
por crescimento, à sua capacidade de produção e destruição do espaço
conforme as necessidades de (re)valorização (Dörre 2012; Harvey 2009;
Luxemburg 1975).Segundo essa perspectiva, o desenvolvimento do capitalismo é analisado
como um processo permanente de superação dos obstáculos e limites à
acumulação por meio da mercantilização de espaços ainda não
mercantilizados (Dörre 2012: 39ff.). Esse processo supõe a
impossibilidade de realização completa da mais-valia em seu lugar de
produção e a pressão da sobreacumulação, que exigem a expropriação de
um Fora não-capitalista para realizar parte relativa da mais-valia
existente e amortizar investimentos (Luxemburg 1975: 315ff.).7Essa dinâmica destruidora do capitalismo é uma condição permanente
para a troca de equivalentes. Na medida em que ela proporciona a
expropriação de um espaço (ainda não gerador de valor), realiza as
condições necessárias para a respectiva troca, quais sejam, a tomada
da terra pertencente ao camponês, a separação entre os produtores e os
meios de produção e a exploração intensiva dos recursos naturais (MEW
23: 741-744). Isso, por sua vez, permite a abertura de um novo ciclo
de acumulação e de novos mercados. Note-se, portanto, que esses
processos de expropriação do espaço desenvolvem-se paralelamente à
troca de equivalentes, mas não correspondem à ela.Nesse estágio expropriador da acumulação capitalista, o direito não
possui as mesmas características que ele desenvolve na etapa de
estabilização do sistema. Como afirma Rosa Luxemburgo (1975: 397), no
reino puro da troca de equivalentes, “domina a paz, a propriedade e a
igualdade como formas”, o que significa que “a apropriação da
propriedade alheia transforma-se em direito de propriedade; a
exploração, em troca de mercadorias; e a dominação de classes, em
igualdade”. Já no momento de expropriação dos espaços não
capitalistas, os métodos empregados não são formas sociais de
dissimulação. Segundo a autora: “aqui dominam a política colonial, o
sistema de empréstimos internacionais, a política de interesses
privados e a guerra. Aqui se evidencia, de maneira completamente
explícita e aberta, a violência, a fraude, a opressão e a pilhagem“
(Luxemburg 1975: 397).Como visto, essas experiências são muito distintas daquelas
desenvolvidas pelo princípio da troca de equivalentes. Em uma situação
de repressão institucional explícita, o direito não funciona como um
recurso motivacional ou legitimador da acumulação capitalista nem
mesmo como uma forma social fetichizada. Conforme Luxemburgo (1975:
397): “seria muito difícil descobrir, nessa confusão de atos políticos
de violência e provas de força, as leis exatas dos processos
econômicos”. Assim, no contexto da expansão da acumulação do capital e
da expropriação capitalista, o direito não pode ser pensado nos termos
da tese da complementaridade entre forma da mercadoria e forma
jurídica. Ao contrário, para se compreender esse outro caráter do
direito, é preciso ir para além da crítica à forma jurídica.
Diferentemente dessa última, que pretende investigar por qual razão a
estrutura da desigualdade capitalista depende de um princípio formal
de identidade para se estabilizar, a principal pergunta a orientar a
pesquisa sobre o caráter do direito nos processos de expropriação do
espaço é: como o direito funciona no movimento de reação capitalista a
mecanismos bloqueadores da acumulação?4. Direito e acumulação primitivaPara responder à última pergunta é preciso reconhecer, como visto
acima, que o capitalismo é uma engrenagem que produz permanentemente
autolimitações, mas que também é altamente sensível a seus pontos
nevrálgicos. Quando estes são atingidos, ele aciona processos que o
levam a expandir para terrenos não-mercantilizados com o fim de gerar
um novo ciclo de estabilidade (Dörre 2012: 41). Na base fundamental
desse processo de expansão está uma repetição permanente do ato de
acumulação primitiva.4.1. Repetição permanente da acumulação primitivaEm Marx (MEW 23: 741), a acumulação primitiva é tratada como um ato
originário que permite observar o movimento do capital não como um
círculo vicioso em que dinheiro é transformado em capital e que, por
meio desse, se faz mais-valia e vice-versa. Ao contrário, o autor
mostra que existe uma acumulação prévia que é o ponto de partida para
o modo de produção capitalista (id.). Uma vez que o pressuposto para a
produção capitalista é a transformação de bens materiais ou imateriais
em valor e isto só é possível pela “separação entre os trabalhadores e
a propriedade das condições de realização do trabalho”, Marx (MEW 23:
742) conclui que a acumulação primitiva é o “processo histórico de
separação entre produtor e meio de produção”. Trata-se, portanto, de
um ato de expropriação de grupos sociais, cuja consequência é a
criação de uma massa livre para vender sua força de trabalho. Para
Marx (id.), esse ato envolve conquistas imperialistas, colonização,
roubo por meio de assassinatos e legislações sanguinárias, isto é,
“violência direta e extraeconômica” (außerökonomische, unmittelbare
Gewalt) (MEW 23: 765). Segundo Marx (id.), esse processo é chamado de
“primitivo”, pois identificado com a “pré-história do capital”.Rosa Luxemburgo não se limitou a ver esse fenômeno como “pré-história
do capital”, mas como fator determinante da dinâmica do
desenvolvimento do próprio capitalismo. A autora sustenta que apenas
uma parte do movimento da acumulação realiza-se a partir de um
processo puramente econômico entre capitalistas e trabalhadores nos
espaços de produção da mais-valia (Luxemburg 1975: 315). Todavia, como
apenas essa parte relativa e limitada da mais-valia consegue ser
apropriada no local de sua produção, Luxemburgo (1975: 315–316)
sustenta que o sistema sempre necessita recorrer a um Fora
não-capitalista para realizá-la por completo. Esta outra dimensão da
acumulação opera no cenário mundial e, como visto, faz uso de
violência explícita.A partir das considerações de Luxemburgo, Harvey (2009: 74 ss)
desenvolve o argumento segundo o qual a acumulação baseada na
violência não é uma “etapa originária” ou um ato passado, mas um
processo que se repete permanentemente no curso do capitalismo. Por
esta razão, ele passou a denominá-lo de “acumulação por despossessão”.
Harvey (2009: 64) sustenta que “a sobreacumulação em um sistema
territorial específico” é resultado tanto do excedente de trabalho
(desemprego) como do capital (abundância de mercadorias que não podem
ser vendidas sem perdas, inutilização da potencialidade produtiva e
excesso de capital desprovido de capacidade de se tornar rentável).
Segundo o autor, tal excedente pode ser absorvido por ajustes
temporal-espaciais. Quando esses ajustes não se dão através da
“reprodução ampliada sobre uma base sustentável”, Harvey (2009: 63–64)
afirma que a acumulação passa a recorrer a outros meios, qual seja, a
acumulação por despossessão. Nesse momento, conclui o autor, ela se
transforma em um “capitalismo de rapina” que retoma as práticas
predatórias e a violência política do ato original (Harvey 2009: 72).
O fator decisivo, neste processo, é que a acumulação do capital sempre
se dá por meio de diferentes formas de intervenção estatal.Este é o ponto de partida para os estudos de Dörre (2012 que, nos
últimos anos, dedicou-se a oferecer um teorema da expropriação
capitalista do espaço (Landnahme).8 Esse modelo entende que a
acumulação capitalista sempre esbarra em barreiras temporal-espaciais
que precisam ser superadas para sua continuidade. A ideia de
impossibilidade de realização completa da mais-valia em seu lugar de
produção é retomada para demonstrar que a acumulação do capital exige,
para sua perpetuação, novos territórios não-capitalistas que poderão
prover novos recursos, matérias-primas e mercados de trabalho (2012:
40). Para Dörre (2012: 41), os espaços não-capitalistas não se resumem
a territórios ou modos de produção já existentes, o que tornaria o
processo de expansão do capital um fenômeno irreversível, que tenderia
a um fim. Ao contrário, a necessidade permanente de superar as
fronteiras da acumulação leva o capitalismo a produzir espaços
não-capitalistas, que ele, posteriormente, expropriará. Com isso, o
autor indica que “em princípio, a cadeia de expropriação capitalista
do espaço é infinita” (Id: 42).A partir dessa consideração, Dörre (2012: 36 e 41) formula um teorema
do desenvolvimento capitalista. Trata-se da acumulação do capital pela
expropriação de espaços não-capitalistas existentes ou produzidos
ativamente. Dessa tese, o autor deduz que o capitalismo funciona com
base em uma “Dialética Dentro-Fora”, segundo a qual os limites de sua
capacidade interna de acumulação exigem a expropriação de um Fora.
Esta equação, no entanto, só se fecha por meio de intervenções
estatais, regulações, violências diretas, físicas e simbólicas. Nesse
contexto, o papel do direito enquanto violência jurídica é
fundamental.4.2. A reprodução sócio-jurídica da expropriação capitalistaNo movimento da expropriação capitalista do espaço, o direito atua em
diferentes processos de ocupação e precarização, movidos pela expansão
da acumulação do capital. Esses processos são múltiplos e variam
conforme sua escala de ação sobre as diversas territorialidades.
Podem, portanto, se reproduzir em um plano macro, como os regimes de
austeridade e privatização, em aquisições ilegais de terras (land
grabbing) por companhias privadas para produzir commodities ou em
intervenções locais, como as políticas de regularização fundiária,
desocupação e especulação imobiliária em bairros operários ou favelas.Em comum, todas essas medidas têm o fato de se desenvolverem por meio
de ações diretas do Estado que efetuam a mudança das relações de
propriedade então existentes e mercantilizam espaços até então pouco
atrativos para a produção de valor (Dörre 2012: 30-35; Harvey 2007:
78). Tal mercantilização torna-se possível por dispositivos
regulatórios que privatizam bens públicos e comuns, cortam gastos
públicos e sociais, reduzem impostos sobre a renda, retiram as
barreiras que limitam o livre fluxo do capital financeiro por meio de
políticas de desregulamentação e restringem as garantias dos
trabalhadores.Como visto, em um processo de expropriação, há sempre a superação de
um mecanismo bloqueador da acumulação e a ocupação capitalista de um
território (lato sensu) no qual determinadas necessidades
encontravam-se desmercantilizadas. Como essa dinâmica implica a
reestruturação espacial, ela importa, ao mesmo tempo, expulsão ou
precarização das populações locais, que, uma vez retiradas de seu
espaço comum, podem se vender livremente no mercado de trabalho. Para
isso, no entanto, precisam ser disciplinadas para seu novo papel na
cadeia produtiva. Assim, além dos instrumentos de
apropriação/expropriação do espaço público e comum, o direito também
participa das técnicas de controle dos expropriados.Em termos gerais, reprodução sócio-jurídica da expropriação
capitalista implica desvalorização dos direitos sociais,
desapropriação de terras coletivas, ampliação e forte proteção dos
direitos de propriedade, incentivos jurídicos à privatização, arranjos
institucionais facilitadores do livre-mercado, criminalização da
pobreza e dos movimentos de resistência. Tem-se, assim, um modelo de
direito que explicitamente prescreve a expropriação, a ocupação de
domínios comuns e a colonização de diferentes formas de espaço e de
modos de vida, relações e subjetividades existentes.Esse modelo é resultado de reformas legislativas e constitucionais
desencadeadas pelo Estado com base em procedimentos legais, que
alteram uma organização sócio-jurídica coletiva e comum,
substituindo-a por um regime jurídico de direito privado. Essa
alteração de regime jurídico pode ser relida justamente como um
processo de transição da comunidade (Gemeinschaft) para a sociedade
das trocas de equivalentes. Grupos sociais que experimentavam uma vida
comum e coletiva são descolados dos meios de produção e distanciados
entre si através de um ato expropriador e, a partir de então, se
encontram livres para negociar sua força de trabalho. Em outras
palavras, o sujeito coletivo se transforma em um sujeito de direito,
dotado juridicamente de autonomia e vontade livre, para aparecer em um
contrato de compra e venda como um igual.Do ponto de vista da expropriação capitalista, a vida coletiva e comum
é um contexto desmercantilizado, na medida em que os membros da
comunidade não participam da produção de valor. A remercantilização
implica a expropriação desses membros e, ao mesmo tempo, a alteração
de seu regime jurídico, do direito comum e coletivo ao direito
(burguês) civil. Assim, em razão dessa correlação (entre a
expropriação e a alteração de regime jurídico), ainda que a
expropriação possa incluir práticas de roubo, conquistas e guerras
abertamente ilegais, ela sempre vai precisar de um momento de
violência jurídica, isto é, uma reforma legal, uma nova regulação ou
instituto que, ao transformar as condições jurídicas existentes,
prescreve abertamente a estrutura de desigualdade do ato expropriador.
Nessa manifestação do direito, não há igualdade e liberdade abstratas,
não há fetichismo, alienação ou distanciamento do mundo, mas
reconhecimento jurídico explícito da assimetria e da desigualdade. Um
exemplo bastante esclarecedor dessa configuração do direito é a edição
e promulgação da assim chamada “Lei das Joias”, aprovada pelo
Parlamento dinamarquês em janeiro de 2016, que permite que sejam
confiscados os bens dos refugiados, quando seu patrimônio exceder
10.000 coroas dinamarquesas.94.2.1. Othering e direito: o “Outro” como o “Fora”A desigualdade materialmente estabelecida pelo ato expropriador e
legalmente prescrita precisa pressupor uma justificativa racional para
a situação desigual que será estabelecida. Para tanto, a expropriação
capitalista do espaço faz uso de sua dimensão linguístico-discursiva.
Essa dimensão foi investigada recentemente por Backhouse (2015). Ao
estudar a expropriação capitalista das áreas verdes (grüne Landnahme)
no estado do Pará, a autora mostra que a introdução da figura retórica
áreas degradadas (degradierte Flächen) em legislações de proteção
ambiental foi essencial para justificar a transferência da propriedade
rural de pequenos proprietários para grandes empresas. Trata-se aqui
de um processo simbólico, em que o grupo social e o espaço a serem
expropriados são retórica e discursivamente estabelecidos como um
Outro prejudicado, inferiorizado e atrasado. Nesse processo, o
discurso jurídico não é o único, mas um fator fundamental na concepção
desse Outro.Os mecanismos que concorrem para tal concepção são muito semelhantes
àqueles descritos no conceito de othering, tal como formulado por
Spivak (1985). Othering é um instrumento utilizado para se construir
imagens de “culturas diferentes” como representações invertidas de si.
Isto é: cria-se a representação de um diferente pelo recurso a figuras
estereotipadas com o fim de se estabelecer valores positivos para a
própria identidade cultural. Spivak mostra que o othering foi
utilizado para impor a primazia da Europa sobre suas colônias na
escala civilizatória. De um lado, tem-se a identidade europeia, o Eu,
que é apresentado como racional, moderno e individual; do outro lado,
tem o Outro, a cultura do resto do mundo, que é construída como
ancestral, tradicional, atrasada, pré-moderna ou comunitária (Costa e
Gonçalves 2011: 59).A reprodução cultural do Outro não é, todavia, autorreferencial, como
sugerem os Estudos Pós-Coloniais (Said 2003: 2-4), mas está ancorada
nas condições objetivas da expansão do capital. No momento em que uma
expropriação capitalista é ativada, diversas estruturas discursivas
concorrem para caracterizar como desviantes e atrasadas as condições,
prestações e relações existentes em um espaço desmercantilizado. Essa
caracterização é sempre formada com base em uma comparação com o
suposto grau de desenvolvimento alcançado pelo espaço mercantilizado.
Isto pode ser visto nos discursos humanistas e iluministas que, ao
caracterizarem os povos originários da África, da Ásia ou da América
como irracionais e sua natureza como selvagem, viabilizaram as
conquistas e colonizações da acumulação primitiva (Amin 2009: 152ff.).
Mas também pode ser encontrado nas atuais recomendações neoliberais
que tratam determinados territórios como atrasados, improdutivos e
ineficientes, possibilitando sua ocupação pela lógica “racional” do
mercado (Chimni 2006). Enquanto vetores da acumulação primitiva e de
sua repetição, projetos de modernização e desenvolvimento, bem como
missões civilizatórias, carregam em si as condições retóricas e
discursivas da expropriação capitalista, isto é, concorrem para a
caracterização do “Outro” a ser expropriado.Da perspectiva da expropriação capitalista, o Outro cultural é o Fora
não-capitalista. Na medida em que determinado espaço não corrobora
para a criação de valor, ele se encontra externo à acumulação
capitalista. Quando, como visto, essa última se depara com seus
limites em uma situação de crise de sobreacumulação, ela necessita
criar condições para sua expansão. Para isso, instrumentos
retórico-discursivos caracterizam o Fora como um Outro desviante e
inferior, como uma área degradada. Ao aparecer como tal, o Fora se
torna um território que não apenas pode, mas deve ser apropriado para
poder se desenvolver. Essa dinâmica aparece de maneira muito clara nos
discursos políticos e jurídicos sobre favelas na América Latina.
Geralmente associadas de maneira estereotipada a um lugar onde se
corporifica a criminalidade e o subdesenvolvimento, as favelas se
tornam uma área “incivilizada” que pode ser, a qualquer momento,
tomada para reestruturações urbanas ou especulação imobiliária
(Berenguer 2014: 110ff; Rothfuß 2014; Wacquant 2005).4.2.2. Privatização pelo direitoNote-se, portanto, que a caracterização do Fora como Outro é uma
condição para sua mercantilização. Nesse momento, no entanto, os
arranjos jurídicos não são mais os mecanismos de othering. O direito,
ao contrário, desenvolve instrumentos que possibilitam a transferência
da propriedade e da prestação de serviço público, coletivo ou comum a
atores privados do mercado. Esses instrumentos realizam a
desregulamentação, a privatização e a abertura de um determinado setor
para o comércio transnacional e a concorrência. Aparecem em diferentes
desenhos institucionais: leilões e vendas de bens, vias, empresas ou
áreas públicas, concessões, parecerias entre atores públicos e
privados, transmissões da propriedade, da administração ou da gestão
de um serviço público ou meio coletivo para empresas particulares etc.
(Picciotto 2002). Em comum, esses desenhos institucionais operam o
deslocamento da capacidade de alocação de recursos de um ente coletivo
ou público (o Estado, por exemplo) para empreendimentos privados, que
passam a estabelecer novas instâncias produtivas, definir novos
padrões de integração dos sectores econômicos, de tecnologias e de
relações trabalhistas.A privatização e o cercamento são os atos característicos do momento
da mercantilização em uma expropriação capitalista do espaço. Eles
viabilizam a abertura de um mercado até então inexistente que será
capaz de absorver os fluxos do capital. Já vimos que esse processo
implica o processo de separação entre produtor e meio de produção.
Isso, por sua vez, pode se dar por desapropriações legais, nas quais o
Estado, sob a justificativa que vai promover uma utilidade pública,
ironicamente retira as pessoas de suas casas ou terras e reestrutura o
território para a criação de valor. Ainda que legal, essas medidas têm
a mesma forma do roubo, pois pressupõem uma prerrogativa unilateral do
Estado que não depende da concordância do afetado. Recentemente, as
imagens das remoções de favelas no Rio de Janeiro em função das
reformas urbanas destinadas a receber os Jogos Olímpicos de 2016 (que,
sob a justificativa de “utilidade pública”, viabilizaram a
incorporação de favelas e terrenos populares ao mercado imobiliário e
a exploração do turismo) mostram o caráter violento dessas medidas
jurídicas. O contingente de policiais e o poderio militar mobilizados
confirmam que o instrumentário jurídico das desapropriações não é um
processo idílico nem igualitário (Cummings 2015; Freeman 2012; Sánchez
e Broudehoux 2013).Uma outra prática comum de privatização e cercamento é a distribuição
por parte do Estado de títulos de propriedade às populações que ocupam
áreas comunitárias (Dowall e Clark 1996). Nesse caso, o membro de uma
comunidade ou de uma terra coletiva é transformado em proprietário da
parcela em que morava ou trabalhava. Após a titulação, o indivíduo se
torna livre para alienar, arrendar, hipotecar, atrair investimentos
para melhora de infraestruturas etc. A literatura dominante tem
identificado nessas práticas um potencial de empoderamento
(empowerment) dessas populações (Atuahene 2006). Não seriam, no
entanto, mais um tipo de violência jurídica?Entre uma historiografia pessimista e otimista sobre as condições da
massa popular inglesa na acumulação primitiva, Thompson (1966: 212)
formulou uma tese que pode ser útil para responder a essa pergunta.
Segundo o autor, a ligeira melhora proporcionada por algumas
legislações protetoras da classe trabalhadora na virada do século
XVIII para o XIX foi, na verdade, sentida como uma experiência
catastrófica. Isto é: se a transformação em trabalhador livre pode ter
representado algum ganho imediato, também significou participar das
condições capitalistas de exploração do trabalho. Transportada essa
tese para a atualidade, é possível afirmar que programas de
distribuição de título de propriedade são caminhos possíveis para se
sentir a experiência catastrófica do precariado.104.2.3. Uso massivo do direito penalSob as condições do trabalho precarizado, criam-se oportunidades para
o surgimento de legislações punitivas destinadas a preparar a massa
livre para suas novas condições de trabalho e reprimir suas formas de
resistência (Wacquant 2014). Existem experiências recentes que mostram
como o direito penal pode ser um componente importante para se sentir
essa experiência como catastrófica. A reforma constitucional do
direito à terra no México é um exemplo esclarecedor desse processo.11A Constituição Mexicana de 1917 inaugurou no mundo o reconhecimento da
propriedade social, assegurando os ejidos e as comunidades, terras
coletivas e áreas comuns para camponesas e indígenas. No final dos
anos 1980 e início dos anos 1990, as negociações sobre a participação
do México no Tratado Norte-americano de Livre Comércio (NAFTA) e as
recomendações do Banco Mundial exigiram ajustes estruturais que
buscassem substituir o modelo agrário da Revolução de 1917 pela
liberalização financeira da terra. Com isso, a Constituição foi
reformada e permitiu expressamente que os ejidos pudessem ser
vendidos, alugados e hipotecados. Em outras palavras: a reforma
constitucional transformou trabalhadores comunitários em proprietários
livres. As condições desiguais e assimétricas (de poder, de
informação, de capital, de distribuição de riscos etc) presentes no
mercado agrário transnacional levaram esses camponeses a vender suas
terras em situações altamente desfavoráveis (de endividamento,
desconhecimento do valor real etc.) e a se tornar empregados dos novos
proprietários (conglomerados empresariais que compraram e concentraram
as terras na forma de grandes latifúndios voltados para a produção de
biocombustível e alimentos em alto escala).Evidentemente que houve uma intensa mobilização dos camponeses contra
essas medidas. A mais importante foi o levante do Ejército Zapatista
de Liberación Nacional em 1994 em Chiapas. Simultaneamente a essa
mobilização, o Estado Mexicano desenvolveu diversas políticas de
criminalização e repressão dos camponeses e dos movimentos políticos.
Este aparelho repressivo desencadeou diversas prisões sob a acusação
de diferentes crimes, dentre eles, ataque à paz pública, portes de
arma de uso exclusivo do exército, insultos à autoridade, violação da
ordem, motim, terrorismo, sedição, rebelião e conspiração (Comité
Cerezo México 2016). Entre 1995 e 2010, existiram em torno de 900
presos políticos condenados em todo o país (id., 2012).Além disso, como mostra Bayo (2013), um conjunto de jurisprudências da
Suprema Corte de Justiça e reformas da lei criminal estabeleceram
diversos regimes de exceção. Segundo a autora, a principal dessas
reformas foi a modificação da Ley contra la Delincuencia Organizada
(id., 199). A nova redação da respectiva lei fez amplo uso de termos
ambíguos e abstratos para identificar a participação de um indivíduo
em uma rede criminosa. Isso possibilitou evidentemente a ampliação da
repressão a mobilizações políticas e sociais, que, por envolver a
reunião de várias pessoas, poderiam agora ser classificadas como ações
de uma organização criminosa. Além disso, como essa lei se refere à
prática de qualquer crime, seus termos abstratos permitiram que
qualquer indivíduo indiretamente relacionado possa ser visto como
parte de uma organização. Isso tem levado à criminalização em massa da
população pobre. Se considerarmos que essa massa é formada por
camponeses e indígenas expulsos de seus ejidos e comunidades, fica
ainda mais claro o caráter disciplinador da respectiva legislação.Esse exemplo ilustra bem a última etapa da reprodução sócio-jurídica
da expropriação capitalista, qual seja, o uso massivo do direito
penal. Essa etapa foi amplamente descrita por Marx no Capitulo 24 do
Volume 1 de O Capital. Quando tratou da usurpação violenta da terra
comunal na Inglaterra, Marx identificou duas fases histórico-jurídicas
distintas no que se refere à regulação dos direitos à terra. A
primeira refere-se ao período que compreende do final do século XV ao
século XVII, quando a respectiva usurpação foi praticada ilegalmente e
contra legislações que buscavam freá-la. A segunda fase verificou-se a
partir do século XVIII, momento em que a usurpação passou a ser legal
e a própria lei se tornou o “veículo do roubo” (MEW 23: 709).Ambos os momentos, no entanto, foram atravessados pelo direito penal,
que Marx então denominou de “legislação sanguinária”. Essas leis
operavam paralelamente à expropriação dos camponeses de suas terras. À
medida que eram expulsos, eles se tornavam completamente livres para
vender sua força de trabalho ao capitalista, mas não conseguiam ser
automaticamente absorvidos pela economia industrial. De um lado, as
manufaturas não cresciam na mesma proporção do número elevado de
camponeses expropriados; de outro, esses camponeses, socializados em
outras práticas, não correspondiam aos novos padrões de trabalho e
modos de vida exigidos. Formava-se, assim, uma massa ainda não
economicamente absorvida que necessitava ser ajustada à “disciplina da
nova situação” (MEW 23: 762). É dessa perspectiva que Marx explicou o
surgimento na Inglaterra e na França de diversas legislações
sanguinárias contra a vagabundagem e a pauperização desde o século XV.
O direito penal, nesse sentido, cumpriu um papel de disciplinamento da
força de trabalho durante o processo de acumulação primitiva.4.2.4. Sistematização do ciclo: violência jurídica e prescrição
jurídica da desigualdadeCom base em todos os elementos até aqui discutidos, é possível fazer
agora uma sistematização de todo o processo da reprodução
sócio-jurídica da expropriação capitalista do espaço e de suas fases.
O primeiro ato se dá com a caracterização do Fora não-capitalista como
um Outro desviante, inferiorizado e atrasado. Umas vez assim
qualificado, é possível praticar atos de expropriação por meio de
técnicas jurídicas destinadas à privatização do espaço comum e
público. O emprego dessas técnicas pressiona grupos sociais e
populações locais a se desvincularem de suas comunidades ou
coletividades, tornando-os livres para vender sua força de trabalho. A
partir desse momento, o direito penal é utilizado para fins de
disciplinamento.Quando o processo de repressão e criminalização dos grupos
expropriados se completa, os indivíduos que pertenciam a esses grupos
se acham suficientemente preparados para ingressar no sistema de troca
de equivalentes. Em outras palavras: somente após o disciplinamento
por meio do direito penal, o ciclo estável da acumulação (D-M-D’) pode
ser normalizado. Uma vez normalizado, o direito passa a aparecer e
funcionar de uma maneira diversa daquela manifestada na expropriação
capitalista. Ele deixa de prescrever expressamente violência e
desigualdade e adquire a estrutura da forma jurídica, isto é, a forma
da igualdade e liberdade abstratas, que se encontra vinculada ao
fetichismo da mercadoria para ocultar a apropriação do tempo de
trabalho que não foi pago.Tudo isso, no entanto, é precedido pela violência jurídica e pela
prescrição normativa da desigualdade conduzidas pelo expropriação
capitalista do espaço. Sistematicamente, foi visto que reprodução
sócio-jurídica da expropriação capitalista se desenvolve em três
etapas: (a) a criação do Fora não-capitalista por meio de othering;
(b) a privatização e (c) a repressão/disciplinamento pelo direito
penal.Ainda que, para implementar essas etapas, o ordenamento jurídico
disponibilize múltiplas instituições, regulações e regras, é possível
identificar o uso mais acentuado de determinados marcos regulatórios
em cada tipo de expropriação capitalista. Para ilustrar esses usos
tomarei – ainda que rapidamente – o exemplo da atual expropriação
dominada pelas finanças. Nela pode-se identificar em cada uma das
etapas citadas um configuração jurídica que se destaca:aNo que se refere à criação do Fora não-capitalista por meio de
othering, os direitos humanos são um instrumento clássico, cujo
emprego pode ser amplamente constatado desde o início do colonialismo
europeu até os processos contemporâneos de financeirização (Anghie
1999; Barreto 2012; Costa e Gonçalves 2011; Gonçalves e Costa 2016;
Gonçalves 2012). Nesses processos, como afirma Chimni (2006), o
projeto neoliberal tem usado amplamente essa experiência para a
abertura de novos mercados e investimentos.bQuanto à privatização, o principal mecanismo de transferência de um
regime público e coletivo para atores privados tem sido as parcerias
público-privadas.cPor fim, no que se refere aos processos de repressão e
disciplinamento, recomendações transnacionais de combate ao
financiamento do terrorismo têm levado à produção de um aparato
repressivo estatal de criminalização de movimentos sociais e de
populações precarizadas.Ainda que de maneira breve, analisarei cada um desses marcos
regulatórios nas próximas páginas à luz da perspectiva de uma
reprodução sócio-jurídica da expropriação dominada pelas finanças.4.3 Reprodução sócio-jurídica da expropriação dominada pelas finançasHarvey (2007, 147 ss) mostra que o fordismo construiu, por meio de
investimentos em infraestrutura e força de trabalho, condições para a
exploração econômica em um determinado espaço. Tal exploração foi
amortizada apenas a longo prazo (Dörre 2012, 42–43). Nesse ciclo, o
Estado tornou-se peça-chave para os movimentos do capital e, ao
absorver a produção por meio de investimentos em bens públicos, criou
uma estratégia de desarme do dispositivo da sobreacumulação.Dörre (id.) interpreta esse processo como a formação de um Fora que,
apesar de utilizado para melhorar a prestação econômica, é inacessível
para a acumulação privada. Com isso, foram construídas as condições
para uma nova expropriação capitalista: quando esse espaço público
esgotou seu potencial de amortização e, consequentemente, se tornou um
obstáculo para a valorização do capital, passou a ser tomado pelo
capital financeiro. Se é verdade que esse processo permitiu que o
capital excedente fosse convertido em ativos, também levou à
desindustrialização e à precarização, isto é, a um novo Fora a ser
posteriormente tomado por um outro tipo de expropriação capitalista,
qual seja, o capitalismo financeiro (Dörre 2012: 44).Caracterizado pelas políticas neoliberais de austeridade e por uma
orientação ao mercado global, todas essas ações, voltadas para
privatizar o mercado de bens e serviços até então produzidos e
administrados pelo Estado, foram desenvolvidas por meio de
intervenções regulatórias e reformas legais. Nesse sentido,
diferentemente do que à primeira vista pode parecer, a expropriação no
neoliberalismo (dominada pelas finanças) é politizada, dependente de
regulação estatal e de (novos) marcos normativos (Dörre 2012, 30–35).4.3.1. Direitos humanos como meio de criação do Fora não-capitalista a
ser expropriadoA principal pergunta do ponto de vista da teoria da expropriação
capitalista do espaço a respeito dos direitos humanos é: Por que a
eclosão da influência política e aceitação social dos direitos humanos
como projeto emancipatório se deu nos últimos trinta anos, isto é,
concomitante às transformações nos modelos de produção e de regulação
que levaram à estabilização da acumulação neoliberal? Para
respondê-la, é preciso recorrer às considerações do jovem Marx.Em Sobre a Questão Judaica, o conceito de universalidade irreal
(unwirklichen Allgemeinheit) apresenta a negação da vida material do
homem em relação ao seu ser genérico (Gattungswesen) por meio da
criação do Estado Político. O ser genérico torna-se uma abstração
política, um cidadão, que encobre o indivíduo real, constituído pelos
interesses egoísticos do burguês. Note-se que o cidadão suspende
apenas abstratamente as desigualdades materiais, mas não as anula,
permitindo que elas se reproduzam, a seu modo, na vida real, na
sociedade civil burguesa (MEW 1: 355-356).Essa crítica é desenvolvida pelo Jovem Marx a partir da distinção
droits du citoyen/droits de l’homme. Uma distinção que indica dois
padrões de direitos. De um lado, os droits du citoyen reforçam a
essência associativa da vida humana e pressupõem a vinculação do homem
em comunidade. De outro, os droits de l’homme, o direito de
propriedade e do homem egoísta, que negam a essência associativa da
vida humana, se baseiam no divórcio de tal vida e no confinamento do
social ao indivíduo. Ao distribuir abstratamente o título de membro da
comunidade, os droits du citoyen suspendem as desigualdades para que
elas se reproduzam na vida social real através dos droits de l’homme
(MEW 1: 355-356; 362 e ss). Abstrata e artificial, a cidadania é uma
alegoria que possibilita a imposição de interesses particulares e
critérios desiguais, reconhecidos pelos droits de l’homme.Em que pese o caráter idealista do conceito de ser genérico, o Jovem
Marx descobriu uma fórmula fundamental para compreendermos como os
direitos humanos criam simbolicamente o Fora não-capitalista que
viabiliza a repetição da acumulação primitiva. Essa fórmula revela que
os direitos humanos operam de modo contraditório: seu caráter
universal cria uma igualdade abstrata que permite a reprodução
jurídica da desigualdade material. Note-se que essa fórmula não
corresponde à lógica da forma jurídica ou do fetichismo, vale dizer,
não se trata da construção de uma relação de contradição em que a
aparência do capitalismo (a troca de equivalente) nega a sua essência
(a relação desigual entre capitalista e trabalhador). A universalidade
abstrata dos direitos humanos (os droits du citoyen) cria as
possibilidades de uma violência direta por parte do direito que
reproduz juridicamente a desigualdade (os droits de l’homme).Isso se dá porque o caráter universal dos direitos humanos pressupõe a
existência de um conjunto de valores inerentes à natureza humana.
Trata-se de uma humanidade intangível que, por residir na essência dos
homens, é presente em todos indistintamente sendo, portanto,
universalizada. Essa característica requer não apenas que todos sejam
tratados de maneira igual, como também exige que o direito destinado à
proteção dos valores humanos seja do mesmo modo universal. Isso
significa que: se é verdade que qualquer indivíduo carrega a
humanidade em si, como a exteriorização de seus atos é contingente,
cabe aos direitos humanos opor-se aos atores, grupos e ações
desviantes.Este é o ponto de partida para se fixar um critério universal e moral
de bem e de justiça, que é adotado como medida para julgar a realidade
como desviante ou não. Note-se que, para autorizar a aplicação dos
direitos humanos, o desviante deve ser considerado como parte da
humanidade (mantém-se o universalismo abstrato), mas, ao mesmo tempo,
deve ser tomado em sua especial fragilidade (porque é desviante). Se
os desiguais são iguais enquanto homens (abstratos), mas inferiores em
suas ações, o grupo autoproclamado “não desviante” pode, então,
“proteger” os desviantes. Essa autoproclamação do grupo supostamente
não-desviante se apresenta discursivamente como superioridade moral e
civilizatória, mas, na verdade, é a manifestação da acumulação de
poder existente na sociedade, conforme explicado por Arendt
(2011[1955]: 326). Nesse sentido, a definição universal de bem e
justiça é monopolizada pelo ponto de vista das posições e classes
dominantes, que a usam para impor seus interesses particulares. Com
isso, o discurso humanista torna-se motor de intervenções, correções,
controles, violências, conquistas e colonizações.No âmbito do capitalismo global, a estratégia desse discurso é
construir uma hierarquia espacial: de um lado, espaços civilizados,
detentores das virtudes da racionalização moderna; de outro, bolsões
de injustiça, governados por normas irracionais e atrasadas. Uma vez
apresentadas como atraso, essas últimas regiões podem ser objeto de
missões civilizatórias e de modernização (Boatca e Costa 2010; Hall
1992).A base dessas missões é a tomada capitalista do território que permite
a expansão da acumulação. Essa combinação entre expropriação
capitalista e discurso dos direitos humanos só é possível por causa da
relação contraditória entre droits de l’homme e droits du citoyen: o
caráter universal dos direitos humanos é utilizado para a expansão do
sistema capitalista, o que, por sua vez, tem como consequência a
difusão global e a transnacionalização do direito de propriedade
(Chimni 2006: 11).Esse processo foi escancaradamente visível no colonialismo, quando a
semântica dos direitos humanos e as missões civilizatórias foram a
base das subjugações e da escravidão de diversos povos que
viabilizaram a acumulação originária (Lander 2011). O mesmo, no
entanto, pode ser observado no capitalismo contemporâneo (Chimni
2006). Basta pensarmos nas guerras humanitárias contra o Iraque e nas
diversas intervenções militares na África, guerras contra o tráfico na
América Latina etc. Todas elas têm levado à expropriação e expulsão de
comunidades, à produção de uma massa de camponeses, convertidos em
trabalhadores precarizados. No seu lugar, há a valorização e a
exploração capitalista do novo solo (land grabbing, especulação
imobiliária etc).Além disso, o suposto grau de superioridade na escala dos direitos
humanos e do desenvolvimento permite às classes dominantes do centro
do capitalismo ditar desenhos institucionais projetados no centro do
capitalismo que devem ser adotados pelo resto do mundo. No âmbito da
acumulação neoliberal, pense-se nas recomendações do Banco Mundial, do
FMI, nas soluções de austeridade às crises etc. Nesse processo está a
base do novo imperialismo: imperativos da acumulação que, com base nas
normas e na linguagem dos direitos humanos, reproduzem a mesma lógica
das “missões civilizatórias” que permitem as neocolonizações, ou
melhor, as expropriações capitalistas do espaço.4.3.2. Parcerias público-privadas como meios de mercantilizaçãoHarvey (1989: 7) mostra que as principais ações de mercantilização no
capitalismo financeiro têm dependido de um novo desenho institucional:
as parcerias público-privadas.Tais parcerias são consideradas a característica central do novo
modelo social de empresariamento (Entrepreneurialism). Para Harvey
(1989: 7-9), elas foram capazes de remodelar as condições de
acumulação previamente existentes, que haviam se transformado em
barreiras para a expansão capitalista. Durante o fordismo, o modelo de
gerenciamento (Managerialism) baseava-se no repasse de recursos e no
envolvimento direto de atores públicos com atividades produtivas e de
investimentos. As transformações macro pós-1973 construíram, todavia,
um novo ambiente econômico que passou a ser dependente da negociação
direta com o mercado financeiro e da reconstrução de uma paisagem
física e social que viabilizasse a competição por recursos e empregos.
Dessa perspectiva, Harvey apresenta a ideia de que os espaços passaram
a ter que assumir um comportamento empresarial. Tal empresariamento
tornou-se possível pelas parcerias público-privadas.Tais parcerias são contratos entre a Administração pública e grupos
privados, nos quais esses últimos fornecem infraestruturas e serviços
urbanos por meio de contraprestação remunerada. O financiamento das
parcerias público-privadas dependem da emissão de títulos negociados
na bolsa de valores. Trata-se de um sistema de captação de recursos
contingenciados, isto é, o Estado só pode aplicar os recursos captados
nas obras previstas para uma determinada região. Em contrapartida, os
compradores dos títulos adquirem direitos de construir e modificar a
infraestrutura urbana. Paralelamente a isso, o espaço é igualmente
aberto para a especulação imobiliária. Com o objetivo de transformação
da paisagem de modo a orientá-la ao mercado, as parcerias
público-privadas se convertem, assim, em um instrumento jurídico
privilegiado para a acumulação financeira.4.3.3. Lei de combate ao financiamento do terrorismo como meio de
disciplinamento da massa “livre”Como visto, a expropriação dominada pelas finanças é a estratégia de
inclusão de territórios em novos fluxos financeiros globais. Essa
estratégia exige uma reestruturação do respectivo espaço para gerar
valor de mercado a áreas até então desmercantilizadas. O efeito social
dessas intervenções tem sido a expulsão da população pobre,
apropriação de áreas públicas, eliminação do comércio local,
apagamento da memória do território, desindustrialização,
precarização, desemprego em massa e pobreza. Dado esse caráter
abertamente antissocial, os projetos de reestruturação de cidades ou
zonas rurais são atravessados por riscos de mobilizações coletivas,
protestos e resistências sociais.Para conter esses riscos, organismos transnacionais do capital
financeiro têm exigido por parte dos Estados a adoção de legislações
de combate ao financiamento ao terrorismo que, ao final, têm servido
para a repressão de movimentos sociais e criminalização da pobreza. O
principal desses organismos é o Finantial Action Task Force (FATF). O
FATF integra uma rede de proteção que busca combater padrões
institucionais que possam produzir efeitos negativos sobre a
“integridade” do sistema financeiro. O objetivo do FATF é reagir às
ameaças advindas da lavagem de dinheiro e do financiamento ao
terrorismo. Para tanto, ele desenvolve uma série de recomendações e,
em seguida, monitora a aplicação dessas medidas em seus países
membros. Ao final, emite relatórios de avaliação que classificam os
países como “conformes”, “parcialmente conformes” e “não conformes” às
recomendações. A recompensa pelo cumprimento é a declaração daquele
ambiente como seguro para os negócios. Já o certificado de “território
não-cooperativo” representa um sinal vermelho para o mercado
financeiro, desestimulando-o a realizar transações naquele país (FATF
2012).As recomendações do FATF, consideradas saudáveis para o sistema
financeiro, têm gerado efeitos completamente contrários à liberdade de
associação e manifestação de movimentos sociais, conforme demonstrou
Hayes (2012). Isso foi particularmente sentido após implementação por
diversos Estados da Recomendação VIII (R. VIII). Segundo Hayes (2012:
2), o sistema de avaliação desse organismo “aprovou alguns dos mais
restritivos regimes reguladores de Organizações sem fins lucrativos no
mundo e encorajou fortemente alguns governos já repressivos a
introduzir novas regras susceptíveis de restringir o espaço político
no qual as ONGs e os atores da sociedade civil atuam”.Países que receberam o selo “conforme a recomendação”, como Egito e
Tunísia, criaram regras, leis e um aparato de segurança que coibiram
largamente a ação de movimentos sociais e coletivos políticos. Se
pensarmos na história recente dos dois exemplos citados, fica evidente
que a adoção da R. VIII foi um dentre muitos outros instrumentos da
reação à Primavera Árabe e aos processos de mudança das estruturas de
poder naquelas sociedades. Hayes (2012:2) realizou ainda estudos de
caso de outros dez países: Miyanmar, Camboja, Colômbia, Índia,
Indonésia, Paraguai, Rússia, Arábia Saudita, Serra Leoa e Uzbequistão.
Em todos, afirma o autor, legislações endossadas pelo FATF
restringiram direitos de organização e manifestação de movimentos
sociais. Segundo Hayes, o impacto do regime da R. VIII também foi
negativo mesmo nos países em que ativistas experimentam maior espaço
de liberdade. Itália, EUA e Bélgica, por exemplo, também obtiveram o
selo “conforme a recomendação”. Nesses três países, foi constatado um
aumento significativo do aparelho repressivo contra movimentos sociais
e imigrantes pobres.Na verdade, o combate ao financiamento do terrorismo tem se tornado um
instrumento fundamental para aumentar o arsenal dos poderes
coercitivos do Estado (Crimm 2008; McCullooch e Pickring 2005; Welsh
2013). De recomendações de organismos como o FATF surgem reformas
legais que adotam termos abstratos, como, por exemplo, “terrorismo”,
que aumentam significativamente a discricionariedade dos poderes
policial e judicial. Com isso, não apenas movimentos de resistência,
mas toda uma população torna-se objeto de constante vigilância. Como
mostra McCullooch e Pickring (2005: 475ss), a criminalização desses
grupos sociais não se limita a ações estatais restritivas da
liberdade, mas se estende por meio de regras jurídicas que concedem às
autoridades governamentais a possibilidade de paralisar
financeiramente contas bancárias de indivíduos ou de organizações
políticas. Trata-se, em resumo, de instrumentos que contem forte
potencial para obstar mobilizações de movimentos sociais, sindicatos,
protestos e indignações coletivas contra a entrada do fluxo do capital
financeiro e seus processos mercantilizadores em determinados
territórios e espaços que ainda não estão compreendidos por tal
lógica.5. ConclusãoUm dos grandes problemas da sociologia crítica do direito é a questão
epistemológica sobre a possibilidade (limites e extensão) de se
conhecer a reprodução sócio-jurídica do capitalismo. Como visto, a
solução habermasiana a essa questão foi cancelar a centralidade do
trabalho enquanto categoria analítica, atribuir às condições sociais
de reprodução do direito características distintas daquelas presentes
na reprodução do capitalismo, enfatizar a dimensão normativa do
sistema jurídico e, com isso, inferir desse sistema um potencial
emancipatório.Do ponto de vista da questão epistemológica citada, a solução
habermasiana simplesmente não buscou enfrentá-la, mas apenas afastá-la
do horizonte da crítica social. Evidentemente que essa postura opera
em uma situação de risco: como a respectiva questão é uma das
condições de realização da própria crítica, desconsiderá-la tem como
principal consequência o perigo da conversão da sociologia crítica do
direito em liberalismo jurídico. Se comparada a outras situações de
tensão no interior da história da sociologia crítica do direito (como,
por exemplo, o Juristen-Sozialismus de Anton Menger, a politische
Justiz de Otto Kirchheimer ou die Herrschaft des Gesetzes de Franz
Neumann), essa conversão foi o principal impasse que ela já
experimentou. Diversos estudos de diferentes orientações anunciaram
inclusive que esse foco obsessivo pela normatividade poderia marcar o
fim da sociologia crítica do direito (Fischl 1993; Schlag 1991).Como mostrado, a normative solution perdeu, todavia, força e
plausibilidade explicativa, principalmente por não conseguir oferecer
respostas às diferentes reestruturações regulatórias do neoliberalismo
implementadas nas últimas décadas e à dimensão jurídica das diversas
crises contemporâneas. A esse déficit explicativo a sociologia crítica
do direito conseguiu reagir apenas quando recolocou a questão
epistemológica no centro de suas análises por meio do resgate da
crítica à forma jurídica. Como visto, isso permitiu repensar
teoricamente o lugar do dever ser (Sollen), tratando-o como parte dos
movimentos contraditórios, antagônicos e conflituosos das relações de
produção, isto é, como parte integrante da reprodução da totalidade
social. No lugar de investigar a realidade a partir de desajustes com
a norma, tem-se a compreensão das estruturas da desigualdade à luz dos
processos de formação do trabalho abstrato e da origem das formas de
fetichismo e reificação. Em outras palavras, a crítica à forma
jurídica demonstrou que a norma jurídica está enraizada e realizada na
relações materiais da vida e em meio aos atos expropriadores ali
existentes. Assim, a sociologia crítica do direito pôde superar os
impasses criados pelo projeto normativo e antiprodutivista, levando
sua questão epistemológica a sério.As possibilidades do conhecimento oferecidas pela crítica à forma
jurídica estão, todavia, limitadas a um momento específico da
reprodução social do capitalismo, o momento da troca de equivalentes.
Foi visto, no entanto, que, por detrás dessas trocas, se desenvolve um
outro modus operandi do sistema. Trata-se de uma fase expansionista
movida pela impossibilidade de realização de parte da mais-valia em
seu lugar de produção e da necessidade de deixar fluir as situações de
sobreacumulação.Essa fase é caracterizada pela expropriação de espaços
não-capitalistas. Uma dinâmica que envolve roubos, colonizações,
guerras e conquistas: reações do sistema aos seus estados de crise que
ativam uma repetição permanente da acumulação primitiva. Como o
capitalismo se reproduz juridicamente sob tais condições? A resposta
aqui apresentada é a de que o direito não aparece como forma, mas como
violência jurídica explícita e prescrição expressa da desigualdade.
Com essa resposta, o objetivo do presente texto foi apenas o de acenar
para o fato de que a teoria da expropriação capitalista do espaço tem
um enorme potencial de fazer a sociologia crítica do direito avançar
em sua possibilidades de conhecer a a reprodução sócio-jurídica do
capitalismo.1
A primeira versão deste artigo apareceu como “Kapitalistische
Landnahme: Eine Erweiterung der kritischen Rechtssoziologie” na Série
Working Paper 3/17 do DFG -Kollegforscher_innengruppe
Postwachstumsgesellschaften. Gostaria de agradecer a Benjamin Seyd,
Emma Dowling, Florian Butollo, Karina Becker, Klaus Dörre, Ligia
Fabris Campos, Maria Backhouse e Yannick Kalff pelas críticas e
sugestões, que recebi durante minha estadia como Senior Fellow no
Kolleg Postwachstumsgesellschaften da Friedrich-Schiller-Universität
Jena, na Alemanha, no inverno de 2017. Gostaria de agradecer, ainda, a
Carolina Vestena, Cesar Mortari Barreira, Lena Lavinas, Manuela
Boatca, Paulo Fontes, Sergio Costa e Virginia Fontes por comentários
essenciais para o desenvolvimento da presente pesquisa.
2
Essa escolha se deu simplesmente porque, como assinalado na primeira
nota de rodapé, o presente artigo foi originariamente formulado para
intervir no debate alemão. Isso me levou a privilegiar a literatura
oriunda desse debate e desconsiderar trabalhos fundamentais sobre
acumulação primitiva, como, por exemplo, os de Ellen Wood, Massimo de
Angelis, Virginia Fontes e os teóricos dependentistas. Trata-se, no
entanto, do primeiro passo de uma pesquisa em desenvolvimento, cujas
próximas etapas deverão incorporar as lacunas existentes.
3
A crítica ao modelo habermasiano (descrita nos parágrafos seguintes)
foi anteriormente desenvolvida em Gonçalves 2014.
4
A literatura é vastíssima. Ver, a título de exemplo, Brunkhorst 2002,
Fassbender 2009, Günther 2009, Habermas 2004, Walker 2007. Para uma
crítica que mostra como os mecanismos do direito cosmopolita reforçam
as desigualdades globais, ver Boatcă 2015, Gonçalves e Costa 2016.
5
A literatura sobre direito como forma de coesão social é ampla.
Particularmente relevante foi a contribuição dada pela sociologia
marxista do direito italiana na virada dos anos 1970-80, bastante
influenciada por Galvano Della Volpe. Ver, entre outros, Badaloni
1972; Barcellona 1978; Cerroni 1974; De Giorgi 1980. Atualmente esse
tema foi desenvolvido por Buckel 2007 e 2010.
6
Lembre-se que, conforme as palavras de Marx e Engels (MEW 4: 472), “a
subversão contínua da produção, o abalo incessante de todas as
condições sociais, a insegurança e a agitação perpétuas distinguem a
época burguesa de todas as anteriores

16 Dicas para ser mais sustentável e as 17 empresas mais sustentáveis do mundo

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Com ela, conseguimos ter um olhar mais atento e sensível para o todo, olhando para o impacto que geramos no ambiente e nos seres humanos e não humanos.Comente se você utiliza alguns desses 16 comportamentos ou cite outros que já virou hábito para você pensando em sustentabilidade.Se você trabalha em uma empresa que tem a sustentabilidade como base nos valores da sua estrutura de negócio, comente por favor.Vejamos alguns comportamentos para alcançarmos este estilo de vida.Conheça e valorize as práticas de responsabilidade social das empresas. Em suas escolhas de consumo, não olhe apenas preço e qualidade do produto. Valorize as empresas em função de sua responsabilidade para com os funcionários, a sociedade e o meio ambiente.2. Usar o verso das folhas de papel, sempre que possível.Em casa ou no trabalho, sempre que possível utilize o verso das folhas de papel.3. Utilize a tecnologia a seu favor.Evite imprimir mensagens eletrônicas que podem ser consultadas facilmente no seu celular ou no seu computador.Evite receber contas e extratos bancários em casa, atualmente podemos receber tudo por e-mail ou realizar consultas nos aplicativos. Até mesmo aqueles comprovantes de compras no cartão, pode ser enviado para o seu celular em vez de acumular vários comprovantes na sua carteira.4. Evitar deixar lâmpadas acesas em ambientes desocupados | Use lâmpadas de LED.Esse simples hábito ajuda a economizar em casa e na empresa. Se você ou a empresa optar por lâmpadas de LED, terá grande economia de energia elétrica e maior durabilidade.5. Planeje suas compras.Por mais que você acredite que se lembra de tudo o que comprará no mercado, fazer uma lista de compras ajuda você a organizar melhor seu orçamento e a ir diretamente até os produtos dos quais você realmente precis. Com isso  evitará comprar demais e ver os alimentos estragarem na geladeira.6. Aproveite a luz natural da sua casa.Essa dica é a mais fácil, aproveite ao máximo a luz natural, opte pela luz artificial apenas quando não tiver mais sol. Assim, economizamos energia elétrica e consequentemente diminuímos o gasto com a conta de luz. 7. Opte por latas.Se você for comprar uma bebida pronta, prefira sempre a latinha. O Brasil é líder mundial na reciclagem de alumínio, reciclando em torno de 98% desse material. Em contrapartida, infelizmente, reciclamos apenas 2% do plástico.8. Separe o lixo orgânico.Separar o lixo entre orgânicos, recicláveis e rejeitos, além de conseguimos dar um destino adequado aos resíduos, nos faz observar como podemos diminuir esses materiais que estão sendo produzidos.9. Segunda-feira sem carne.Quem nunca esperou a chegada da segunda para dar início a um projeto, com o preço elevado das carnes, além da economia no bolso é um bom dia para dar um tempo para nosso organismo, já que as carnes vermelhas são famosas por ser um dos alimentos de mais difícil digestão. Reduzir o consumo de carne faz bem para você, pois diminui o risco de diabete, doenças cardiovasculares, controle do peso e o risco de alguns tipos de câncer.10. Compre em feiras locais.Procure saber o dia das feirinhas locais e apoie os pequenos produtores. Quando vamos em feiras locais, estreitamos laço com a comunidade, compramos produtos mais frescos, orgânicos, sem tanto agrotóxico. Quando compramos em supermercados, os produtos viajam, emitindo carbono e combustível por parte dos transportes terrestres. Já os produtos na feira estão na estação do produto, com uma distância menor entre a colheita e a feira.Além disso, comprar na feira pode ser mais barato, porque no mercado os alimentos orgânicos são obrigados por lei a estarem embalados em uma bandejinha de isopor com plástico em volta.11. Use sempre a ecobag.No mercado, na padaria, na farmácia, enfim, em todos os lugares. Às vezes pensamos em usar a ecobag só no mercado, mas podemos usá-la em qualquer estabelecimento. Muito mais confortável do que ficar andando com várias sacolas de papel ou plástico nas mãos.12. Você costuma pagar suas contas online?Algumas pessoas ainda têm medo de aderir ao digital, não me lembro qual foi a última vez que entrei em um banco para pagar alguma conta ou para transferir algum dinheiro. O digital é a forma mais simples, prática e rápida para quem precisa fazer gestão do tempo.Se você tem um negócio, opte por notas, contabilidade e contratos online.13. Faça doações.Tire um tempo para organizar as suas coisas e separar o que você não usa mais. Separe roupas, sapatos, utensílios de cozinha e até objetos que você não usa mais e faça doações.Enquanto muitas pessoas passam a vida acumulando coisas, outras podem estar precisando delas. Não custará nada a você se desfazer desses pertences que não têm mais serventia.Além disso, fazer doações pode ser uma maneira muito eficiente de encontrar itens perdidos nas gavetas e guarda-roupas e evitar compras desnecessárias no seu cotidiano.14. Compre roupas em brechós.Por falar em tendências, comprar roupas em brechó é uma das formas mais sustentáveis de vestir-se. Evitamos que novas matérias-primas sejam necessárias para confeccionar uma peça de roupa nova, economizamos energia e produtos químicos.Muitas dessas peças de roupas acabam indo para aterros e lixões. Além disso, comprar roupas em brechó é sinônimo de economizar dinheiro, outra dica é doar as roupas que você não usa mais.15. Otimize o uso da máquina de lavar roupas.Ao invés de lavar poucas roupas várias vezes por semana, é muito mais prático acumular as peças e levá-las de uma só vez. Você aproveita a capacidade máxima da máquina de lavar, consome menos água, menos produtos de limpeza e menos energia elétrica.16. Seque suas roupas com o vento.Uma dica muito simples e muito efetiva é deixar suas roupas secarem naturalmente, no vento. Para economizar energia elétrica, temos a natureza à nossa disposição para fazer o papel da máquina de secar.17 empresas mais sustentáveis do mundo 1 –  Siemens logo square – A Siemens é um grupo internacional da Alemanha especializado em novas tecnologias que define o desenvolvimento sustentável como meio de alcançar um crescimento lucrativo e de longo prazo. Se alinhando com os objetivos da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável da ONU.2 –  Logo cisco – A Cisco é uma empresa americana especializada em hardware de rede. A forte governança corporativa e conduta ética ajudam a Cisco a conquistar confiança, gerenciar riscos, promover o crescimento sustentável e construir uma empresa sólida.3 –  Philips – A Philips é um dos grupos mais importantes do mundo em eletrodomésticos, iluminação e equipamentos médicos. A Philips reforça sua liderança como uma empresa orientada por propósitos, com uma abordagem otimizada e totalmente integrada para fazer negócios de forma responsável e sustentável.l4 –  Johnson & Johnson – Johnson & Johnson é uma empresa farmacêutica americana criada em 1886. Premiada em reputação corporativa apresenta suas lições de sustentabilidade e lucro.5 –  A DSM é  uma empresa da Holanda especializada nos mercados de nutrição e farmacêutica. Acredita tão fortemente na sustentabilidade que os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU estão inseridos na estratégia e nas ações diárias dessa empresa.6 – Sistemas Dassault – A Corporate Knights classifica a companhia como a número 1 entre as 100 maiores empresas mais sustentáveis do mundo. Para a Dassault Systèmes, o reconhecimento faz parte de sua missão de harmonizar produtos, natureza e vida.7 –  Mccormick logo – É uma empresa multinacional americana especializada no setor agroalimentar. A empresa forneceu aos funcionários ferramentas para melhorar a eficiência e reduzir água, desperdício e energia, o que resultou em uma redução de 43% em sua pegada de carbono.8 – Henkel Logo square – A Henkel é uma empresa alemã presente em três áreas de atividade: detergentes e manutenção doméstica, beleza e adesivos. Como líderes em sustentabilidade, visam abrir caminhos às novas soluções para o desenvolvimento sustentável, enquanto continuam moldando a empresa de maneira responsável. 9 – BMW – A Bayerische Motoren Werke AG, geralmente conhecida sob sua sigla BMW, é uma empresa alemã de fabricação de veículos, motocicletas e motores de luxo fundada em 1916. É uma das montadoras de luxo mais vendidas no mundo. O BMW Group gostaria de aumentar significativamente a transparência e a eficiência de recursos em toda a sua cadeia de suprimentos. O grupo já investiu mais de € 350 milhões em programas de educação e treinamento desde o início de seu plano de sustentabilidade.10 – Nokia – A Nokia é uma empresa multinacional finlandesa especializada em serviços de telecomunicações. Para minimizar seu impacto ambiental, a Nokia pretende tornar suas próprias operações o mais ecoeficientes possível, ajudando as operadoras a lidar com o crescimento do tráfego de dados de maneira sustentável, ajudando a reduzir o consumo de energia em suas redes.11 – Natura – Natura é uma empresa de cosméticos. O desenvolvimento sustentável é o princípio orientador da Natura Brasil desde que foi fundada em 1969.12 – Holmen – É uma empresa sueca que baseia seus negócios nas indústrias florestal e de papel. Eles pretendem fazer com que seus ativos substanciais em florestas e energia ofereçam receita estável que cresça com o tempo através do desenvolvimento sustentável.13 – A Syngenta AG é um agronegócio suíço global que produz agroquímicos e sementes. Como empresa de biotecnologia, realiza pesquisas genômicas. A empresa sabe que seus negócios dependem de recursos naturais sustentáveis, ecossistemas saudáveis e comunidades rurais prósperas.É por isso que eles cooperam com parceiros da indústria, ONGs e governos para apoiar a consecução dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) das Nações Unidas.14. Schnieder electric – A Schneider Electric é a empresa mais sustentável do CAC 40. A sustentabilidade está no centro da estratégia da empresa, eles acreditam que melhor clima significa melhor economia e acesso à energia é um direito humano básico.15 – A Marks and Spencer (também conhecida como M&S) é um grande varejista multinacional britânico, fundado em 1884.A empresa está comprometida em fornecer valor sustentável para seus stakeholders. Ao contratar com responsabilidade, reduzir o desperdício e ajudar as comunidades, a M&S acredita que pode fazer sua parte para ajudar a proteger o planeta.16 – A Novozymes é uma empresa global de biotecnologia, para eles sustentabilidade significa agregar valor nas esferas econômica, ambiental e social. Suas metas de longo prazo são definidas para cumprir seu propósito declarado de encontrar respostas biológicas para uma vida melhor em um mundo em crescimento17 – A L’Oréal é uma empresa francesa que comercializa cosméticos desde 1909. O CEO Jean Paul Agon se comprometeu em tornar 100% de seus produtos sustentáveis até 2020.Veja também:Pilares da empregabilidade em altaComo encontrar equilíbrio entre a vida pessoal e a carreira.Gestão humanizadaUm grande abraço e até a próxima newsletter. 😉Janaína LimaLinkedIn Top Voice | Mentora de Carreira | Especialista em Recolocação Profissional e Empregabilidade. Criadora do Programa Completo Recolocação Profissional 2.0!PS: Acompanhe meus conteúdos gratuitos e avançados e minhas redes sociais para te ajudar a conquistar um novo emprego nesse link AQUI.Referências:https://andrebona.com.br/conheca-9-praticas-de-consumo-consciente/https://faq-ans.com/pt/Q%26A/page=b5768f56c553770640fd3c4f6eed7a5ehttps://www.conquistesuavida.com.br/noticia/segunda-sem-carne-por-que-e-como-aderir-a-esse-movimento-de-maneira-saudavel_a8924/1https://www.agorasou.eco.br/como-ser-sustentavelhttps://meiosustentavel.com.br/empresas-sustentaveis/https://planin.com/dassault-systemes-e-reconhecida-como-empresa-mais-sustentavel-do-mundo/https://www.euqueroinvestir.com/conheca-as-20-principais-empresas-multinacionais-mais-sustentaveis-%E2%80%8B%E2%80%8Bdo-mundo/#Mccormick_logohttps://herself.com.br/blog/o-que-e-ser-uma-empresa-sustentavel/#assuntodasemana #sustentabilidade #janainalimaParticipe da conversaConhece alguém que possa se interessar por esta newsletter? 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A HISTÓRIA QUE A HISTÓRIA NÃO CONTA”: Organizações e disputas narrativas pelas lentes dos entregadores grevistas na América Latina em 2020 “THE STORY THAT HISTORY DOES NOT TELL”: Organizations and narrative disputes by the lenses of striking deliverers in Latin America in 2020 Ana Beatriz Bueno de JesusBruna da Penha de Mendonça CoelhoSOBRE OS AUTORES […]

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Processo de formação e aprendizagens ao longo da vida

Peter AlheitBettina DausienSOBRE OS AUTORES

TRADUÇÃO

Processo de formação e aprendizagens ao longo da vida*

Peter AlheitI; Bettina DausienII

IUniversité de Göttingen

IIUniversité de Bielefeld

Introdução

O conceito de “aprendizagem ao longo da vida” permanece maldefinido. Que nós aprendemos durante toda a nossa vida, é evidente. Desde nossos primeiros passos e de nossas primeiras palavras até a nossa idade mais avançada, fazemos experiências novas, adquirimos novos saberes e novas competências. Somos quase tão inconscientes do modo que temos de aprender, quanto do fato de respirarmos. Certamente aprendemos na escola e também na universidade e nos estabelecimentos de formação, mas mesmo nesses lugares instituídos de formação e de aprendizagem, o que aprendemos de verdadeiramente importante, freqüentemente, não tem nada a ver com os programas oficiais. Experimentamos situações, adquirimos habilidades, testamos nossas emoções e nossos sentimentos na “escola” mais efetiva que há: a “universidade da vida” (Field, 2000). Portanto, aprendemos e nos formamos nas conversas com os amigos, assistindo à televisão, lendo livros, folheando catálogos ou navegando na Internet, tanto quanto quando refletimos e quando fazemos projetos. Pouco importa se essa maneira de nos formarmos é trivial ou requintada: não podemos alterar o fato de que somos aprendentes “no longo curso” da vida.

Nos debates dos últimos trinta anos sobre política da formação — particularmente na última década —, o conceito de aprendizagem ao longo da vida tomou uma dimensão estratégica e funcional. É a ele que se recorre para definir as missões de formação das sociedades pós-modernas. O mais importante documento europeu sobre a política de formação, o Memorandum sobre a educação e a formação ao longo da vida, ratificado em março de 2000 em Lisboa, pela Comissão Européia, define: “a aprendizagem ao longo da vida (lifelong learning) não é apenas mais um dos aspectos da educação e da aprendizagem; ela deve se tornar o princípio diretor que garante a todos o acesso às ofertas de educação e de formação, em uma grande variedade dos contextos de aprendizagem” (Commission of the European Communities, 2000, p. 3).

Duas razões principais são evocadas para justificar essa afirmação:

A Europa tornou-se uma sociedade fundamentada no conhecimento e na economia. Mais do que em tempos passados, o acesso às informações e aos conhecimentos mais recentes, assim como a motivação e os saberes necessários à utilização inteligente, pessoal e coletiva desses recursos tornaram-se a chave da competitividade européia, além de serem igualmente benéficos à empregabilidade e à adaptabilidade da força de trabalho;

Os europeus vivem, atualmente, em um mundo social e político complexo. Os indivíduos, muito mais do que antes, querem planejar suas vidas, esperam contribuir ativamente para a sociedade e devem aprender a viver positivamente na sua diversidade cultural, étnica e lingüística. A educação, no seu sentido mais amplo, é a chave para aprender e compreender como superar esses desafios. (Commission of the European Communities, 2000, p. 5)

Essa dupla motivação, ainda que restrinja o conceito apenas à dimensão funcional, permite contudo precisar sua definição. O Memorandum estipula claramente que a educação ao longo da vida concerne a todas as atividades significativas de aprendizagem, tais como:

Processos de aprendizagem formais que ocorrem nas instituições de formação clássicas e que são, geralmente, validados por certificações socialmente reconhecidas;

processos de aprendizagem não formais que se desenvolvem habitualmente fora dos estabelecimentos de formação institucionalizados — nos locais de trabalho, em organismos e associações, no seio de atividades sociais, na busca por interesses esportivos ou artísticos;

processos de aprendizagem informais, que não são empreendidos intencionalmente e que “acompanham” incidentalmente a vida cotidiana. (Commission of the European Communities, 2000, p. 8)

O interesse dessa nova compreensão do conceito de educação reside em estabelecer a sinergia desses diferentes modos de aprendizagem. A aprendizagem não deve ser somente, e sistematicamente, ampliada para toda a duração da vida. Ela deve também se desenvolver “lifewide“, quer dizer, generalizar-se para todos os domínios da vida, para isso estabelecem-se, portanto, ambientes de aprendizagem nos quais os diferentes modos de aprendizagem encontram-se para complementarem-se organicamente.

A dimensão do ‘lifewide learning’ (educação abarcando todos os aspectos da vida) enfatiza a complementaridade entre aprendizagens formais, não formais e informais. (Commission of the European Communities, 2000, p. 9)

Entendida desse modo, a educação ao longo da vida parece responder no primeiro plano a uma necessidade econômica e social. Ela não diz respeito apenas a elites tradicionais, mas a todos os membros da sociedade. O Livro branco da educação ao longo da vida, publicado pelo ministério da educação inglês em 1998, afirma em sua proposta central:

Para fazer face à mudança rápida e ao desafio da era da informação e da comunicação, devemos garantir que as pessoas possam voltar a aprender ao longo de suas vidas. Nós não podemos contar com uma pequena elite apenas, qualquer que seja seu grau de educação. Ao contrário, necessitamos de criatividade, de espírito empreendedor e da instrução de todos. (Department for Education and Employement, 1998, p. 7).

O “conceito novo” de educação ao longo da vida é revelador de um fenômeno societário que o pesquisador em ciências da educação John Field (2000, p. 133) chamou de “nova ordem educativa”. Aprender ganha um significado novo para a sociedade inteira, para as instituições educativas e para os indivíduos. Essa reconfiguração não deixa de ter uma contradição interna: a nova aprendizagem primeiramente inscreve-se em um quadro econômico e político cujos objetivos são a competitividade, a empregabilidade e a adaptabilidade das “forças de trabalho“. Ao mesmo tempo, a liberdade biográfica de planejamento e de engajamento social dos indivíduos devem sair, dessa situação, reforçados. A educação ao longo da vida pode aparecer sob o duplo aspecto da “instrumentalização” e da “emancipação“.

As reflexões a seguir visam à elaboração dessa tensão. Procederemos inicialmente à elucidação do conceito que nos parece necessário à discussão. Em seguida, faremos uma análise crítica das condições do quadro social da educação ao longo da vida. Depois apresentaremos o conceito de aprendizagem biográfica que representa nossa contribuição teórica à questão da “formação ao longo da vida”. Finalmente, consideraremos as perspectivas de pesquisa abertas por esse novo conceito. Nas nossas reflexões, adotamos conscientemente uma perspectiva internacional. A educação ao longo da vida relaciona-se claramente com as “contingências da mundialização” das políticas de educação e de formação que deverão ser consideradas na nossa argumentação.

Conceitos e perspectivas

Em razão dos múltiplos sentidos ligados aos conceitos de educação e de formação ao longo da vida, um breve esclarecimento das noções nos parece útil. Isso nos permitirá, ao mesmo tempo, precisar o ponto de vista que adotamos para essa análise.

“Formação” e “aprendizagem”

Os conceitos de formação e de aprendizagem, que têm cada um seu campo semântico e sua tradição teórica, não podem ser discutidos sistematicamente e delimitados um pelo outro. Na seqüência deste texto, eles serão empregados, um e outro, e sua significação será especificada em função do contexto. Globalmente, pode-se diferenciar o conceito mais “restrito” de aprendizagem que se refere à atividade individual e coletiva concreta, do conceito mais amplo de formação, que tende geralmente a indicar os processos de formação individuais e coletivos relacionados acima e as figuras biográficas que permitem a perlaboração da experiência. Quando, no texto que se segue, tratar-se de “aprendizagem”, não se referirá aos procedimentos de aquisição e de apropriação progressiva de saberes ou de competências que se procura alcançar, mas ao processo altamente organizado da perlaboração, da ligação e da (trans)formação dos primeiros processos de aprendizagem em uma figura biográfica de experiências, ou seja, de algum modo uma “segunda ordem” de processos de aprendizagem.

“Toda a vida”, “ao longo da vida”, “biografia”

A expressão “aprendizagem e formação ao longo da vida” indica, em primeiro lugar, uma medida de tempo, uma expressão quantitativa ou uma duração que é a do tempo de uma vida humana. Em uma primeira abordagem, isso pode parecer trivial, porém a dimensão do tempo (“aprender requer tempo”) e a ordem na qual se encadeiam os fenômenos (“uma coisa depois da outra”, “o que não se aprende em pequeno, não se aprende jamais”) desempenham sempre um papel importante nos processos de aprendizagem e de formação. De resto, a impressão de trivialidade desaparece quando se trata de definir a maneira pela qual esse aspecto da temporalidade é conceitualizado.

A temporalidade dos processos de aprendizagem não deve ser, necessariamente, pensada na perspectiva do curso integral da vida. A maior parte das teorias (psicológicas) da aprendizagem tematizam, por exemplo, a aprendizagem em termos de mudanças comportamentais – mais ou menos complexas — sobre o horizonte temporal da situação de aprendizagem ou da ação. Uma outra teoria, menos representada nos contextos pedagógicos, questiona os processos de aprendizagem das configurações sociais (instituições, classes, nações, sociedades) em uma dimensão histórica (palavras-chave: história das mentalidades, “herança social”, experiências coletivas diante das crises e das mudanças históricas). O ponto de vista do “curso da vida” adota um nível de análise temporal específico, que relaciona com outras dimensões temporais, e salienta uma lógica de construção que lhe é própria (Schüller, 1997). Não se trata, nesse caso, da medida quantitativa da “duração da vida”1 e sim do aspecto qualitativo dos processos que ocorrem toda a vida e de sua estruturação sociocultural. É esse aspecto que é conceitualizado sob o termo de biografia. Apenas uma concepção teórica da biografia – essa será nossa tese – justifica a exposição analítica e a delimitação de “aprendizagem ao longo da vida” (ou ainda aprendizagem “biográfica”) como objeto da pesquisa biográfica2 (Alheit; Dausien, 2000b; Dausien, 2001).

As reflexões seguintes têm por objeto desenvolver os motivos que fundamentam esse ponto de vista e de indicar as linhas do vasto programa de pesquisa, tanto teóricas quanto empíricas, ao qual ele se abre. O caráter programático desse texto decorre do estado atual da pesquisa: apesar da avalanche de publicações (nem sempre completamente) científicas sobre o tema da “educação ao longo da vida”, existe ainda, relativamente, poucas reflexões teóricas e, menos ainda, pesquisas empíricas que estudam o fenômeno em si mesmo, sem pressupor abstratamente o contexto.

Um duplo ponto de vista

A educação ao longo da vida pode ser considerada sob diferentes aspectos. Na discussão atual, distinguem-se acima de tudo dois pontos de vista:

1. Um interesse principalmente motivado pela política da formação vinculado à mudança das condições da sociedade do trabalho e da educação, acarretando conseqüências para a organização social individual e coletiva da aprendizagem (Longworth; Davies, 1999; Dohmen, 1996; Brödel, 1998; Alheit; Kammler, 1998; Gerlach, 2000; Field, 2000; Achtenhagen; Lempert, 2000);

2. Um ponto de vista de caráter essencialmente pedagógico concernente a condições e possibilidades de uma aprendizagem biográfica dos membros da sociedade (Dominicé, 1990; Kade; Seitter, 1996; Alheit, 1999; Alheit; Dausien, 1996; 2000b; Delory-Momberger, [2000] 2004).

O primeiro ponto de vista inspira, a partir dos anos de 1960, uma política internacional de “educação ao longo da vida” (Dohmen, 1996; Gerlach, 2000; Field, 2000) que visa a pesquisa e o desenvolvimento de novas concepções de formação diante da criação de recursos econômicos e culturais relacionados com as sociedades ocidentais. Como pano de fundo, há o diagnóstico de que a mudança social acelerada, as rupturas e as mutações trazidas por ela exigem, para serem superadas pelos atores sociais, competências e flexibilidade que não podem ser adquiridas no ritmo e nas formas institucionalizadas dos processos “tradicionais” de formação. Os limites dos programas de formação devem ser transformados, novas redes sociais e novos ambientes de formação devem ser criados (Alheit, 1999; Field, 2000). As reflexões de natureza política dirigidas a esse contexto assumem, geralmente, a forma de “linhas diretrizes” (Dohmen, 1996) e de memorandos (Field, 2000). Sob esse ângulo, os conceitos e os resultados científicos que poderiam ser pertinentes no contexto da pesquisa em educação serão evocados de forma ampla mais além.

O segundo ponto de vista – que se inscreve no contexto de uma ciência da educação orientada para o sujeito – toma como objeto os processos de aprendizagem e de formação do ator social individual. Nesse contexto, a atenção é focada, principalmente, sobre os aspectos não formais, informais, não institucionalizados e auto-organizados da aprendizagem. As palavras-chave “aprendizagem do cotidiano”, “aprendizagem a partir das experiências”, “aprendizagem por assimilação”, “aprendizagem ligada ao mundo da vida” ou “autodidaxia” constituem novos temas e campos da pesquisa (Dohmen, 1996; Kade; Seitter, 1996; Ação combinadas formação contínua, 1998). Trataremos dos aspectos desse debate heterogêneo do ponto de vista teórico, sob a perspectiva de uma teoria biográfica e formularemos as conseqüências para a pesquisa na formação ou em formação.

Perspectiva 1: “A aprendizagem ao longo da vida” – uma nova ordem educativa

O consenso político global, que se fecha no final do século XX em torno do conceito de educação ao longo da vida (Field, 2000), constitui um fenômeno surpreendente que exige explicação. Os debates dos anos de 1970, particularmente o relatório da comissão da UNESCO dirigida pelo antigo primeiro ministro e ministro da educação Edgar Faure (1972), assim como uma série de publicações da Organização para a Cooperação Econômica e o Desenvolvimento (OCDE; CERI, 1973), provocaram modestas iniciativas em matéria de política de formação por parte dos governos nacionais (Gerlach, 2000); ao contrário, um documento dos anos de 1990 com o aval de Jacques Delors, o White Paper on Competitiveness and Economic Growth (Commission of the European Communities, 1994), e depois, de forma indubitável, o relatório de uma comissão de especialistas da UNESCO, igualmente sob a responsabilidade de Jacques Delors (1996), conduziram a uma multiplicação de iniciativas internacionais relacionadas com o tema da educação ao longo da vida.

Desde que a Comissão Européia fez de 1996 o ano da educação ao longo da vida (Year of Lifelong Learning), um ministro da “educação ao longo da vida” foi nomeado na Inglaterra; livros verdes e livros brancos sobre os novos objetivos dos sistemas de formação apareceram no País de Gales, na Escócia, na Inglaterra, um pouco mais tarde, também, nos Países Baixos, na Noruega, na Finlândia e na Irlanda; o ministério alemão para a formação, a ciência, a pesquisa e a tecnologia apoiou muitos relatórios e encontros de especialistas sobre o tema (Dohmen, 1996, 1998); a Comissão Européia publicou o Livro branco da educação e da aprendizagem (Commission of the European Communities, 1995); a UNESCO (Delors, 1996), a OCDE (1996) e o grupo dos oito países mais industrializados (Group of eight, 1999) também contribuíram para essa reflexão.

Quatro características de desenvolvimento atuaram de maneira decisiva nessa mudança de paradigma das programações de formação e seus efeitos se associaram para conduzir, nas sociedades pós-industriais ocidentais do final do século XX, ao que John Field chamou de “explosão silenciosa” (“silent explosion”) (Field, 2000, p. 35): (a) a transformação da significação do “trabalho”; (b) perturbações intervieram na função do “saber”; (c) a experiência de disfuncionamentos crescentes das instituições de formação; e (d) os desafios dirigidos aos atores sociais, indicados no momento por termos como “individualização”, “modernização reflexiva” (Beck, 1986; Giddens, 1990; Beck; Giddens; Lasch, 1996).

A transformação do “trabalho” nas sociedades pós-modernas

A significação do trabalho produtivo foi profundamente modificada ao longo do século XX. A maior parte das pessoas, certamente, passa menos tempo no trabalho do que seus avós. Em 1906, um ano médio de trabalho correspondia a aproximadamente 2900 horas; em 1946, já não passava de 2440 horas; e em 1988, de 1800 horas (Hall, 1999). A “estrutura interna” do trabalho também mudou. A conversão em massa de empregos do setor industrial para o setor de serviços não passa, nesse sentido, de um indicador superficial. Mais decisivo é o fato de que o valor ligado à representação de “uma vida de trabalho”, mesmo se tradicionalmente as mulheres estavam dela excluídas, pertence definitivamente ao passado. Do ponto de vista estatístico, a atividade profissional não remete mais a um único exercício profissional nem ao exercício de um mesmo ofício por um período importante da vida e sim à alternância das fases de trabalho e de fases de formação, de rupturas voluntárias ou involuntárias de trabalho, de estratégias de conduta de carreira e até à alternância de fases de trabalho e de períodos consagrados à família (Arthur; Inkson; Pringle, 1999).

Essa evolução não afetou apenas as representações tradicionais do curso da vida (Kohli, 1985; 1989), ela tornou mais arriscados os projetos individuais de vida (Heinz, 2000b) e também trouxe novos problemas às instituições em questão que são “fornecedoras de estrutura do curso da vida” (Heinz, 2000a, p. 5): agências do sistema de emprego e do mercado de trabalho, da segurança social e das aposentadorias, antes de mais nada, instituições do sistema de formação. Algumas delas impuseram-se o desafio de compensar os efeitos da desregulamentação e da flexibilidade do mercado de trabalho, de acompanhar as “mudanças de estatuto” imprevistas e difíceis, de acomodar as transições para modos modernizados de “percursos de vida” e de encontrar um novo equilíbrio entre as opiniões dos atores individuais e as limitações funcionais das instituições (Heinz, 2000a). “A aprendizagem ao longo da vida” apresenta-se, aqui, precisamente como um instrumento de governança inovando as políticas novas do “curso da vida”.

A nova função do saber

Essa idéia de governança mostra-se tão mais necessária quanto o domínio no qual ela se realiza e foge cada vez mais a uma definição. O lugar comum, segundo o qual o saber, após as inovações tecnológicas da “sociedade de informação” pós-industrial, tornou-se o principal recurso do futuro, dissimula o embaraço no qual nos encontramos para definir a função e a natureza desse saber (Rahmstorf, 1999). Declaradamente a dificuldade não reside na definição dos objetos do saber que deveriam ser divulgados e partilhados nem na constatação da “cientifização” crescente de todos os domínios da vida (Wingens, 1998; Stehr, 2000), porém na exata apreensão de um fenômeno que se ampliou na mesma medida de seu usos concretos ao se desvalorizar. O “saber” não é mais esse “capital cultural” que Bourdieu definiu em função das estruturas sociais e que assegura sua perenidade por meio de processos indefinidamente repetidos da reprodução (Bourdieu, 1987). “Saber” é uma espécie de “capital cerebral” (Field, 2000, p. 1), que produz economias novas e, ao mesmo tempo, virtuais. A crise da bolsa da “nova economia” dos anos de 2000 representa apenas a face sombria desse aspecto de difícil apreensão do “novo saber”.

As redes de comunicação e de interação da era da tecnologia informática, que há muito tempo têm penetrado, ampliado e transformado os processos da produção industrial convencional e transtornado as características tradicionais dos serviços e da administração, permanecem, no entanto, mais fortemente dependentes do usuário individual do que as formas de saberes do passado. Os procedimentos personalizados que este desenvolve nos novos mercados virtuais, seus contatos, suas iniciativas, seus hábitos de consumidor na Internet, esboçam já as formas de saberes do futuro. O “saber” da sociedade de informação é um doing knowledge, uma maneira de “dar uma forma à vida” que, bem além do domínio profissional, define as estruturas novas da sociedade e as dinamiza em ciclos sempre mais rápidos. As características do “novo saber” exigem, agora, procedimentos flexíveis de feedback, controles complexos de autogovernança e um permanente management da qualidade (Rahmstorf, 1999). Nesse quadro, a finalidade da formação e da aprendizagem transformou-se espetacularmente (Nolda, 1996). Ela não consiste mais em pôr à disposição nem em transmitir saberes, valores ou competências preestabelecidos, porém em permitir, de algum modo, a “osmose dos saberes”, sob a forma de trocas permanentes da produção individual e da gestão organizada do saber. A idéia de “aprendizagem ao longo da vida”, especialmente, de “aprendizagem auto-gerida”, parece – ao menos como quadro conceitual – ser particularmente adaptada para acompanhar esse processo.

A disfuncionalidade das instituições de formação

São precisamente essas condições de uma “sociedade do saber” nascente que põem em questão a organização clássica dos dispositivos de ensino e de aprendizagem e as concepções que lhes são subjacentes. Entre essas, é preciso voltar a uma idéia que acompanhou o primeiro momento do rótulo “educação ao longo da vida” no início dos anos de 1970: a teoria do capital humano. Esse conceito “mede” por assim dizer o capital de formação, comparando-o à duração total da escolarização/formação e postula que o alongamento dessa duração tem efeitos positivos sobre a capacidade de aprender ao longo de toda a vida, sobre um ponto de vista crítico (Schüller, 1993; Field, 2000). Uma série de estudos empíricos recentes, conduzidos particularmente na Grã-Bretanha (Tavistock Institute, 1999; Merrill 1999; Schüller; Field, 1999), mostra exatamente o contrário: um simples prolongamento da escolaridade de base sem transformação profunda das condições e da qualidade do processo de aprendizagem conduz, na maior parte das pessoas atingidas, à perda de motivação e a um ajustamento instrumental da aprendizagem, que não favorecem, em nenhum caso, a responsabilização das pessoas pela busca das aprendizagens nas fases ulteriores de suas vidas, ao contrário, tende a desviarem-nas disso (Schüller; Field, 1999).

A nova compreensão da aprendizagem ao longo da vida demanda uma mudança de paradigma na organização da aprendizagem – não apenas na idade adulta, mas desde as primeiras formas da escolaridade. Os fatores que devem orientar a ação educativa não são mais, há muito tempo, o caráter operatório do ensino, a eficácia das estratégias didáticas e o conteúdo dos currículos formais, massa situação e as condições dos aprendentes (Bentley, 1998) e a consideração de seus ambientes de aprendizagem não formal e informal. A questão central da pedagogia não é mais saber como uma determinada matéria pode ser ensinada da maneira mais eficaz possível, porém quais são os ambientes de aprendizagem que são os melhores para estimular a responsabilização dos processos de aprendizagem pelos próprios aprendentes, ou seja, como o aprender pode ser “aprendido” (Simons, 1992; Smith, 1992).

Seguramente essa perspectiva inclui a transmissão de competências de base como a leitura, a escrita, o cálculo ou a utilização autônoma do computador, porém, até mesmo essas basic skills devem estar ligadas a experiências práticas e as habilidades cognitivas adquiridas devem ser relacionadas a competências sociais ou afetivas (Giddens, 1998). A adição de tais escolhas pedagógicas demanda das instituições educativas um alto grau de reflexividade sobre si mesmas. Elas devem aceitar, por sua vez, colocarem-se a si mesmas “em aprendizagem”. A necessidade de preparar seus usuários para responsabilizarem-se pelos processos de aprendizagem que deverão conduzir ao longo da vida pressupõe, efetivamente, a idéia de uma lifewide learning, de uma “aprendizagem abarcando todos os aspectos da vida”.

As escolas devem estar relacionadas com o bairro ao qual elas estão instaladas, com as empresas, as associações, as igrejas, os sindicatos que ali desenvolvem suas atividades, com as famílias dos alunos que elas acolhem. Elas devem imaginar novos lugares onde aprender e inventar outros ambientes de aprendizagem. Novas concepções do desenvolvimento da escola, passando especialmente pela autonomia progressiva dos estabelecimentos, deveriam abrir indubitavelmente novas possibilidades. O que vale para a escola vale, naturalmente, também para as universidades e para o conjunto dos estabelecimentos de ensino. A aprendizagem ao longo da vida requer, seguramente, segundo as palavras de John Field (2000, p. 133), “the new educational order” ou, se preferirmos, uma “revolução silenciosa” da educação.

“Individualização” e “modernização reflexiva”

Essa reivindicação nada tem de absurdo nem de utópico se se considerar a situação de um número crescente de membros da sociedade. As exigências dirigidas aos indivíduos na segunda metade do século XX mudaram. Os fatores econômicos participaram dessa mudança, mas não são exclusivos. Outros fatores como os processos de transformação sociais e culturais tiveram também um papel determinante. Apesar do crescimento das desigualdades sociais, os laços entre os meios sociais e as mentalidades tradicionais se desataram (Beck, 1983; 1986; Vester et al., 1993; Alheit, 1994). Os modelos de conduta individual se inscrevem em um espaço mais restrito e se referem prioritariamente às experiências da mesma geração ou do mesmo sexo, à certa percepção da identidade étnica ou até à preferência por certos estilos de vida (Alheit, 1999). A inflação da oferta informativa e de associações de consumidores tem aumentado espetacularmente as possibilidades de escolha dos atores sociais (Giddens, 1990; Shulze, 1993a). O desenvolvimento das trajetórias de vida é, conseqüentemente, muito menos previsível hoje do que em épocas passadas. E mais do que isso: a pressão para tomar decisões sempre novas, para mudar continuamente de orientação, é interiorizada de maneira mais ou menos clara pelos próprios indivíduos.

Os indivíduos são dependentes em um grau elevado das instituições e dos meios que outros e não eles próprios dispõem; no entanto, como atores, eles são levados a produzir por si mesmos a coerência e a unidade de suas vidas por meio dos recursos próprios de suas ações […]. Eles devem aprender, sob pena da ruptura de sua personalidade ou de um prejuízo social permanente, a relacionar por si mesmos diferentes campos de experiência e de ação […]. Eles também devem saber equilibrar por si mesmos as solicitações e as exigências aparentemente incompatíveis dos espaços sociais, de instituições e domínios da vida múltiplos e contraditórios entre si, ainda que seja apenas para poder viver no cotidiano. Os imperativos da integração social reforçam ainda essa tendência: é aos indivíduos como tais, e não mais aos grupos sociais primários, que cabe a tarefa de relacionar e coordenar suas ações e aquilo que eles pretendem de suas vidas. […] Ou os indivíduos, por si mesmos, criam socialidade ou estão ameaçados de afastamento e isolamento social. (Körber, 1989, p. 139)

A amplitude ainda não mensurável dessa tendência à “individualização” das trajetórias de vida e a obrigatoriedade resultante de uma contínua “reflexividade” do indivíduo sobre suas próprias ações conduziram, para retomar as teses de Ulrich Beck e Anthony Giddens, a uma outra forma de modernidade, à “modernidade reflexiva” (Beck; Giddens; Lasch, 1996). O vínculo com essa outra modernidade (Beck, 1986) requer competências novas, “flexíveis”, que só podem ser construídas e desenvolvidas nos processos de aprendizagem conduzidos ao longo da vida (Field, 2000). Apenas uma transformação profunda do sistema de formação é capaz de responder a tal exigência.

Esboço de uma outra “economia da formação”

Esses diagnósticos sobre nosso tempo, aparentemente aceitos e que, aliás, completam-se uns aos outros, são objeto de um consenso que pode surpreender por abarcar desde os representantes da empresa tradicional aos protagonistas da nova economia e aos especialistas da formação dos partidos da esquerda moderna. O que instiga a problematizar essa identidade de visões é o desconhecimento que esta revela em relação às conseqüências sociais que provocariam uma transformação sem distanciamento crítico das políticas de formação. O rótulo elogioso de Lifelong Learning Society não faz desaparecer, de nenhum modo, os mecanismos de seleção e de exclusão do “antigo” sistema de formação. Ele se contenta em encobri-lo e talvez até o agrave.

Pode-se observar hoje que os segmentos do mercado de trabalho que demandam o mínimo de qualificação diminuem de maneira crônica (OCDE, 1997a). Isso significa que as esperanças da “sociedade do saber” exercem uma pressão mais forte sobre os indivíduos, a quem se pede que apresentem padrões determinados de saber e de qualificação. Para aqueles que não se enquadram nas exigências, as conseqüências são mais graves do que na sociedade industrial convencional. Seguramente, a lógica da exclusão repousa sobre os mesmos mecanismos: a classe social e o sexo permanecem como os indicadores determinantes (Field, 2000). Entretanto, a idade, por sua vez, tem um papel cada vez maior (Tuckett; Sargant, 1999). Quem nunca teve a chance de aprender a aprender não fará mais o esforço para conseguir novas qualificações ao longo do desenrolar de sua vida.

Sob o aspecto da estrita avaliação econômica, o cenário futurista da “sociedade de aprendizagem” invoca, talvez, o ceticismo: um pequeno número de “ganhadores” sobre quem pesa, aliás, o veredicto de uma aprendizagem “sem fim” e, diante deles, uma população crescente de “perdedores”, que jamais teve a chance de aprender ou que se libertaram voluntariamente da obrigação de adquirir os novos saberes e de deverem pagar o preço disso. As previsões da OCDE não estão muito distantes desse cenário:

Para aqueles cuja experiência de educação é positiva e que se consideram a si mesmos como aprendentes competentes, continuar a aprender é uma experiência enriquecedora que aumenta neles o sentimento de domínio sobre suas próprias vidas e sobre a sociedade. Ao contrário, para os que estão excluídos desse processo ou que escolhem não participar dele, a generalização da educação ao longo de toda a vida só pode ter o efeito de aumentar seu isolamento em relação ao mundo do conhecimento. No plano econômico, as conseqüências disso são o subemprego dos recursos humanos e o crescimento dos encargos da assistência; no plano social, a alienação dos indivíduos e a decomposição da infra-estrutura social. (1997b, p. 1)

Conseqüentemente, seria razoável pensar que a aprendizagem ao longo da vida não representa apenas um investimento em um capital econômico e financeiro a curto prazo, mas também um investimento em um “capital social”, aquele que ativamos nas nossas relações e nossas maneiras de ser com nossos próximos – família, vizinhos, colegas, conhecimentos e as pessoas que encontramos nas nossas atividades associativas e de lazer (Field, 2000). Nesse terreno em que ninguém está excluído e onde todos são “especialistas”, somos todos “aprendentes ao longo da vida”. Um encolhimento desse “capital social”, a diminuição da “confiança”, o congelamento das “solidariedades” como Robert D. Putnam (2001) constatou há alguns anos, para os Estados Unidos, são a médio prazo economicamente contraprodutivos. Um equilíbrio entre essas duas formas de capital, quase sempre antagonistas, poderia todavia conduzir, nas sociedades da nova modernidade, a uma forma nova de “economia da formação” ou mais justamente, talvez, a uma ecologia social da aprendizagem (Alheit; Krietz, 2000). A condição para isso seria que se considerasse seriamente o indivíduo aprendente, ou seja, que se procedesse a uma mudança de perspectiva.

Perspectiva 2: Processo biográfico de formação – aspectos de uma fenomenologia da aprendizagem ao longo da vida

As reflexões que seguem têm por objeto os aspectos individuais da aprendizagem ao longo da vida, ou seja, não os atos situados de aprendizagem de indivíduos particulares, mas a aprendizagem como (trans)formação de experiências, de saberes e de estruturas de ação na inscrição histórica e social dos modos-de-vida individuais. Também falaremos de “aprendizagem biográfica” e, mais do que considerar um objeto delimitado de forma empírica – os processos de aprendizagem ligados às formas, aos lugares ou aos tempos determinados –, desenvolveremos, com base em uma concepção fenomenológica da aprendizagem (Schulze, 1993a; 1993b), uma perspectiva teórica, relacionando os processos de formação à historicidade vivida da experiência feita pelos aprendentes.

No nível da experiência biográfica, as distinções analíticas entre aprendizagem formal, não formal e informal não são operatórias. A biografia tem precisamente como propriedade integrar, no processo global de empilhamento da experiência vivida, os domínios das experiências que os recortes institucionais e sociais separam e especializam e os (re)unir em uma figura com sentido particular. Essa capacidade de o sujeito perlaborar a experiência vivida pode ser refletida no conceito de biograficidade (Alheit, 1993; Alheit; Dausien, 2000b), que considera a idéia do caráter “obstinadamente” subjetivo da assimilação das ofertas de aprendizagens que, contudo, a elas agrega a possibilidade de elaboração de novas estruturas de experiência culturais e sociais. É a esse potencial de formação contido na lógica da construção biográfica da experiência e da ação que se reúnem – ao menos no nível das intenções declaradas – as políticas e os conceitos pedagógicos do Lifelong Learning.

Todavia a distinção entre aprendizagem formal, não formal e informal também faz sentido na perspectiva biográfica, com a condição de que ela não seja interpretada como tipologia dos processos de aprendizagem, mas que seja relacionada às estruturas e aos quadros dos contextos de aprendizagem que lhes correspondem. Se os processos de aprendizagem como tais só se encontram representados por uma parte ínfima dos lugares instituídos e nas seqüências formalizadas de aprendizagem, as instituições de formação constituem, porém, espaços possíveis de estruturação dos processos de aprendizagem biográfica (Klade; Seitter, 1996) e elas contribuem para modelar as representações das “biografias” no quadro das quais os sujeitos interpretam suas experiências e produzem seu próprio sentido biográfico. A aprendizagem biográfica está ligada às estruturas sociais e aos contextos culturais de significação. É necessário também, para a análise dos processos de aprendizagem e de formação das biografias individuais, explicitar o quadro estrutural “exterior” das trajetórias de vida. É esse o ponto de partida da tentativa de conceitualização que se segue e que desenvolveremos ao descrever de maneira fenomenológica alguns dos aspectos da aprendizagem ao longo da vida.

A estruturação social das trajetórias de vida por meio das instituições de formação

O “curso da vida”, entendido como instituição ligada à modernidade (Kohli, 1985), oferece um “esqueleto” formal a partir da qual os processos biográficos de formação encontram sua orientação. E isso, em um primeiro momento, independentemente dos traços aparentes que essa orientação assume nos casos concretos (por exemplo, voltada positivamente para a realização de esquemas formais ou, ao contrário, confrontando-se com eles, em ruptura com eles, transformando-os etc.). Existe um “curriculum” social que delimita a vida individual do nascimento até a morte ao estabelecer graus variáveis de leis e sanções, normas e esquemas de espera, objeto de incessantes recomposições e submetido às transformações históricas.

Uma parte dos processos de formação que atravessamos ou que operacionalizamos de forma ativa ao longo de nossa vida está em relação relativamente estreita e imediata com esse “curriculum” e é regulado por objetivos de aprendizagem e certificações de caráter formal. Para designar essa dimensão das aprendizagens, Schulze (1993a) fala de “aprendizagem curricular”. Inversamente, a “aprendizagem biográfica” segue outras regras (precisamente biográficas), porém não pode prescindir completamente desse esqueleto formal. As duas faces da aprendizagem estão em uma relação de tensão entre elas e se condicionam mutuamente (Schulze 1993a; Kade; Seitter, 1996).

Para se compreender os processos biográficos de aprendizagem, também é necessário considerar os modelos de trajetórias de vida em vigor em cada sociedade. Seguramente estes não são sempre dados externos, “visíveis a olho nu”, são modelados de forma determinante por meio de procedimentos de institucionalização da formação. Kohli (1985) descreveu a divisão tradicional do percurso de vida nas sociedades ocidentais modernas segundo três fases: preparação, atividade e repouso. Esse modelo define, mediante a divisão tradicional dos sistemas de ensino (primário, secundário, profissional) e da localização temporal dos processos de socialização e de qualificação na infância e juventude, tempos e espaços de aprendizagem formalizados que devem ser obrigatoriamente transversais a todos os membros da sociedade. O papel da formação no percurso de vida não se limita, no entanto, à “fase preparatória”, ele estrutura, sob a forma de um encadeamento de escolhas efetuadas e de direcionamentos, o desenrolar completo do currículo biográfico. Isso também vale para a norma biográfica estabelecida por Kohli para as sociedades modernas: por meio do sistema de formação geral da escola e dos níveis e perfis de qualificação que ele determina, são fixadas as chances de partida e são estabelecidos os pontos de desvio que orientarão o curso da vida vindoura e definirão o posicionamento social dos indivíduos. As formações posteriores terão pouca influência sobre as determinações iniciais (Rabe-Kleberg, 1993b). Ao mesmo tempo, a escola é um lugar central de aproximação metódica aos processos formais de aprendizagem. Aquilo que se aprende na escola, ao mesmo tempo que os conteúdos de saberes, são também formas de aprender. Os níveis de escolaridade seguidos e as experiências escolares estruturam em larga medida as passagens de estatuto posteriores, o acesso à formação profissional e/ou a passagem para a vida ativa e modelam o âmbito da biografia profissional toda. A formação contínua ou os dispositivos de reconversão podem, evidentemente, abrir novas possibilidades: elas permanecem, contudo, sempre dependentes do nível inicial e dos modelos preestabelecidos de percurso e de carreira que diferem consideravelmente, não apenas de um ponto de vista especificamente profissional, mas também segundo critérios do posicionamento social (classe social, sexo, origem étnica, nacionalidade): os ofícios considerados como tipicamente femininos oferecem exemplos significativos dessa disparidade social (Rabe-Kleberg, 1993a; Born, 2000). Por fim, a última grande fase, a idade da aposentadoria, em suas condições estruturais – capital econômico, capital social e também recursos em termos de saúde, de capacidade corporal e disposição de tempo –, é também determinada pela última atividade profissional exercida e se encontra, ao menos indiretamente, dependente da história de formação da pessoa.

Com a transformação da atividade profissional, essa tripartição do percurso de vida, com certeza, deixa de ser pertinente. Entretanto os novos esquemas de percurso de vida, marcados ao mesmo tempo pela tendência à individualização e pela pluralidade dos modelos de referência, não sofrem menos com a dominação crescente das instituições de formação. Estas, por sua vez, devem encontrar sua posição em relação às novas “biografias de aprendizagem ao longo da vida” (Nuissi, 1997). Aliás, as formas de estruturação mudaram: os processos de formação não se sucedem mais de forma absolutamente linear no sentido de uma qualificação ou de um posicionamento social progressivos (o que remete à noção de “carreira”), mas apresentam formas de retomada por ciclos ou por “recomposição de uma trama” no sentido de uma “configuração setorial da existência” (Kade; Seitter, 1996, p. 143).

Independentemente desse primeiro ensaio de diferenciação dos modos de estruturação biográfica da formação, podemos constatar que a formação como instituição social, ou seja, como sistema de instituições interconectadas, modela os tipos estruturais de percurso de vida e condiciona os projetos de vida e as experiências dos sujeitos. A comparação histórica e social permite reconhecer que essa modelação afeta os critérios de diferenciação social – a classe social, o sexo, a origem étnica – e que, estruturalmente, os percursos de vida distribuem de maneira desigual as oportunidades dadas a cada um, padronizadas segundo a posição social. Do ponto de vista das existências individuais, eles representam “modelos para uma vida possível”.

A (des)ordem temporal da formação e da aprendizagem no percurso de vida

Além do posicionamento no espaço social, a “formação” produz antes de tudo uma ordem de temporalidade dos processos de aprendizagem sobre o eixo das biografias individuais. A situação que conhecemos hoje é a de um conjunto heteróclito no qual estão lado a lado, em parte, o que subsiste das normas do modelo tripartite de formação e de atividade profissional, que evocávamos acima, ao que é preciso integrar o esquema contraditório das “biografias femininas” (Dausien, 1996) e, em parte, os novos modelos marcados pela flexibilidade da aprendizagem ao longo da vida. Particularmente, desde a reforma da formação dos anos de 1960, novas vias de qualificação foram abertas por políticas de formação estabelecidas que permitiram estender os processos de formação à idade adulta. Essas “segunda e terceira via de formação” foram apropriadas por muitos indivíduos adultos (particularmente as mulheres) e não apenas conduziram a uma maior mobilidade da formação (Schlüter, 1993; 1999), mas também criaram novos esquemas de percurso de vida, nos quais o “trabalho”, a “família” e a “formação” podem se alternar e se combinar de múltiplas formas. Sem que possamos chegar ao detalhe desses modelos estabelecidos empiricamente, devem ser distinguidos três aspectos relativos à ordem de temporalidade da formação nos percursos de vida, que são típicos das experiências biográficas no contexto de um modo cada vez mais individualizado de conduta da vida:

a) Retomadas e “vieses” de formação: trata-se de uma “segunda (terceira, quarta…) chance” pelo viés de diferentes vias possíveis no interior do sistema de formação e de profissionalização, de recuperar as ocasiões perdidas, ou seja, de corrigir as orientações anteriores. As possibilidades de recuperação são, além do mais, limitadas, dada a impossibilidade de retomar o tempo da vida e de retornar às encruzilhadas de orientação e aos umbrais de progressão nos episódios passados de formação. Os ofícios caracterizados como tipicamente femininos (Rabe-Kleberg, 1993a), freqüentemente descritos como “impasses” profissionais, são um bom exemplo. A realização pessoal que tais “vieses de formação” trazem consigo, em geral, choca-se com as estruturas sociais que, apesar da extensão recente desses modos “flexíveis” de formação, sancionam até aqui de forma ainda majoritariamente negativa as distâncias em relação ao modelo de carreira (masculino) fundado na continuidade profissional (Rabe-Kleberg, 1993b). Na Alemanha, nem o sistema de formação nem o sistema profissional estão prontos a reconhecer e a integrar, em processos individualizados (biográficos) de formação, as qualificações e as competências adquiridas “por contrabando” das instituições, particularmente quando estas forem em ambientes de aprendizagem não formais ou – nos casos de biografias de imigração – em outros contextos sociais e nacionais (ver a tradição inglesa do Assessment of Prior Experiential Learning; Alheit; Piening, 1999). Os problemas de ajustamento daí decorrentes devem ficar ao encargo dos próprios indivíduos e podem conduzir de maneira imprevisível a conflitos, rupturas e recusas em relação aos programas instituídos de formação. As margens de liberdade conquistadas com a abertura do sistema de formação escondem, desse modo, novos riscos biográficos (Kade, 1997).

b) Formação contínua e qualificação permanente: constatou-se ao longo dos últimos anos um crescimento evidente da necessidade sentida e/ou do interesse pessoal pela busca da qualificação pessoal (Field, 2000). Os motivos dados são, em geral, a aceleração da mudança tecnológica e a rápida desvalorização que, recentemente, afeta os saberes profissionais. A formação e a qualificação não estão mais confinadas à fase de “preparação” da vida ativa e tornam-se um fator permanente de acompanhamento do percurso profissional. Duas outras transformações sociais contribuem para a crescente importância que se confere à extensão da formação à duração da vida ativa: por um lado, as mutações sociais que chegam no período da “terceira idade” e a mudança de significação biográfica a ela vinculada (Kade, 1994a; 1994b; Mader, 1995), que fazem da “idade pós-profissional” uma fase específica da formação (Kade 1994a); por outro lado, o interesse reforçado que as mulheres manifestam pela formação contínua na vida profissional. Como Shiersmann (1987, 1993) mostrou, o campo da formação constitui um dos aspectos da estruturação sexuada da sociedade. As desvantagens e os obstáculos que as mulheres encontram no sistema de formação profissional contínua prolongam o sexismo dos procedimentos de seleção e de hierarquização da formação inicial. A perspectiva crítica abre aqui novos pontos de vista. Para as mulheres, a formação contínua não é de forma alguma o instrumento “neutro” de um plano de carreira, mas se inscreve em um projeto de vida que associa estreitamente a vida profissional às possibilidades e às perspectivas da vida familiar. Essas experiências de reconstituição biográfica dos diferentes campos da vida constituem cada vez mais, até para os homens, uma característica geral da formação contínua.

c) Processos de formação na “temporalidade própria” da vida: além de seus aspectos funcional e estratégico, as retomadas do ciclo de estudos formais e a perenização da qualificação profissional têm, ambas, uma significação pessoal nas biografias individuais. Não se trata apenas – raramente é a primeira razão invocada – do valor exploratório (freqüentemente ignorado) das qualificações visadas no mercado de trabalho, mas de uma compensação dos déficits de formação experimentados ao longo da vida ou, se se preferir, de uma compensação das aspirações de formação não satisfeitas. O fundamento biográfico de tais motivações de formação conduz a conceber a organização do tempo da existência como uma seqüência de decisões, de transições, de episódios de aprendizagem. A temporalidade própria dos processos de formação pode harmonizar-se às estruturas institucionais por fases e delas se aproveitar, porém, pode tomá-las pelo reverso e até pelo seu contrário. A temporalidade biográfica obedece a uma lógica individual que religa passado, presente e futuro, freqüentemente passando por cima das periodizações institucionais e dos compartimentos sociais entre os campos da vida. Ao contexto da significação das biografias individuais, sucede uma necessidade de formação e de desenvolvimento da personalidade estruturada no tempo que ordena, de forma reflexiva ou como estrutura biográfica implícita aos processos de formação. Daí decorre, sem cessar, novas fases ou novas situações nas quais se solicita essa necessidade de reflexividade, de reconstrução, de sincronização, de projeto da “vida pessoal” e que são tantas ocasiões possíveis de confrontação com programações estabelecidas de formação. Como estudos empíricos conduzidos segundo os métodos da pesquisa biográfica mostraram, os adultos utilizam, muitas vezes, as ofertas de formação contínua, não apenas de modo instrumental para seguir as vias de aprendizagem preestabelecidas, mas também para se propiciar espaços temporais nos quais poderão desenvolver seus próprios processos de aprendizagem e sua capacidade de reflexão sobre si mesmos (por exemplo nos cursos das Volkshochschulen [universidades populares] Alheit; Dausien, 1996; ou no ensino a distância, Kade; Seitter, 1996).

A formação como processo biográfico

Considerar a estrutura temporal dos processos de aprendizagem nas biografias individuais remete à questão fundamental da forma pela qual a formação pode ser compreendida como processo relativamente autônomo diante das trajetórias da vida e dos currículos. A formação não é redutível às suas únicas formas organizadas e institucionalizadas. Ela engloba todo o complexo de experiências vividas cotidianamente, de episódios de transição e de crise. Na dimensão vivida, a aprendizagem está, assim, sempre ligada ao contexto de uma biografia concreta. Por outro lado, é também a condição ou o instrumento de mediação no qual as construções biográficas, como formas reflexivas da experiência, podem se desenvolver e se transformar. Sem biografia, não há aprendizagem; sem aprendizagem, não há biografia:

a) Aprendizagem implícita, reflexão e saber pré-reflexivo: muitos dos processo de aprendizagem se desenvolvem de forma “implícita” e toma a forma de esquemas de experiência e de ação, sem que eles sejam a cada vez refletidos de forma explícita. Conceitos como aprendizagem implícitaaprendizagem esporádica salientam esse aspecto, mas não informam nada sobre a complexidade desse fenômeno na dialética do ajustamento ao mundo e da formação de si. Mediante os processos de aprendizagem implícita que se desenvolvem desde o início da vida tanto no interior como no exterior das instituições, não são apenas os elementos singulares da experiência que são assimilados como componentes do mundo social, é também o próprio “sistema de assimilação” que se desenvolve. Trata-se aqui da formação de estruturas superordenadas e geradoras da ação e do saber que, segundo as opções teóricas, podem ser interpretadas como estruturas de aquisição e de desenvolvimento das “disposições de aprendizagem” (Field, 2000), estruturas cognitivas no sentido de Piaget, “sistema emocional de orientação” (Mader, 1997), formação de habitus (Bourdieu, 1987) ou construção do sistema de referências de si e do mundo (Marotzki, 1990). O conjunto desses processos, segundo os quais se constrói a experiência, forma a “reserva de saberes biográficos” de uma pessoa (Alheit, 1993; Alheit; Hoernig, 1989) que, como uma paisagem, se constitui por diferentes camadas e regiões dispostas em patamares próximos ou distantes e que se transforma de tempos em tempos (precisamente por meio da aprendizagem). Nos nossos comportamentos cotidianos (e também nas situações explícitas de aprendizagem [Dewe, 1999]), quando nos concentramos de forma explícita sobre um “problema” – que representa apenas uma ínfima parte de nosso saber, de nossa experiência, de nossa ação –, nós recuperamos, ao mesmo tempo, uma grande parte de nosso saber (e de nosso não-saber) de maneira espontânea e não deliberada. Nós nos deslocamos de algum modo na paisagem de nosso saber biográfico, sem pensar de maneira consciente em cada um dos passos que fazemos em cada curva ou em cada indicação do caminho. Muitas vezes só invocamos elementos de nosso “plano de fundo” do saber biográfico quando damos um passo em falso, ao chegarmos a uma encruzilhada ou ao sentirmos que o chão se abre sob nossos pés. Temos, em princípio, a possibilidade de disponibilizarmos uma grande parte desse saber pré-reflexivo, de trabalhar de maneira explícita e, eventualmente, de transformar as estruturas da paisagem inteira. Tais processos reflexivos podem ser interpretados como momentos da formação de si (Alheit, 1993).

b) Dimensão da socialidade da aprendizagem biográfica: os processos reflexivos de aprendizagem não se desenvolvem, no entanto, apenas internamente ao indivíduo, mas dependem da comunicação e da interação com os outros, ou seja, da relação com um contexto social. A aprendizagem biográfica está ligada aos mundos-da-vida, os quais sob certas condições podem ser igualmente analisados como “ambientes” ou “meios” de aprendizagem. As noções de aprendizagem experiencialaprendizagem no mundo-da-vida ou aprendizagem contextual dão conta desse aspecto do Lifelong Learning, conforme neles se vinculam a atenção conferida à associação e à configuração dos ambientes de aprendizagem (Dohmen, 1998). Pode-se, aliás, observar aqui duas tendências que devem ser avaliadas de maneira crítica a partir da análise biográfica dos processos de formação: por um lado uma interpretação “antiinstitucional” da aprendizagem ao longo da vida (Gieseke, 1997; Nuissi, 1997) que não considera que a biografia (e, portanto, a aprendizagem biográfica) e as instituições estejam ligadas entre si (ver, por exemplo, o estudo de Seitter, 1999) e, por outro lado, uma concepção tecnológica segundo a qual se poderia “fabricar”, com quaisquer peças, ambientes de aprendizagem, que esquece que os “universos de aprendizagem” estão inscritos nos mundos-da-vida que se desenvolveram historicamente e que são o resultado de uma “produção” biográfica interativa: esses universos de aprendizagem são associados a espaços sociais determinados, eles revelam processos que podem ser acompanhados pedagogicamente, eles não podem ser fabricados ou comandados artificialmente.

c) Individualidade e significação pessoal da aprendizagem biográfica: se a aprendizagem biográfica está estruturada nas interações sociais, ela obedece, entretanto, a uma “lógica individual” que é o produto de uma estrutura biográfica particular da experiência adquirida. A estrutura biográfica não determina diretamente o processo de aprendizagem, pois é uma estrutura aberta que deve integrar novas experiências em relação com o mundo, os outros e si mesmo. Contudo, ela contribui essencialmente para fixar as modalidades segundo as quais se formam as novas experiências e que “se incorporam” nos processos de aprendizagem biográfica (Alheit; Dausien, 2000a). Os conceitos atuais de aprendizagem auto-organizada, autodefinida, autodirigida ou autodiretiva (Straka, 1997; Dohmen, 1998; Action concertée de formation continue, 1998) devem aqui ser objeto de um exame crítico (Report 39, 1997; Hoffmann; von Rein, 1998). Eles supõem, muitas vezes, um aprendente autônomo, que tem a maestria reflexiva e estratégica de seu próprio processo de formação. Esse modelo de aprendente não considera a estratificação complexa da reflexividade biográfica. Os processos de formação biográfica têm seu próprio princípio de determinação, eles possibilitam experiências inesperadas e transformações surpreendentes que, muitas vezes, não foram previstas pelo próprio aprendente e só podem ser “compreendidas” posteriormente, mas que têm, entretanto, sua “direção” própria. Aqui os termos de “movimento de pesquisa” e de “orientação difusa para um objetivo” são mais apropriados do que o modelo cibernético de um “piloto automático” que se refere mais uma vez a condições institucionalizadas (por exemplo, de aquisição de saber). De um ponto de vista teórico, é no quadro conceitual da formação (Bildung), mais do que no de aprendizagem, que poderá se desenvolver uma compreensão biográfica da “autodeterminação”. No nível das práticas de formação (inclusive das institucionais), para favorecer a elaboração biográfica dos processos de aprendizagem, é tão importante gerenciar os espaços de reflexão e de comunicação e mensurar os “possíveis” quanto desenvolver “instrumentos de pilotagem individuais”.

A formação como aprendizagem dos vínculos sociais

Abordagem que esboçamos de uma teoria biográfica da formação nos permite retomar alguns pontos discutidos na Perspectiva I. Os processos de aprendizagem biográficos não devem ser compreendidos somente como operações de assimilação e de construção próprias para assegurar a organização reflexiva individual da experiência, do saber e do saber-fazer. Eles também comportam o aspecto da constituição biográfica de redes e processos sociais, de saberes coletivos e de práticas coletivas: de um ponto de vista teórico, falar-se-ia, então, de “institucionalização” no sentido de Berger e Luckmann (1969), de constituição de um “capital social” ou de elaboração de práticas culturais (por exemplo, as que estão em jogo nos centros culturais e sociais, nas associações, nas iniciativas de bairro [Seitter, 1999; Field, 2000; Alheit; Dausien, 2000b]). Tanto quanto os processos individuais, o estabelecimento desses processos coletivos de formação só pode ser parcialmente explicitado e planejado. A partir das práticas biográficas dos indivíduos – que por definição escapam à ordenação –, nascem e se desenvolvem novos modelos e novas configurações de experiências que se abrem sobre caminhos “possíveis” de formação, sobre biografias possíveis de homens e de mulheres, sobre as formas “possíveis” de vínculo entre sexos e a interação entre culturas e gerações.

Do ponto de vista teórico, para dar conta dessa articulação do individual e do social, recorreremos uma vez mais ao princípio da biograficidade das experiências sociais. Se considerarmos a aprendizagem biográfica como a capacidade “autopoiética” de o sujeito organizar reflexivamente suas experiências e, assim fazendo – dar-se a si mesmo uma coerência pessoal e uma identidade, atribuir um sentido à história de sua vida, desenvolver capacidades de comunicação, de relação com o contexto social, de conduta da ação (Alheit, 1993; Alheit; Sausie 2000a) –, torna-se possível pensar a formação tanto como trabalho individual de gestão de identidade, quanto como constituição dos processos coletivos e dos vínculos sociais.

A perspectiva analítica aberta pela exploração da noção de aprendizagem biográfica ressalta claramente a pluralidade e a diversidade dos níveis que se encontram nos processos individuais de formação, assim como as contradições eventuais que resultam disso e que devem ser trabalhadas e superadas de forma pragmática pelos sujeitos: de um lado, o conteúdo programático da “aprendizagem ao longo da vida” faz emergir novos esquemas de espera e de significação que podem ser vividos subjetivamente tanto como uma sobrecarga de pressões sociais, quanto como uma nova abertura biográfica; por outro lado, os processos de aprendizagem biográficos e os projetos de vida associados a eles são dependentes de estruturas institucionais e de contextos-de-vida, que podem favorecer ou impedir processos de formação individuais ou coletivos “autodefinidos”. Enfim, do ponto de vista dos sujeitos, “aspiração” e “realidade” não estão mais em contradição: biograficamente, os dois níveis são igualmente “reais” e devem ser trabalhados individualmente e, ao longo de um processo de construção e de reconstrução biográfica estendido ao longo de toda a vida, ser integrados de forma sempre renovada na história de formação do sujeito. Para ter acesso a uma compreensão teórica mais precisa desses processos, para analisá-los empiricamente de maneira mais diferenciada e conceber, sobre essa base, abordagens em termos de práticas de formação, é necessário realizar outras pesquisas empíricas. A complexidade do problema exige, seguramente, um quadro conceitual de base – a teoria biográfica que esboçamos constitui uma aproximação – que seja nos moldes para responder na teoria e na prática ao conteúdo programático antinômico da aprendizagem ao longo da vida.

Orientações da pesquisa no contexto da aprendizagem ao longo da vida

A análise do fenômeno complexo que constitui “a aprendizagem ao longo da vida” conduz as ciências da educação a fazer a hipótese de uma mudança de paradigma, que pode ser expressa em muitos níveis:

  • Nonível macroestrutural da sociedade, em relação com uma nova política de formação que visa fundamentar um outro equilíbrio entre as formas do capital econômico, cultura e social (Alheit; Kreitz, 2000);
  • Nonível médio estrutural das instituições, na consideração de uma nova “reflexividade” das organizações que devem ser concebidas como “ambientes” e “agências” de recursos complexos de aprendizagem e de saber tanto quanto “administradores” e “mediadores” do saber dominante codificado (Field, 2000);
  • No nívelmicroestrutural dos indivíduos, considerando as operações de estabelecimento de elos e de perlaboração, cada vez mais complexas, efetuadas por atores concretos para responder às exigências sociais e midiáticas da pós-modernidade que requerem novas construções de sentido individuais e coletivas (Alheit, 1999).

De fato, sabemos ainda muito pouco sobre os equilíbrios sistêmicos entre o capital econômico e o capital social. Temos apenas um conhecimento limitado do “capital cerebral” que constitui o novo saber (Field, 2000) e de seus efeitos sobre os processos de aprendizagem em longo prazo. A comparação entre os diferentes tipos de sociedades pós-industriais – por exemplo, as diferenças significativas entre as políticas seguidas na Dinamarca ou na Grã Bretanha e as da Alemanha – para conduzir a uma “sociedade de aprendizagem”, permitem contudo desenvolver, no nível internacional, perspectivas comparativas sistemáticas sobre as economias de formação.

Além disso, nossa informação sobre as condições institucionais da mudança do paradigma anunciado é aproximativa:

A quais forças de transformação as instituições de formação estão submetidas? Como elas reagem, quais perspectivas de solução lhes trazem? Qual é a amplitude das transformações (elas implicam, por exemplo, em reorganização parcial ou em redefinição completa do contrato de formação)? Como garantir, ao mesmo tempo, o espaço da liberdade de ação, a capacidade de inovação e a estabilidade das instituições? A quais concepções e a quais disposições recorrer para estabelecer e manter a qualidade da formação, o desenvolvimento das instituições e do pessoal? A partir de quais condições teóricas e empíricas justifica-se falar das instituições de formação como organizações abertas, elas mesmas, à aprendizagem? Qual quadro e quais estruturas favorecem seu desenvolvimento? (Memorando de pesquisa para a formação de adultos e a formação contínua, 2000, p. 13)

No percurso de vida da modernidade, descobrimos sem cessar novas “passagens de estatuto” e novas “fases de transição”, marcadas por uma maior complexidade e por mais riscos para os sujeitos (Heinz, 2000b). Observamos nas biografias individuais a utilização de espantosas capacidades criativas de (re)construção (Alheit, 1994; Dausien, 1996; Kade; Seittler, 1996). No entanto, falta-nos ainda uma teoria elaborada e sistemática da aprendizagem biográfica:

Em quais culturas de aprendizagem e em quais configurações de modelos supra-individuais, de mentalidades e de meios se desenvolve a aprendizagem individual? Quais potenciais implícitos e quais tipos de aprendizagem se revelam nos meios sociais e nos grupos (por exemplo, no quadro da família e entre as gerações)? […] Quais relações de interdependência pode-se constatar, por exemplo, entre, de um lado, as problemáticas e as soluções no nível coletivo e político e, de outro, a aprendizagem de indivíduos que a experimentam nos grupos, nas organizações, nas instituições? (Memorando de pesquisa para a formação dos adultos e a formação contínua, 2000, p. 5)

É a esse questionamento aberto que convida o “novo” conceito de Lifelong Learning. Seria extremamente desejável que se buscassem as respostas não apenas no discurso científico, mas também nas práticas de formação e no diálogo internacional.

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Traduzido por Teresa Van Acker, a partir da versão francesa de Christine Delory-Momberger «Processus de formation et apprentissages tout au long de la vie», publicada em Orientation Scolaire et Professionnelle, 2005, n.1.1

A duração da vida (

Lebenspanne) está certa e biologicamente

fundada (por meio de sua relação principal) com a ‘hora biológica’, porém não está

determinada na sua forma social concreta e no individualmente vivido. Nesse sentido, ela é um fenômeno social que, em contextos históricos e culturais específicos, toma a “forma de biografia” (Nassehi, 1994).2

(Nota de tradução de Delory-Momberger para a tradução francesa) A

Biographieforschung ou

pesquisa biográfica é um setor das ciências sociais – não identificado como tal na França, porém na Alemanha é bem representado, assim como nos países anglo-saxônicos

(Biography research) – cujo objeto é estudar as relações entre os fatos sociais e as construções individuais, mostrando, especialmente, como as construções biográficas individuais

perlaboram os dados históricos e socioestruturais das experiências e da ação.

* Traduzido por Teresa Van Acker, a partir da versão francesa de Christine Delory-Momberger «Processus de formation et apprentissages tout au long de la vie», publicada em Orientation Scolaire et Professionnelle, 2005, n.1. 1 A duração da vida ( Lebenspanne) está certa e biologicamente fundada (por meio de sua relação principal) com a ‘hora biológica’, porém não está determinada na sua forma social concreta e no individualmente vivido. Nesse sentido, ela é um fenômeno social que, em contextos históricos e culturais específicos, toma a “forma de biografia” (Nassehi, 1994). 2 (Nota de tradução de Delory-Momberger para a tradução francesa) A Biographieforschung ou pesquisa biográfica é um setor das ciências sociais – não identificado como tal na França, porém na Alemanha é bem representado, assim como nos países anglo-saxônicos (Biography research) – cujo objeto é estudar as relações entre os fatos sociais e as construções individuais, mostrando, especialmente, como as construções biográficas individuais perlaboram os dados históricos e socioestruturais das experiências e da ação.

O foco está nas festas. Nas festas como fato e como questão […]. E que, por isso mesmo, se constituem em verdadeira perspectiva a partir da qual se penetra – com o perdão pela linguagem objetificadora – nas religiões, nas construções da infância e da juventude, na organização dos tempos, nas artes, na política, nas histórias, nas morais, no turismo, no trabalho, na loucura, na violência, na organização retórica. Tudo isso ganha nova luz.Sobrepondo mais uma vez festa e violência, mas agora em planos distintos, Regina Coeli Machado e Silva desenvolve uma análise do conto Feliz ano novo, de Rubem Fonseca (p. 289). Atentando para os planos de vida e morte e a dimensão das possibilidades de violência nos centros urbanos, a narrativa do conto joga com “o medo, a impureza, a repugnância”. Quando um grupo de ladrões, sujeitos marginalizados da sociedade, invade a festa de ano novo de um grupo que desfrutava a “vida da festa”, e dá início a atos de violência, morte, violação dos corpos e sexualidades, instala-se o confronto dessas realidades que convivem nas metrópoles. Entretanto, a autora indica que por um momento o conto “subverte essa contradição, unindo dessemelhantes pelo excesso, formando uma unidade tensa em torno do valor precário da vida”.O foco está nas festas. Nas festas como fato e como questão […]. E que, por isso mesmo, se constituem em verdadeira perspectiva a partir da qual se penetra – com o perdão pela linguagem objetificadora – nas religiões, nas construções da infância e da juventude, na organização dos tempos, nas artes, na política, nas histórias, nas morais, no turismo, no trabalho, na loucura, na violência, na organização retórica. Tudo isso ganha nova luz.

A referência a esses artigos, nesta coletânea que abrange significativos estudos sobre festas produzidos na antropologia brasileira, indica a existência de uma pluralidade de olhares, enfoques, metodologias e arcabouço teórico sendo pensado e utilizado na área, ao mesmo tempo em que provoca e indica a possibilidade de espaços para pesquisa e aprofundamento das discussões no campo antropológico. Seja a partir de pontos intrínsecos à realização das festas, como mobilização dos agentes, a performance, violência, identidade, subversão e ordem – apontados nos textos –, seja a partir de um olhar voltado para o fenômeno festivo complexo, a partir dessa leitura fica patente a relevância dessa produção para a compreensão de dinâmicas sociais que extrapolam o “multiverso festivo” (p. 14).1

Caillois e Bataille a partir do legado de Durkheim e Mauss.

Nas primeiras publicações da revista, a morte e o morrer não eram assuntos recorrentes e só passaram a integrar tal cenário após o final da Segunda Guerra Mundial. A visão social desse processo foi sendo modificada podendo ser considerado que existe um “recalcamento” da morte, à medida que a vida ficou mais longa e a morte tornou-se adiada.

De acordo com as publicações desta época, a enfermeira não pode se emocionar e deve desenvolver habilidades de comunicação para confortar familiares e pacientes, saber administrar analgesia, promover o conforto do moribundo e satisfazer a sede espiritual dos pacientes. Os textos têm um tom dogmático, de conotação religiosa e autoritária que manifestam a moral e a obediência, através de expressões como: “deve”, “tornar-se apta”, “dever”, “fazer”, “conhecer” que não deixam dúvidas quanto ao que deve ser feito e pretendem instaurar um modelo de enfermeira. A revista também demonstra uma preocupação com o corpo e seus cuidados, especialmente, após a morte, pois esses devem ser realizados com paciência e amor. É apontada a necessidade de entregá-lo para a família com aparência de conforto, indicando a higiene e o tamponamento dos orifícios como cuidados de enfermagem imprescindíveis. Além disso, as técnicas de preparo do corpo são apresentadas para que as enfermeiras incorporem um jeito de fazer enfermagem e cuidar dos corpos, sejam eles vivos ou mortos.

Nessa categoria discursiva as autoras utilizam formas verbais no imperativo com o intuito de incitar as enfermeiras a desenvolver as ações desejadas, pois esses verbos manifestam ordem e apelo a concretização da ação, o que nos possibilita observar o governamento dos corpos. Além disso, ao longo dos textos, é possível observar a influência dos preceitos de Florence Nightingale, nas referências à insalubridade do ambiente onde o moribundo se encontra, que deve ser combatida através da incidência da luz solar, boa ventilação, iluminação, limpeza e silêncio, pois como refere Foucault a medicina urbana se organizou, primeiramente, não em torno dos homens, mas das coisas(8). Os métodos de Florence, utilizavam como base a moral e o disciplinamento dos corpos das enfermeiras e objetivavam introduzir a ordem no hospital para transformá-lo num local de cura, acúmulo e transmissão de saber.

Travando uma Luta Contra a Morte (1980-1989)

Nesse período, os discursos originam-se, principalmente, das profissionais que trabalham nos Centros de Terapia Intensiva, pois com as novas tecnologias que invadem os hospitais a morte torna-se parte da rotina das enfermeiras que ali atuam entrando na ordem do seu discurso. Assim, acreditamos que “[…] as coisas podem ser ditas, mas não são ouvidas, não são escutadas quando ditas fora de uma ordem. Ou tu te colocas na ordem, ou tu não és escutada”(7). Tais efeitos podem ser observados no que Foucault chamou de ritual, que é a imposição de regras aos indivíduos que pretendem pronunciar determinados discursos, pois eles necessitam ser qualificados para fazê-lo(9). Assim, as enfermeiras, que atuam nesse contexto, têm a aprovação dessa “sociedade de discurso” para veicular, nas páginas das revistas, seus enunciados, já que são detentoras desse saber. Foucault entende como uma “sociedade de discurso” um grupo de indivíduos, limitado, dentre os quais, circula um determinado tipo de discursividade(9).

Os artigos apresentam a morte como algo natural, mas sugerem que o controle do homem sobre a natureza tem sido maior, o que possibilitaria o prolongamento da vida através de determinados comportamentos. Aqui podemos evidenciar a sugestão de que ao assumirmos determinadas práticas e nos disciplinarmos asseguraríamos uma vida mais longa. Assim, a morte, que antes era associada ao processo de viver, agora está associada à possibilidade de adoecer. No que se refere à equipe de saúde, a terminalidade do ser é considerada natural, porém relacionada a sentimentos de medo, impotência, tristeza, depressão, culpa, fracasso e falha. Além disso, ela aparece como algo negado, rejeitado e silenciado. Algumas publicações apontam que os sentimentos da equipe de enfermagem em relação ao cuidado de pessoas que estão morrendo, se refletiria na qualidade assistencial. Nos artigos, observamos referências a preocupação das enfermeiras com o cuidado do corpo e os equipamentos como forma de ocultar a morte, já que o trabalho com pacientes que estão morrendo é tido como desestabilizador emocional da equipe. A identificação com esses pacientes e seus familiares, as dificuldades de conversar sobre o diagnóstico e o prognóstico da doença, a insuficiência de treinamento e a falta de respaldo psicológico são, também, apontadas como fatores que prejudicam o processo assistencial. As revistas referem como atribuições da enfermeira: a observação constante, o atendimento imediato, a individualização e humanização da assistência, a boa comunicação verbal, a assistência farmacológica e fisiológica e o conforto à família e ao moribundo. Aqui podemos constatar mais uma espécie de disciplinamento que o hospital pretende produzir nos corpos dos profissionais que ali atuam, em especial, da enfermeira, pois essa profissional deve estar apta a desenvolver certas práticas que permitam uma normalização de suas atividades. Para isso, ela deve obedecer a um regime disciplinar que permita um controle das suas operações e assegure uma sujeição que a torne governável.

A morte em cena: multiplicidade de facetas (1990-1999)

Nesse período, a morte antes negada, ocultada e silenciada passa a ser objeto de estudo das enfermeiras e entra em cena assumindo um dos focos da atenção profissional.

Os profissionais de saúde continuam sendo questionados sobre suas percepções acerca do término da vida. Aqui são ressaltados os diferentes mecanismos de defesa, como a negação e a racionalização, utilizadas pela equipe de saúde para lidar com os pacientes em fase terminal. Nos artigos publicados o preparo do corpo também é objeto de preocupação, pois os profissionais sentem-se desconfortáveis ao realizar tal prática. A sugestão de um espaço terapêutico para a equipe de enfermagem emerge como necessidade, já que nesse local poderiam ser trabalhados sentimentos frente a perda o que aumentaria a satisfação no trabalho e a qualidade da assistência. A temática da morte emerge, ainda, relacionada à educação sugerindo a necessidade de incluí-la nos currículos de enfermagem para que não continue silenciada. Assim, os alunos de graduação manifestam a vontade de discutir questões relativas ao assunto para que o currículo, que é voltado para a cura e para a preservação da vida, os prepare para enfrentar, também, a morte. As enfermeiras apontam que esse conteúdo deveria ser incluído nos programas de educação em serviço o que melhoraria a qualidade da assistência e diminuiria a ansiedade, o medo e a dor da equipe de saúde.

Com o aumento da violência, as enfermeiras passam a preocupar-se com as mortes relacionadas às causas externas, já que tais acontecimentos seriam preveníveis e estão se tornando um problema de saúde pública. Assim, os conhecimentos epidemiológicos são incorporados a esse saber como forma de estabelecer uma relação entre mortalidade e violência. A terminalidade da vida aparece como um desafio que ameaça os indivíduos devido a falta de explicações científicas dos acontecimentos que a sucedem.

Nessa década, as enfermeiras discutem a transferência da morte do ambiente domiciliar, onde era um fenômeno coletivo, junto a amigos e parentes, para o contexto hospitalar, onde se torna solitária, acompanhada por estranhos, tornando-se um evento dramatizado. Entram em pauta as questões relacionadas a “morte social”, que é o isolamento do moribundo do convívio coletivo antes do acontecimento de sua morte biológica. Quanto ao ambiente hospitalar, algumas publicações defendem a flexibilização das normas disciplinares das instituições permitindo ao moribundo que permaneça com seus familiares até seus últimos dias.

Nos artigos das revistas, a figura do médico aparece, como alguém que lida com a morte de forma impessoal, fria e objetiva por meio de sentimentos ilusórios de soberania no controle das situações de vida-morte, já que esse profissional seria o detentor do poder de prolongar a vida. A figura da enfermeira emerge como a profissional que presta cuidados com fortes sentimentos e que deve os conter perante o paciente. É citado, também, que essas profissionais para se afastarem da morte valorizam procedimentos técnicos em detrimento da relação interpessoal. Entendemos que essas características atribuídas ao médico e a enfermeira carregam nos seus discursos questões de gênero. O médico, representado pelo sexo masculino, emerge como um ser sem fragilidades emocionais, poderoso e com superioridade em relação ao sexo feminino, ou seja, o ser que tem o “poder da cura” e que, portanto, desqualifica as práticas de cuidado(10). As enfermeiras, que organizaram suas práticas baseadas nas ordens sacras, desempenham atividades tidas, na cultura, como “naturalmente” femininas tais como: cuidado e nutrição, pois essa profissional está associada à figura da mulher-mãe, detentora de um saber tipicamente feminino de práticas de cuidados que se profissionaliza e estabelece relações de trabalho num universo médico-masculino(10,11).

Morte e Cuidados Paliativos: mudança de paradigma (2000- 2005)

As publicações das enfermeiras acerca da temática, a partir dos anos dois mil, aumentam bruscamente, e em cinco anos, o número de artigos publicados é quase igual ao das sete décadas anteriores. As novidades, nos periódicos de enfermagem, centram-se no surgimento dos cuidados paliativos, como saber científico e objeto de apropriação profissional. Assim, a morte e o morrer passam a ser vistos sob um “novo regime de discurso” que possibilitaria pensar na chegada do fim da vida como resultante de um processo “natural”(2). Inicia-se, assim, uma modificação nos enunciados e nas formas como eles se implicam e são regidos para serem aceitos como “verdades”(8).

É nesse princípio de século, que as autoras se ocupam mais intensamente de temáticas referentes ao deslocamento da morte do ambiente domiciliar para o hospitalar e apontam que o hospital é o local onde o indivíduo é despido de sua individualidade e identidade e onde ficam ocultados aspectos sórdidos da doença. Nas revistas, as autoras referem que a morte nos hospitais é negada, mecanizada e investida de tecnologias o que auxilia na ocultação das verdades sobre a doença. Assim, as atenções das publicações se voltam para uma nova modalidade de assistência: os cuidado paliativos. Estes surgem com a finalidade de incluir o moribundo permitindo que escolha o local da sua morte. Esses cuidados proporcionariam a família e ao doente a melhor qualidade de vida possível, um cuidado humanizado e uma sobrevida digna mantendo o doente, o menor tempo possível, longe dos seus lugares habituais e permitindo que ele viva com autonomia a própria morte. As publicações de enfermagem ressaltam, ainda, a importância do movimento hospice, que despertaria uma mudança de atitude frente a terminalidade da vida por meio de um serviço multiprofissional centrado na satisfação das necessidades de cuidados e conforto e na liberdade de visitas dos familiares. As enfermeiras ressaltam que essa filosofia pretende delegar um maior poder decisório à família e ao paciente ao contrário do que, usualmente, ocorre no ambiente hospitalar.

Os discursos produzidos acerca dos cuidados paliativos têm a pretensão de modificar as relações de poder envoltas nos cuidados ao paciente fora de possibilidades terapêuticas. Assim, o paciente moribundo, antes ignorado pelo saber médico e suas instituições, torna-se objeto de estudo e contribui para o surgimento de um outro saber, que busca a humanização do processo de morrer se contrapondo as tecnologias da medicina moderna(12). Os cuidados paliativos podem ser vistos como um saber que vem tentando tornar-se científico o que permite estabelecer certas práticas e desqualificar outras. Tal ruptura não trata de libertar os sujeitos da morte silenciada e ocultada, mas de colocá-la em uma nova ordem de discurso submetida a outros dispositivos de poder e saber(13).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Notamos que o saber sobre a morte, objeto de múltiplas discursividades, é permeado por dúvidas que a ciência moderna não consegue esclarecer já que observamos uma busca por “verdades”, e não encontramos autoras que discursassem sobre uma “morte científica”, ou seja, um discurso que carregue consigo as verdades tão comuns na ciência moderna. Nesse sentido, não queremos criticar a forma como esses saberes e poderes se articulam nem como nos tornamos sujeitos de tais discursos, já que não nos colocamos fora dessas práticas e não estamos isentas de suas ações. Aqui, propomos ensaiar uma das possíveis formas de entender como diferentes dispositivos se articulam num funcionamento social constituindo aquilo que somos, valorizando determinadas práticas e desqualificando outras.

Os humanos sempre desejaram encontrar uma explicação sobre porque se morre(2). Nessa perspectiva, a vontade de verdade, um procedimento de controle e delimitação do discurso, atravessa a civilização fazendo com que, cada um de nós, deseje ser o detentor de um discurso verdadeiro que tenha o aval da sociedade e da comunidade cientifica para que possa circular e carregar determinados poderes. Tal discurso guarda relação direta com a vontade de saber. Assim, vontade de saber e vontade de verdade (re)surgem e se (re)formulam, ao longo do tempo, de acordo com os modos pelos quais o saber é distribuído na sociedade e com os tipos de verdades que são valorizadas(9).

Como Foucault, pensamos que resgatar esses discursos nos auxilia a entender como enfermeiras e pacientes vão sendo constituídos e subjetivados tornando-se objetos-objetivo nessa rede de saber e poder que tem efeitos de verdade na assistência de enfermagem(8).

Correspondência:

Karen Schein da Silva

Rua Sofia Veloso 46/207

Bairro: Cidade Baixa

CEP: 90050-140. Porto Alegre, RS

Submissão: 22/11/2009

Aprovação: 03/12/2009

  • 1. PRIBERAN. Morrer. Dicionário Priberan da Língua Portuguesa. Lisboa: Universal; 2006. [citado 02 out 2006]. Disponível em: URL: http://www.priberam.pt/
  • 2. Elias N. A solidão dos moribundos: seguido de envelhecer e morrer. Rio de Janeiro: Jorge Zahar; 2001.
  • 3. Valls ALM. Repensando a vida e a morte do ponto de vista filosófico. In: Goldim JR. Bioética e ética na ciência. Porto Alegre: UFRGS; 2002.
  • 4. Hall S. A centralidade da cultura: notas sobre as revoluções do nosso tempo. Educ Real 1997; 22(2): 15-46.
  • 5. Martins EL, Alves RN, GODOY SAF. Reações e sentimentos do profissional de enfermagem diante da morte. Rev Bras Enferm 1999; 52(1): 105-17.
  • 6. Kellner D. A cultura da mídia: estudos culturais: identidade e política entre o moderno e o pós-moderno. Bauru: EDUSC; 2001.
  • 7. Fischer RMB, Veiga-Neto A. Foucault, um diálogo. Educ Real 2004; 29(1): 7-25.
  • 8. Foucault M. Microfísica do Poder. 21Ş ed. Rio de Janeiro: Graal; 2005.
  • 9. Foucault M. A ordem do discurso: aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970. 13Ş ed. São Paulo: Edições Loyola; 2006.
  • 10. Lopes MJM, Leal SMC. A feminização persistente na qualificação profissional da enfermagem brasileira. Cad Pagu 2005; (24):105-25.
  • 11. Kruse MHL. Os Poderes dos corpos frios: das coisas que se ensinam às enfermeiras. Brasília: ABEn; 2004.
  • 12. Menezes RA. Em busca da “boa morte”: uma investigação sócio-antropológica sobre cuidados paliativos [tese]. Rio de Janeiro (RJ): Instituto de Medicina social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro; 2004.
  • 13. Carrara S. Prefácio. In: Menezes RA. Em busca da boa morte: antropologia dos cuidados paliativos. Rio de Janeiro: Garamond/FIOCRUZ; 2004. p. 11-3.

Nas primeiras publicações da revista, a morte e o morrer não eram assuntos recorrentes e só passaram a integrar tal cenário após o final da Segunda Guerra Mundial. A visão social desse processo foi sendo modificada podendo ser considerado que existe um “recalcamento” da morte, à medida que a vida ficou mais longa e a morte tornou-se adiada.

De acordo com as publicações desta época, a enfermeira não pode se emocionar e deve desenvolver habilidades de comunicação para confortar familiares e pacientes, saber administrar analgesia, promover o conforto do moribundo e satisfazer a sede espiritual dos pacientes. Os textos têm um tom dogmático, de conotação religiosa e autoritária que manifestam a moral e a obediência, através de expressões como: “deve”, “tornar-se apta”, “dever”, “fazer”, “conhecer” que não deixam dúvidas quanto ao que deve ser feito e pretendem instaurar um modelo de enfermeira. A revista também demonstra uma preocupação com o corpo e seus cuidados, especialmente, após a morte, pois esses devem ser realizados com paciência e amor. É apontada a necessidade de entregá-lo para a família com aparência de conforto, indicando a higiene e o tamponamento dos orifícios como cuidados de enfermagem imprescindíveis. Além disso, as técnicas de preparo do corpo são apresentadas para que as enfermeiras incorporem um jeito de fazer enfermagem e cuidar dos corpos, sejam eles vivos ou mortos.

Nessa categoria discursiva as autoras utilizam formas verbais no imperativo com o intuito de incitar as enfermeiras a desenvolver as ações desejadas, pois esses verbos manifestam ordem e apelo a concretização da ação, o que nos possibilita observar o governamento dos corpos. Além disso, ao longo dos textos, é possível observar a influência dos preceitos de Florence Nightingale, nas referências à insalubridade do ambiente onde o moribundo se encontra, que deve ser combatida através da incidência da luz solar, boa ventilação, iluminação, limpeza e silêncio, pois como refere Foucault a medicina urbana se organizou, primeiramente, não em torno dos homens, mas das coisas(8). Os métodos de Florence, utilizavam como base a moral e o disciplinamento dos corpos das enfermeiras e objetivavam introduzir a ordem no hospital para transformá-lo num local de cura, acúmulo e transmissão de saber.

Travando uma Luta Contra a Morte (1980-1989)

Nesse período, os discursos originam-se, principalmente, das profissionais que trabalham nos Centros de Terapia Intensiva, pois com as novas tecnologias que invadem os hospitais a morte torna-se parte da rotina das enfermeiras que ali atuam entrando na ordem do seu discurso. Assim, acreditamos que “[…] as coisas podem ser ditas, mas não são ouvidas, não são escutadas quando ditas fora de uma ordem. Ou tu te colocas na ordem, ou tu não és escutada”(7). Tais efeitos podem ser observados no que Foucault chamou de ritual, que é a imposição de regras aos indivíduos que pretendem pronunciar determinados discursos, pois eles necessitam ser qualificados para fazê-lo(9). Assim, as enfermeiras, que atuam nesse contexto, têm a aprovação dessa “sociedade de discurso” para veicular, nas páginas das revistas, seus enunciados, já que são detentoras desse saber. Foucault entende como uma “sociedade de discurso” um grupo de indivíduos, limitado, dentre os quais, circula um determinado tipo de discursividade(9).

Os artigos apresentam a morte como algo natural, mas sugerem que o controle do homem sobre a natureza tem sido maior, o que possibilitaria o prolongamento da vida através de determinados comportamentos. Aqui podemos evidenciar a sugestão de que ao assumirmos determinadas práticas e nos disciplinarmos asseguraríamos uma vida mais longa. Assim, a morte, que antes era associada ao processo de viver, agora está associada à possibilidade de adoecer. No que se refere à equipe de saúde, a terminalidade do ser é considerada natural, porém relacionada a sentimentos de medo, impotência, tristeza, depressão, culpa, fracasso e falha. Além disso, ela aparece como algo negado, rejeitado e silenciado. Algumas publicações apontam que os sentimentos da equipe de enfermagem em relação ao cuidado de pessoas que estão morrendo, se refletiria na qualidade assistencial. Nos artigos, observamos referências a preocupação das enfermeiras com o cuidado do corpo e os equipamentos como forma de ocultar a morte, já que o trabalho com pacientes que estão morrendo é tido como desestabilizador emocional da equipe. A identificação com esses pacientes e seus familiares, as dificuldades de conversar sobre o diagnóstico e o prognóstico da doença, a insuficiência de treinamento e a falta de respaldo psicológico são, também, apontadas como fatores que prejudicam o processo assistencial. As revistas referem como atribuições da enfermeira: a observação constante, o atendimento imediato, a individualização e humanização da assistência, a boa comunicação verbal, a assistência farmacológica e fisiológica e o conforto à família e ao moribundo. Aqui podemos constatar mais uma espécie de disciplinamento que o hospital pretende produzir nos corpos dos profissionais que ali atuam, em especial, da enfermeira, pois essa profissional deve estar apta a desenvolver certas práticas que permitam uma normalização de suas atividades. Para isso, ela deve obedecer a um regime disciplinar que permita um controle das suas operações e assegure uma sujeição que a torne governável.

A morte em cena: multiplicidade de facetas (1990-1999)

Nesse período, a morte antes negada, ocultada e silenciada passa a ser objeto de estudo das enfermeiras e entra em cena assumindo um dos focos da atenção profissional.

Os profissionais de saúde continuam sendo questionados sobre suas percepções acerca do término da vida. Aqui são ressaltados os diferentes mecanismos de defesa, como a negação e a racionalização, utilizadas pela equipe de saúde para lidar com os pacientes em fase terminal. Nos artigos publicados o preparo do corpo também é objeto de preocupação, pois os profissionais sentem-se desconfortáveis ao realizar tal prática. A sugestão de um espaço terapêutico para a equipe de enfermagem emerge como necessidade, já que nesse local poderiam ser trabalhados sentimentos frente a perda o que aumentaria a satisfação no trabalho e a qualidade da assistência. A temática da morte emerge, ainda, relacionada à educação sugerindo a necessidade de incluí-la nos currículos de enfermagem para que não continue silenciada. Assim, os alunos de graduação manifestam a vontade de discutir questões relativas ao assunto para que o currículo, que é voltado para a cura e para a preservação da vida, os prepare para enfrentar, também, a morte. As enfermeiras apontam que esse conteúdo deveria ser incluído nos programas de educação em serviço o que melhoraria a qualidade da assistência e diminuiria a ansiedade, o medo e a dor da equipe de saúde.

Com o aumento da violência, as enfermeiras passam a preocupar-se com as mortes relacionadas às causas externas, já que tais acontecimentos seriam preveníveis e estão se tornando um problema de saúde pública. Assim, os conhecimentos epidemiológicos são incorporados a esse saber como forma de estabelecer uma relação entre mortalidade e violência. A terminalidade da vida aparece como um desafio que ameaça os indivíduos devido a falta de explicações científicas dos acontecimentos que a sucedem.

Nessa década, as enfermeiras discutem a transferência da morte do ambiente domiciliar, onde era um fenômeno coletivo, junto a amigos e parentes, para o contexto hospitalar, onde se torna solitária, acompanhada por estranhos, tornando-se um evento dramatizado. Entram em pauta as questões relacionadas a “morte social”, que é o isolamento do moribundo do convívio coletivo antes do acontecimento de sua morte biológica. Quanto ao ambiente hospitalar, algumas publicações defendem a flexibilização das normas disciplinares das instituições permitindo ao moribundo que permaneça com seus familiares até seus últimos dias.

Nos artigos das revistas, a figura do médico aparece, como alguém que lida com a morte de forma impessoal, fria e objetiva por meio de sentimentos ilusórios de soberania no controle das situações de vida-morte, já que esse profissional seria o detentor do poder de prolongar a vida. A figura da enfermeira emerge como a profissional que presta cuidados com fortes sentimentos e que deve os conter perante o paciente. É citado, também, que essas profissionais para se afastarem da morte valorizam procedimentos técnicos em detrimento da relação interpessoal. Entendemos que essas características atribuídas ao médico e a enfermeira carregam nos seus discursos questões de gênero. O médico, representado pelo sexo masculino, emerge como um ser sem fragilidades emocionais, poderoso e com superioridade em relação ao sexo feminino, ou seja, o ser que tem o “poder da cura” e que, portanto, desqualifica as práticas de cuidado(10). As enfermeiras, que organizaram suas práticas baseadas nas ordens sacras, desempenham atividades tidas, na cultura, como “naturalmente” femininas tais como: cuidado e nutrição, pois essa profissional está associada à figura da mulher-mãe, detentora de um saber tipicamente feminino de práticas de cuidados que se profissionaliza e estabelece relações de trabalho num universo médico-masculino(10,11).

Morte e Cuidados Paliativos: mudança de paradigma (2000- 2005)

As publicações das enfermeiras acerca da temática, a partir dos anos dois mil, aumentam bruscamente, e em cinco anos, o número de artigos publicados é quase igual ao das sete décadas anteriores. As novidades, nos periódicos de enfermagem, centram-se no surgimento dos cuidados paliativos, como saber científico e objeto de apropriação profissional. Assim, a morte e o morrer passam a ser vistos sob um “novo regime de discurso” que possibilitaria pensar na chegada do fim da vida como resultante de um processo “natural”(2). Inicia-se, assim, uma modificação nos enunciados e nas formas como eles se implicam e são regidos para serem aceitos como “verdades”(8).

É nesse princípio de século, que as autoras se ocupam mais intensamente de temáticas referentes ao deslocamento da morte do ambiente domiciliar para o hospitalar e apontam que o hospital é o local onde o indivíduo é despido de sua individualidade e identidade e onde ficam ocultados aspectos sórdidos da doença. Nas revistas, as autoras referem que a morte nos hospitais é negada, mecanizada e investida de tecnologias o que auxilia na ocultação das verdades sobre a doença. Assim, as atenções das publicações se voltam para uma nova modalidade de assistência: os cuidado paliativos. Estes surgem com a finalidade de incluir o moribundo permitindo que escolha o local da sua morte. Esses cuidados proporcionariam a família e ao doente a melhor qualidade de vida possível, um cuidado humanizado e uma sobrevida digna mantendo o doente, o menor tempo possível, longe dos seus lugares habituais e permitindo que ele viva com autonomia a própria morte. As publicações de enfermagem ressaltam, ainda, a importância do movimento hospice, que despertaria uma mudança de atitude frente a terminalidade da vida por meio de um serviço multiprofissional centrado na satisfação das necessidades de cuidados e conforto e na liberdade de visitas dos familiares. As enfermeiras ressaltam que essa filosofia pretende delegar um maior poder decisório à família e ao paciente ao contrário do que, usualmente, ocorre no ambiente hospitalar.

Os discursos produzidos acerca dos cuidados paliativos têm a pretensão de modificar as relações de poder envoltas nos cuidados ao paciente fora de possibilidades terapêuticas. Assim, o paciente moribundo, antes ignorado pelo saber médico e suas instituições, torna-se objeto de estudo e contribui para o surgimento de um outro saber, que busca a humanização do processo de morrer se contrapondo as tecnologias da medicina moderna(12). Os cuidados paliativos podem ser vistos como um saber que vem tentando tornar-se científico o que permite estabelecer certas práticas e desqualificar outras. Tal ruptura não trata de libertar os sujeitos da morte silenciada e ocultada, mas de colocá-la em uma nova ordem de discurso submetida a outros dispositivos de poder e saber(13).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Notamos que o saber sobre a morte, objeto de múltiplas discursividades, é permeado por dúvidas que a ciência moderna não consegue esclarecer já que observamos uma busca por “verdades”, e não encontramos autoras que discursassem sobre uma “morte científica”, ou seja, um discurso que carregue consigo as verdades tão comuns na ciência moderna. Nesse sentido, não queremos criticar a forma como esses saberes e poderes se articulam nem como nos tornamos sujeitos de tais discursos, já que não nos colocamos fora dessas práticas e não estamos isentas de suas ações. Aqui, propomos ensaiar uma das possíveis formas de entender como diferentes dispositivos se articulam num funcionamento social constituindo aquilo que somos, valorizando determinadas práticas e desqualificando outras.

Os humanos sempre desejaram encontrar uma explicação sobre porque se morre(2). Nessa perspectiva, a vontade de verdade, um procedimento de controle e delimitação do discurso, atravessa a civilização fazendo com que, cada um de nós, deseje ser o detentor de um discurso verdadeiro que tenha o aval da sociedade e da comunidade cientifica para que possa circular e carregar determinados poderes. Tal discurso guarda relação direta com a vontade de saber. Assim, vontade de saber e vontade de verdade (re)surgem e se (re)formulam, ao longo do tempo, de acordo com os modos pelos quais o saber é distribuído na sociedade e com os tipos de verdades que são valorizadas(9).

Como Foucault, pensamos que resgatar esses discursos nos auxilia a entender como enfermeiras e pacientes vão sendo constituídos e subjetivados tornando-se objetos-objetivo nessa rede de saber e poder que tem efeitos de verdade na assistência de enfermagem(8).

Correspondência:

Karen Schein da Silva

Rua Sofia Veloso 46/207

Bairro: Cidade Baixa

CEP: 90050-140. Porto Alegre, RS

Submissão: 22/11/2009

Aprovação: 03/12/2009

  • 1. PRIBERAN. Morrer. Dicionário Priberan da Língua Portuguesa. Lisboa: Universal; 2006. [citado 02 out 2006]. Disponível em: URL: http://www.priberam.pt/
  • 2. Elias N. A solidão dos moribundos: seguido de envelhecer e morrer. Rio de Janeiro: Jorge Zahar; 2001.
  • 3. Valls ALM. Repensando a vida e a morte do ponto de vista filosófico. In: Goldim JR. Bioética e ética na ciência. Porto Alegre: UFRGS; 2002.
  • 4. Hall S. A centralidade da cultura: notas sobre as revoluções do nosso tempo. Educ Real 1997; 22(2): 15-46.
  • 5. Martins EL, Alves RN, GODOY SAF. Reações e sentimentos do profissional de enfermagem diante da morte. Rev Bras Enferm 1999; 52(1): 105-17.
  • 6. Kellner D. A cultura da mídia: estudos culturais: identidade e política entre o moderno e o pós-moderno. Bauru: EDUSC; 2001.
  • 7. Fischer RMB, Veiga-Neto A. Foucault, um diálogo. Educ Real 2004; 29(1): 7-25.
  • 8. Foucault M. Microfísica do Poder. 21Ş ed. Rio de Janeiro: Graal; 2005.
  • 9. Foucault M. A ordem do discurso: aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970. 13Ş ed. São Paulo: Edições Loyola; 2006.
  • 10. Lopes MJM, Leal SMC. A feminização persistente na qualificação profissional da enfermagem brasileira. Cad Pagu 2005; (24):105-25.
  • 11. Kruse MHL. Os Poderes dos corpos frios: das coisas que se ensinam às enfermeiras. Brasília: ABEn; 2004.
  • 12. Menezes RA. Em busca da “boa morte”: uma investigação sócio-antropológica sobre cuidados paliativos [tese]. Rio de Janeiro (RJ): Instituto de Medicina social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro; 2004.
  • 13. Carrara S. Prefácio. In: Menezes RA. Em busca da boa morte: antropologia dos cuidados paliativos. Rio de Janeiro: Garamond/FIOCRUZ; 2004. p. 11-3.

EDIÇÃO 496 | 31 OUTUBRO 2016

Quando “ela” sequer é mencionada

João Vitor Santos

A morte vivida de forma hermética, breve e pasteurizada, tão presente nos tempos atuais, é a entrada para as reflexões de Thomas Heimann sobre o fim da vida

“A morte se tornou um tabu da modernidade. Falar dela é obsceno, constrangedor”. A elaboração é do psicólogo e teólogo Thomas Heimann. Para ele, essa postura tem uma explicação: “vivemos na atualidade uma ‘ditadura da felicidade’, mesmo que aparente e superficial, parece não haver mais espaço para a emergência de temas profundos e existenciais como o sofrimento e a morte, especialmente a morte pessoal e íntima que toca a cada um de nós”. Para ele, essa ideia “moderna” de lidar com a experiência da morte pode criar um verdadeiro castelo de areia. Parecemos ter resolvido tudo rapidamente, mas, no longo prazo, toda essa solução rui. “As implicações de toda essa assepsia com a morte normalmente acabarão irrompendo em lutos crônicos e mal resolvidos”, pontua.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, Heimann destaca que pensar sobre a morte proporciona um melhor entendimento sobre a vida. “A reflexão sobre a morte possibilita ao ser humano descortinar caminhos para uma vida mais autêntica, na busca da sabedoria do bem viver”, analisa. Por isso condena o que chama de “desumanização da experiência da morte”, que começa já com os cuidados e relação com doentes terminais. “Parece se estar terceirizando o cuidado das pessoas diante da morte e do morrer”, alerta. “Isso também se mostra nos ritos fúnebres, cada vez mais herméticos, breves e pasteurizados. Tudo é controlado, não havendo espaço para sobressaltos ou manifestações de maiores emoções”, analisa.

Thomas Heimann é graduado em Psicologia pela Universidade Luterana do Brasil – Ulbra e em Teologia pela Faculdade de Teologia do Seminário Concórdia; possui mestrado e doutorado em Teologia pela Escola Superior de Teologia – Faculdades EST. Atualmente é professor titular da Ulbra, na área da Graduação e Pós-Graduação. É o atual coordenador do curso de Teologia da Ulbra, nas modalidades presencial e Ensino a Distância – EAD e também atua como professor convidado do curso de especialização em Aconselhamento e Psicologia Pastoral da EST.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Desde as perspectivas psicológica e teológica, como o senhor constitui o conceito de morte?

Thomas Heimann – Talvez seja mais apropriado iniciarmos por uma definição mais pragmática, a partir de uma perspectiva biológica, que ainda assim não será unânime, visto que, à medida que a ciência avança, mudam os critérios de conceituação. Mondin , por exemplo, define a morte como um cessar do processo vital num organismo vivo, ou, numa linguagem da biologia molecular, como a “dissolução da estruturação molecular necessária para o fenômeno da vida”. . O conceito de morte evoluiu ao longo da história humana, indo da cessação dos batimentos cardíacos ou da atividade respiratória, até o moderno conceito de cessação de qualquer atividade encefálica, que compromete, de forma irreversível, não só uma vida de relação como também a própria coordenação da vida vegetativa. Nessa perspectiva das ciências biológicas, a morte é o ponto final da existência humana. 

Morte, teologicamente

Já numa perspectiva religiosa ou teológica a morte, porém, não é o fim, sendo considerada como um momento de transição, de passagem de um estado para outro. Ao plano físico, orgânico e mortal é acrescido um plano espiritual, transcendente, etéreo, imortal e eterno. Cada religião, entretanto, possui singularidades na sua concepção de morte, sendo que nessa multiplicidade são inseridas representações de tempo e espaço como céu, inferno, purgatório, umbral etc. Ressalta-se que, nem mesmo dentro do próprio cristianismo há consenso sobre o que nos espera logo após a morte física ou terrena.

O que pode ser considerado como consensual na religião cristã é a de que, na morte do cristão, ocorre o encontro pessoal da criatura com o Criador, inaugurando o que convencionalmente se chama nos evangelhos de “vida eterna com Deus”. Essa vida será efetivada plenamente na ressurreição, que ocorrerá juntamente com a segunda vinda de Cristo, conforme as promessas bíblicas. Nessas representações entram em cena a dimensão da fé e da espiritualidade, elementos essenciais para o enfrentamento e consolo diante da inevitabilidade da morte física e terrena.

Morte na psicologia

Já na perspectiva psicológica, ou filosófica-existencial, o ser humano parece ser o único ser que possui consciência da sua finitude e que pode, portanto, refletir sobre a morte e dar um sentido ou significado a ela. Porém, a morte sempre acabará tendo um sentido único e singular para cada indivíduo, apesar das influências socioculturais, religiosas, familiares que contribuem para a construção da representação pessoal de morte. Portanto, é difícil para a psicologia sistematizar uma definição para a morte, especialmente porque ninguém, de fato, a experienciou realmente.

O que se experiencia é o processo de morrer, mas este ainda está ligado à dimensão temporal da vida. Nesse sentido, a morte propicia um encontro dialógico e dialético com a vida, ou seja, a morte nos faz refletir e dialogar com a vida, numa tripla dimensão temporal, que abarca o passado, o presente e o futuro, ou seja, sobre como vivemos, como estamos vivendo ou como ainda haveremos de viver a nossa existência finita.

O fundador da Psicanálise, Sigmund Freud , afirma que não há como viver a vida sem ter à frente a perspectiva da morte e parafraseia um provérbio latino dizendo “Se queres a vida, prepara-te para a morte”.  Mas, talvez, seja mais apropriado encerrar essa primeira questão com a visão do psicanalista e psiquiatra Roosevelt Cassorla , que diz que “a morte é algo que não pode ser descrito, pensado, nomeado, algo frente ao qual não se encontram palavras” ou ainda, no dizer de Georges Barbarin , de que a morte encerra em si uma definição impossível. 

IHU On-Line – Como a morte é encarada nos dias de hoje? De que forma é representada e construída nas sociedades modernas e pós-modernas?

Thomas Heimann – Falar de morte, para a maioria das pessoas, não é algo fácil nem agradável, até porque não há como embelezar a morte: ela é, invariavelmente, fonte de sofrimento, de dor, de tristeza e de saudade.  Mesmo que o diálogo entre vida e morte devesse ser permanente, por ser ela uma das poucas certezas humanas, o ser humano moderno ou pós-moderno parece que tenta, a todo custo, exorcizar a morte íntima e pessoal de sua consciência, reprimindo-a e negando-se a falar dela, o que não deixa de ser um paradoxo, afinal, negar a única certeza que temos na vida.

Phillippe Ariès , um dos mais eminentes estudiosos do tema da morte, descrevendo a concepção de morte no século XX, fala da morte invertida, isto é, da morte que é escondida, que se torna algo vergonhoso, tal como o sexo havia sido na era vitoriana. “A morte, tão presente no passado, de tão familiar, vai se apagar e desaparecer. Torna-se vergonhosa e objeto de interdição”.  

Já para Marie de Hennezel , o mundo moderno não nos ensina mais a morrer. “Tudo é feito para esconder a morte, para incitar-nos a viver sem pensar nela,…”.  A morte, portanto, se tornou um tabu da modernidade. Falar dela é obsceno, constrangedor, mórbido… Por vivermos na atualidade uma “ditadura da felicidade”, mesmo que aparente e superficial, parece não haver mais espaço para a emergência de temas profundos e existenciais como o sofrimento e a morte, especialmente a morte pessoal e íntima que toca a cada um de nós.

Marie de Hennezel vai afirmar justamente que o tabu da morte que vivemos hoje é um tabu da intimidade. “Quando se começa a observar a realidade da morte é para as profundezas de si que o olhar se dirige. E é essa interioridade que nossa sociedade evita e dissimula tanto quanto pode…” 

Para Georges Barbarin, a civilização ocidental introduziu no ser humano a noção de horror à morte e desaprendeu o ato de resignação. É preciso que a sociedade reaprenda a olhar a morte de frente, como de fato ela é, sem ser mascarada. 

IHU On-Line – Que implicações pode haver no tratamento do tema morte de forma mais prática e técnica, quase asséptica, em que todas as questões são “resolvidas” de forma prática e objetiva?

Thomas Heimann – As implicações dessa objetividade e assepsia com a morte, que podem aparentar um controle positivo desse evento a curto prazo, num momento de dor e desorganização familiar, acabam se tornando negativas, especialmente a médio e longo prazo. Landmann , numa perspectiva médica, vai analisar a transição que a morte veio a sofrer desde a Idade Média, apontando para a sua gradativa “tecnologização”.

Para o autor, a experiência individual da morte dá lugar a uma outra concepção, em que a morte deixa de ser um fenômeno espiritual e religioso para se transformar num problema mecânico de funcionamento do corpo e, portanto, passível de prevenção e conquista. “Não se fala mais da extinção de uma pessoa, mas da destruição de uma quase máquina.  Há uma coisificação do ser humano. A morte começa a deixar de ser um fenômeno natural e torna-se um fracasso, um sinal de impotência ou imperícia, por isso devendo ser ocultada. O triunfo da medicalização é manter a doença e a morte na ignorância e no silêncio”. 

Por esse motivo, poucas vezes a morte ainda acontece entre mãos amigas, de familiares, como em séculos passados, sendo transferida hoje para o ambiente frio, asséptico e isolado de um hospital, por vezes em meio a fios e tubos de uma UTI, que possuem com certeza grande valor para a humanidade. Porém, o que queremos afirmar é que parece se estar terceirizando o cuidado das pessoas diante da morte e do morrer. Isso também se mostra nos ritos fúnebres, cada vez mais herméticos, breves e pasteurizados. 

Luto crônico

Tudo é controlado, não havendo espaço para sobressaltos ou manifestações de maiores emoções. As implicações de toda essa assepsia com a morte, que é uma perigosa forma de negação da própria morte, normalmente acabarão irrompendo em lutos crônicos e mal resolvidos. Emoções reprimidas, que não encontram espaços de enunciação, acabam sendo fonte geradora de inúmeras doenças de cunho psicossomático.

IHU On-Line – Qual a importância das religiões e da fé na elaboração da ideia de morte?

Thomas Heimann – Sabe-se que as religiões são elementos fundamentais nos processos de representação e elaboração das ideias sobre a morte. Conceitos como ressurreição, reencarnação, transmigração das almas, entre outros, além dos conceitos de salvação e condenação eternas, ligadas a arquétipos de céu e inferno, estão presentes em praticamente todas as religiões. A forma como cada religião constrói esses conceitos e os compartilha com seu corpo de fiéis determina, em grande parte, como cada indivíduo se relacionará com a morte, podendo trazer elementos positivos de consolo e esperança ou negativos como culpa e medo. 

Dados curiosos foram encontrados em diferentes pesquisas sobre o assunto. Algumas sociedades impregnadas de conceitos religiosos, nas quais existia a clara ideia de imortalidade, pareciam ter uma correlação direta com um aumento significativo no que tange ao temor pela morte, temor este que não era percebido em povos primitivos, que não tinham desenvolvido ideias muito elaboradas sobre a vida após a morte. Porém, Lester, após examinar dez estudos nesta área e verificar a existência de resultados discrepantes, postula que “a crença religiosa não afeta a intensidade do medo à morte, mas antes canaliza o medo para os problemas específicos que cada religião propõe”.  

Admite-se, portanto, de que uma espiritualidade ou fé norteadas por determinadas crenças religiosas que, por exemplo, enfatizem o pecado, o juízo e a condenação eternos, possam influenciar negativamente este indivíduo diante da morte e do morrer. Isso vai gerando nele sentimentos de culpa, temor, angústia e medo diante da morte. 

Salto na fé

Porém, é indiscutível que para indivíduos que possuem uma espiritualidade positiva, com a crença num Deus salvador e amoroso, a morte até pode passar a ser um ganho e não uma perda. Nesses casos, o indivíduo ultrapassa o limite humano da existência finita para ter um encontro com o infinito.  Porém, tal atitude não ocorreria com qualquer crente, mas somente com aqueles que fazem o salto na fé , ou seja, que depositam toda sua confiança no Ser Transcendente, mesmo que a sua  razão diga que é um absurdo fazer esse salto. Para o indivíduo de fé, morte é ganho, pois encontrará com a razão última do seu viver: a volta para o seu Criador, Preservador e Redentor, tal como propõem, por exemplo, as crenças cristãs.

IHU On-Line – Qual a função dos chamados rituais de passagem ou despedida dos mortos? Como o senhor observa esse momento em diferentes culturas?

Thomas Heimann – Vive-se hoje um paradoxo. Ao mesmo tempo que a sociedade moderna se prepara cada vez melhor para o enfrentamento material da morte através da contratação de seguros de vida e planos funerais, há uma crescente desumanização no tratamento com os enlutados. Isso é retratado não só pela falta de paciência social com as diferentes expressões do luto, como pelo apressamento e secularização dos ritos funerários. 

Antes tão importantes para o processo de elaboração do luto, os ritos fúnebres estão sendo esvaziados de sentido, perdendo sua função simbólica de ressignificação da experiência da morte. Paul e Grosser afirmam que “nada, na era moderna, veio substituir as formas tradicionais de luto. Nossas cerimônias abreviadas, muitas vezes escondidas com cuidado das crianças, não conferem uma compreensão empática nem proporcionam uma catarse para esta experiência”. 

A frieza, superficialidade e racionalidade tem tomado conta de muitos relacionamentos humanos, deixando cada vez menos espaço para a manifestação aberta e sincera dos sentimentos evocados pela morte. Num mundo hedonista o “chorar a morte de alguém” se tornou um incômodo social, quase uma doença contagiosa, que precisa ser evitada a qualquer custo. Como diz Ariès, a sociedade moderna “proíbe aos vivos de parecerem comovidos com a morte dos outros, não lhes permite nem chorar os que se vão, nem fingir chorá-los”. 

Armadura humana

O que talvez alguns não percebam é que, quanto mais se interdita o tema da morte no discurso do cotidiano, por temer o desconforto que o tema pode causar, tanto mais força e poder a morte acabará tendo sobre quem a reprime. A tentativa onipotente de negar a morte se configura numa forma equivocada de esconder a impotência, vulnerabilidade e fragilidade humanas. 

IHU On-Line – Como compreender o luto no processo de construção de uma experiência de morte? Em que medida a correria dos tempos contemporâneos abreviam essa experiência do luto?

Thomas Heimann – O luto é um sentimento natural decorrente de uma perda. Ele é imprescindível para o processo de superação de uma experiência de morte. Como dizem Walshe   e McGoldrick , “todas as perdas requerem um luto, que reconheça a desistência e transforme a experiência, para que possamos internalizar o que é essencial e seguir em frente” . A morte de uma pessoa significativa, portanto, gera um impacto que naturalmente causa desequilíbrio funcional no indivíduo e na família enlutada, exigindo uma reorganização individual e sistêmica que começa desde o dia da perda/morte e pode se estender por um longo prazo de tempo.

Importa ressaltar que o luto normal pode também vir acompanhado de uma depressão reativa ou exógena. No contexto da morte, ambos, luto e depressão, se tornam “um par quase indissociável”. Dessa forma, quanto maior o valor ou significado atribuído à pessoa que se perdeu, tanto maior a probabilidade desta perda vir acompanhada de um processo depressivo, que não será necessariamente patológico, mas uma reação natural à perda sofrida.

Com relação à abreviação do luto, é fato que vivemos um mundo neurótico, onde nos tornamos escravos do tempo. Aliados a um hedonismo — a cultura do prazer — está a neurose produtiva, que parece nos inibir para abandonarmos o nosso trabalho até mesmo para prestarmos solidariedade num velório ou enterro. Tudo é apressado, inclusive o tempo de vivenciar a dor da perda e do luto. Importa ressaltar que enlutados que inibem, abreviam, postergam ou negam seus sentimentos de dor e tristeza ficam mais fragilizados e têm uma grande probabilidade de desenvolver distúrbios de ordem psicossomática, que funcionam como válvula de escape das fortes emoções reprimidas. Para Stedeford , estes tipos de pesar ou luto podem ser fatores importantes para o surgimento de sintomas psiquiátricos, dentre os quais a depressão é a forma mais comum.  

IHU On-Line – O senhor já desenvolveu um trabalho junto a doentes terminais. Como essas pessoas e familiares elaboram a morte diante de um momento desses?

Thomas Heimann – Um diagnóstico de doença terminal, normalmente, é fonte geradora de muitas angústias existenciais, tanto para o paciente quanto para seus familiares. Há um estigma em torno da doença terminal, que leva muitas pessoas a vivenciarem esse diagnóstico como um atestado de óbito por antecipação. Cada paciente ou família atravessa esse “vale da sombra da morte” de modo singular, a partir de um conjunto de estratégias, ligadas às suas características de personalidade, suas crenças religiosas, seus valores pessoais, sua capacidade de resiliência, assim como às redes de apoio social (familiares, parentes, amigos, comunidade religiosa etc.). 

Porém, nesse processo de elaboração não há como deixar de citar as cinco fases que a renomada autora Elisabeth Kübler-Ross  identificou no tratamento com pacientes terminais (e que podem também ser percebidas em alguns familiares). 

São elas: a negação da doença e da possibilidade de morte iminente; a raiva contra tal diagnóstico, raiva que pode se voltar contra Deus, contra a equipe de saúde, contra sua família e contra si mesmo; a barganha, onde o indivíduo começa a negociar consigo mesmo e com Deus, dizendo que se tornará uma pessoa melhor se for curado; a depressão, momento crítico em que os pacientes se isolam num mundo interno e evidenciam sua impotência diante da sua finitude; e a aceitação, onde a realidade da doença e da morte são processadas de modo a não mais causar desespero, num atingimento de certa maturidade para o enfrentamento da morte. Esse modelo não é rígido nem sequencial, variando de indivíduo para indivíduo, mas retrata, de modo amplo e geral, como a morte é normalmente elaborada pelos pacientes terminais.

IHU On-Line – Qual o papel dos cuidadores, em casos de doentes em que é preconizado apenas o conforto, nessa constituição de uma narrativa de morte? Quais os efeitos de tantas experiências de morte diante desses 

EDIÇÃO 496 | 31 OUTUBRO 2016

Quando “ela” sequer é mencionada

João Vitor Santos

A morte vivida de forma hermética, breve e pasteurizada, tão presente nos tempos atuais, é a entrada para as reflexões de Thomas Heimann sobre o fim da vida

“A morte se tornou um tabu da modernidade. Falar dela é obsceno, constrangedor”. A elaboração é do psicólogo e teólogo Thomas Heimann. Para ele, essa postura tem uma explicação: “vivemos na atualidade uma ‘ditadura da felicidade’, mesmo que aparente e superficial, parece não haver mais espaço para a emergência de temas profundos e existenciais como o sofrimento e a morte, especialmente a morte pessoal e íntima que toca a cada um de nós”. Para ele, essa ideia “moderna” de lidar com a experiência da morte pode criar um verdadeiro castelo de areia. Parecemos ter resolvido tudo rapidamente, mas, no longo prazo, toda essa solução rui. “As implicações de toda essa assepsia com a morte normalmente acabarão irrompendo em lutos crônicos e mal resolvidos”, pontua.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, Heimann destaca que pensar sobre a morte proporciona um melhor entendimento sobre a vida. “A reflexão sobre a morte possibilita ao ser humano descortinar caminhos para uma vida mais autêntica, na busca da sabedoria do bem viver”, analisa. Por isso condena o que chama de “desumanização da experiência da morte”, que começa já com os cuidados e relação com doentes terminais. “Parece se estar terceirizando o cuidado das pessoas diante da morte e do morrer”, alerta. “Isso também se mostra nos ritos fúnebres, cada vez mais herméticos, breves e pasteurizados. Tudo é controlado, não havendo espaço para sobressaltos ou manifestações de maiores emoções”, analisa.

Thomas Heimann é graduado em Psicologia pela Universidade Luterana do Brasil – Ulbra e em Teologia pela Faculdade de Teologia do Seminário Concórdia; possui mestrado e doutorado em Teologia pela Escola Superior de Teologia – Faculdades EST. Atualmente é professor titular da Ulbra, na área da Graduação e Pós-Graduação. É o atual coordenador do curso de Teologia da Ulbra, nas modalidades presencial e Ensino a Distância – EAD e também atua como professor convidado do curso de especialização em Aconselhamento e Psicologia Pastoral da EST.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Desde as perspectivas psicológica e teológica, como o senhor constitui o conceito de morte?

Thomas Heimann – Talvez seja mais apropriado iniciarmos por uma definição mais pragmática, a partir de uma perspectiva biológica, que ainda assim não será unânime, visto que, à medida que a ciência avança, mudam os critérios de conceituação. Mondin , por exemplo, define a morte como um cessar do processo vital num organismo vivo, ou, numa linguagem da biologia molecular, como a “dissolução da estruturação molecular necessária para o fenômeno da vida”. . O conceito de morte evoluiu ao longo da história humana, indo da cessação dos batimentos cardíacos ou da atividade respiratória, até o moderno conceito de cessação de qualquer atividade encefálica, que compromete, de forma irreversível, não só uma vida de relação como também a própria coordenação da vida vegetativa. Nessa perspectiva das ciências biológicas, a morte é o ponto final da existência humana. 

Morte, teologicamente

Já numa perspectiva religiosa ou teológica a morte, porém, não é o fim, sendo considerada como um momento de transição, de passagem de um estado para outro. Ao plano físico, orgânico e mortal é acrescido um plano espiritual, transcendente, etéreo, imortal e eterno. Cada religião, entretanto, possui singularidades na sua concepção de morte, sendo que nessa multiplicidade são inseridas representações de tempo e espaço como céu, inferno, purgatório, umbral etc. Ressalta-se que, nem mesmo dentro do próprio cristianismo há consenso sobre o que nos espera logo após a morte física ou terrena.

O que pode ser considerado como consensual na religião cristã é a de que, na morte do cristão, ocorre o encontro pessoal da criatura com o Criador, inaugurando o que convencionalmente se chama nos evangelhos de “vida eterna com Deus”. Essa vida será efetivada plenamente na ressurreição, que ocorrerá juntamente com a segunda vinda de Cristo, conforme as promessas bíblicas. Nessas representações entram em cena a dimensão da fé e da espiritualidade, elementos essenciais para o enfrentamento e consolo diante da inevitabilidade da morte física e terrena.

Morte na psicologia

Já na perspectiva psicológica, ou filosófica-existencial, o ser humano parece ser o único ser que possui consciência da sua finitude e que pode, portanto, refletir sobre a morte e dar um sentido ou significado a ela. Porém, a morte sempre acabará tendo um sentido único e singular para cada indivíduo, apesar das influências socioculturais, religiosas, familiares que contribuem para a construção da representação pessoal de morte. Portanto, é difícil para a psicologia sistematizar uma definição para a morte, especialmente porque ninguém, de fato, a experienciou realmente.

O que se experiencia é o processo de morrer, mas este ainda está ligado à dimensão temporal da vida. Nesse sentido, a morte propicia um encontro dialógico e dialético com a vida, ou seja, a morte nos faz refletir e dialogar com a vida, numa tripla dimensão temporal, que abarca o passado, o presente e o futuro, ou seja, sobre como vivemos, como estamos vivendo ou como ainda haveremos de viver a nossa existência finita.

O fundador da Psicanálise, Sigmund Freud , afirma que não há como viver a vida sem ter à frente a perspectiva da morte e parafraseia um provérbio latino dizendo “Se queres a vida, prepara-te para a morte”.  Mas, talvez, seja mais apropriado encerrar essa primeira questão com a visão do psicanalista e psiquiatra Roosevelt Cassorla , que diz que “a morte é algo que não pode ser descrito, pensado, nomeado, algo frente ao qual não se encontram palavras” ou ainda, no dizer de Georges Barbarin , de que a morte encerra em si uma definição impossível. 

IHU On-Line – Como a morte é encarada nos dias de hoje? De que forma é representada e construída nas sociedades modernas e pós-modernas?

Thomas Heimann – Falar de morte, para a maioria das pessoas, não é algo fácil nem agradável, até porque não há como embelezar a morte: ela é, invariavelmente, fonte de sofrimento, de dor, de tristeza e de saudade.  Mesmo que o diálogo entre vida e morte devesse ser permanente, por ser ela uma das poucas certezas humanas, o ser humano moderno ou pós-moderno parece que tenta, a todo custo, exorcizar a morte íntima e pessoal de sua consciência, reprimindo-a e negando-se a falar dela, o que não deixa de ser um paradoxo, afinal, negar a única certeza que temos na vida.

Phillippe Ariès , um dos mais eminentes estudiosos do tema da morte, descrevendo a concepção de morte no século XX, fala da morte invertida, isto é, da morte que é escondida, que se torna algo vergonhoso, tal como o sexo havia sido na era vitoriana. “A morte, tão presente no passado, de tão familiar, vai se apagar e desaparecer. Torna-se vergonhosa e objeto de interdição”.  

Já para Marie de Hennezel , o mundo moderno não nos ensina mais a morrer. “Tudo é feito para esconder a morte, para incitar-nos a viver sem pensar nela,…”.  A morte, portanto, se tornou um tabu da modernidade. Falar dela é obsceno, constrangedor, mórbido… Por vivermos na atualidade uma “ditadura da felicidade”, mesmo que aparente e superficial, parece não haver mais espaço para a emergência de temas profundos e existenciais como o sofrimento e a morte, especialmente a morte pessoal e íntima que toca a cada um de nós.

Marie de Hennezel vai afirmar justamente que o tabu da morte que vivemos hoje é um tabu da intimidade. “Quando se começa a observar a realidade da morte é para as profundezas de si que o olhar se dirige. E é essa interioridade que nossa sociedade evita e dissimula tanto quanto pode…” 

Para Georges Barbarin, a civilização ocidental introduziu no ser humano a noção de horror à morte e desaprendeu o ato de resignação. É preciso que a sociedade reaprenda a olhar a morte de frente, como de fato ela é, sem ser mascarada. 

IHU On-Line – Que implicações pode haver no tratamento do tema morte de forma mais prática e técnica, quase asséptica, em que todas as questões são “resolvidas” de forma prática e objetiva?

Thomas Heimann – As implicações dessa objetividade e assepsia com a morte, que podem aparentar um controle positivo desse evento a curto prazo, num momento de dor e desorganização familiar, acabam se tornando negativas, especialmente a médio e longo prazo. Landmann , numa perspectiva médica, vai analisar a transição que a morte veio a sofrer desde a Idade Média, apontando para a sua gradativa “tecnologização”.

Para o autor, a experiência individual da morte dá lugar a uma outra concepção, em que a morte deixa de ser um fenômeno espiritual e religioso para se transformar num problema mecânico de funcionamento do corpo e, portanto, passível de prevenção e conquista. “Não se fala mais da extinção de uma pessoa, mas da destruição de uma quase máquina.  Há uma coisificação do ser humano. A morte começa a deixar de ser um fenômeno natural e torna-se um fracasso, um sinal de impotência ou imperícia, por isso devendo ser ocultada. O triunfo da medicalização é manter a doença e a morte na ignorância e no silêncio”. 

Por esse motivo, poucas vezes a morte ainda acontece entre mãos amigas, de familiares, como em séculos passados, sendo transferida hoje para o ambiente frio, asséptico e isolado de um hospital, por vezes em meio a fios e tubos de uma UTI, que possuem com certeza grande valor para a humanidade. Porém, o que queremos afirmar é que parece se estar terceirizando o cuidado das pessoas diante da morte e do morrer. Isso também se mostra nos ritos fúnebres, cada vez mais herméticos, breves e pasteurizados. 

Luto crônico

Tudo é controlado, não havendo espaço para sobressaltos ou manifestações de maiores emoções. As implicações de toda essa assepsia com a morte, que é uma perigosa forma de negação da própria morte, normalmente acabarão irrompendo em lutos crônicos e mal resolvidos. Emoções reprimidas, que não encontram espaços de enunciação, acabam sendo fonte geradora de inúmeras doenças de cunho psicossomático.

IHU On-Line – Qual a importância das religiões e da fé na elaboração da ideia de morte?

Thomas Heimann – Sabe-se que as religiões são elementos fundamentais nos processos de representação e elaboração das ideias sobre a morte. Conceitos como ressurreição, reencarnação, transmigração das almas, entre outros, além dos conceitos de salvação e condenação eternas, ligadas a arquétipos de céu e inferno, estão presentes em praticamente todas as religiões. A forma como cada religião constrói esses conceitos e os compartilha com seu corpo de fiéis determina, em grande parte, como cada indivíduo se relacionará com a morte, podendo trazer elementos positivos de consolo e esperança ou negativos como culpa e medo. 

Dados curiosos foram encontrados em diferentes pesquisas sobre o assunto. Algumas sociedades impregnadas de conceitos religiosos, nas quais existia a clara ideia de imortalidade, pareciam ter uma correlação direta com um aumento significativo no que tange ao temor pela morte, temor este que não era percebido em povos primitivos, que não tinham desenvolvido ideias muito elaboradas sobre a vida após a morte. Porém, Lester, após examinar dez estudos nesta área e verificar a existência de resultados discrepantes, postula que “a crença religiosa não afeta a intensidade do medo à morte, mas antes canaliza o medo para os problemas específicos que cada religião propõe”.  

Admite-se, portanto, de que uma espiritualidade ou fé norteadas por determinadas crenças religiosas que, por exemplo, enfatizem o pecado, o juízo e a condenação eternos, possam influenciar negativamente este indivíduo diante da morte e do morrer. Isso vai gerando nele sentimentos de culpa, temor, angústia e medo diante da morte. 

Salto na fé

Porém, é indiscutível que para indivíduos que possuem uma espiritualidade positiva, com a crença num Deus salvador e amoroso, a morte até pode passar a ser um ganho e não uma perda. Nesses casos, o indivíduo ultrapassa o limite humano da existência finita para ter um encontro com o infinito.  Porém, tal atitude não ocorreria com qualquer crente, mas somente com aqueles que fazem o salto na fé , ou seja, que depositam toda sua confiança no Ser Transcendente, mesmo que a sua  razão diga que é um absurdo fazer esse salto. Para o indivíduo de fé, morte é ganho, pois encontrará com a razão última do seu viver: a volta para o seu Criador, Preservador e Redentor, tal como propõem, por exemplo, as crenças cristãs.

IHU On-Line – Qual a função dos chamados rituais de passagem ou despedida dos mortos? Como o senhor observa esse momento em diferentes culturas?

Thomas Heimann – Vive-se hoje um paradoxo. Ao mesmo tempo que a sociedade moderna se prepara cada vez melhor para o enfrentamento material da morte através da contratação de seguros de vida e planos funerais, há uma crescente desumanização no tratamento com os enlutados. Isso é retratado não só pela falta de paciência social com as diferentes expressões do luto, como pelo apressamento e secularização dos ritos funerários. 

Antes tão importantes para o processo de elaboração do luto, os ritos fúnebres estão sendo esvaziados de sentido, perdendo sua função simbólica de ressignificação da experiência da morte. Paul e Grosser afirmam que “nada, na era moderna, veio substituir as formas tradicionais de luto. Nossas cerimônias abreviadas, muitas vezes escondidas com cuidado das crianças, não conferem uma compreensão empática nem proporcionam uma catarse para esta experiência”. 

A frieza, superficialidade e racionalidade tem tomado conta de muitos relacionamentos humanos, deixando cada vez menos espaço para a manifestação aberta e sincera dos sentimentos evocados pela morte. Num mundo hedonista o “chorar a morte de alguém” se tornou um incômodo social, quase uma doença contagiosa, que precisa ser evitada a qualquer custo. Como diz Ariès, a sociedade moderna “proíbe aos vivos de parecerem comovidos com a morte dos outros, não lhes permite nem chorar os que se vão, nem fingir chorá-los”. 

Armadura humana

O que talvez alguns não percebam é que, quanto mais se interdita o tema da morte no discurso do cotidiano, por temer o desconforto que o tema pode causar, tanto mais força e poder a morte acabará tendo sobre quem a reprime. A tentativa onipotente de negar a morte se configura numa forma equivocada de esconder a impotência, vulnerabilidade e fragilidade humanas. 

IHU On-Line – Como compreender o luto no processo de construção de uma experiência de morte? Em que medida a correria dos tempos contemporâneos abreviam essa experiência do luto?

Thomas Heimann – O luto é um sentimento natural decorrente de uma perda. Ele é imprescindível para o processo de superação de uma experiência de morte. Como dizem Walshe   e McGoldrick , “todas as perdas requerem um luto, que reconheça a desistência e transforme a experiência, para que possamos internalizar o que é essencial e seguir em frente” . A morte de uma pessoa significativa, portanto, gera um impacto que naturalmente causa desequilíbrio funcional no indivíduo e na família enlutada, exigindo uma reorganização individual e sistêmica que começa desde o dia da perda/morte e pode se estender por um longo prazo de tempo.

Importa ressaltar que o luto normal pode também vir acompanhado de uma depressão reativa ou exógena. No contexto da morte, ambos, luto e depressão, se tornam “um par quase indissociável”. Dessa forma, quanto maior o valor ou significado atribuído à pessoa que se perdeu, tanto maior a probabilidade desta perda vir acompanhada de um processo depressivo, que não será necessariamente patológico, mas uma reação natural à perda sofrida.

Com relação à abreviação do luto, é fato que vivemos um mundo neurótico, onde nos tornamos escravos do tempo. Aliados a um hedonismo — a cultura do prazer — está a neurose produtiva, que parece nos inibir para abandonarmos o nosso trabalho até mesmo para prestarmos solidariedade num velório ou enterro. Tudo é apressado, inclusive o tempo de vivenciar a dor da perda e do luto. Importa ressaltar que enlutados que inibem, abreviam, postergam ou negam seus sentimentos de dor e tristeza ficam mais fragilizados e têm uma grande probabilidade de desenvolver distúrbios de ordem psicossomática, que funcionam como válvula de escape das fortes emoções reprimidas. Para Stedeford , estes tipos de pesar ou luto podem ser fatores importantes para o surgimento de sintomas psiquiátricos, dentre os quais a depressão é a forma mais comum.  

IHU On-Line – O senhor já desenvolveu um trabalho junto a doentes terminais. Como essas pessoas e familiares elaboram a morte diante de um momento desses?

Thomas Heimann – Um diagnóstico de doença terminal, normalmente, é fonte geradora de muitas angústias existenciais, tanto para o paciente quanto para seus familiares. Há um estigma em torno da doença terminal, que leva muitas pessoas a vivenciarem esse diagnóstico como um atestado de óbito por antecipação. Cada paciente ou família atravessa esse “vale da sombra da morte” de modo singular, a partir de um conjunto de estratégias, ligadas às suas características de personalidade, suas crenças religiosas, seus valores pessoais, sua capacidade de resiliência, assim como às redes de apoio social (familiares, parentes, amigos, comunidade religiosa etc.). 

Porém, nesse processo de elaboração não há como deixar de citar as cinco fases que a renomada autora Elisabeth Kübler-Ross  identificou no tratamento com pacientes terminais (e que podem também ser percebidas em alguns familiares). 

São elas: a negação da doença e da possibilidade de morte iminente; a raiva contra tal diagnóstico, raiva que pode se voltar contra Deus, contra a equipe de saúde, contra sua família e contra si mesmo; a barganha, onde o indivíduo começa a negociar consigo mesmo e com Deus, dizendo que se tornará uma pessoa melhor se for curado; a depressão, momento crítico em que os pacientes se isolam num mundo interno e evidenciam sua impotência diante da sua finitude; e a aceitação, onde a realidade da doença e da morte são processadas de modo a não mais causar desespero, num atingimento de certa maturidade para o enfrentamento da morte. Esse modelo não é rígido nem sequencial, variando de indivíduo para indivíduo, mas retrata, de modo amplo e geral, como a morte é normalmente elaborada pelos pacientes terminais.

IHU On-Line – Qual o papel dos cuidadores, em casos de doentes em que é preconizado apenas o conforto, nessa constituição de uma narrativa de morte? Quais os efeitos de tantas experiências de morte diante desses 

Discursos de enfermeiras sobre morte e morrer: vontade ou verdade?

Discursos de enfermeras sobre la muerte y el morir: ¿Voluntad o verdad?

Nurses’ speeches on death and to die: truth or will?

Karen Schein da SilvaRubia Guimarães RibeiroMaria Henriqueta Luce KruseSOBRE OS AUTORES

Resumos

Propomos olhar para a morte e o morrer como uma construção social, histórica e cultural. Assim, nos aproximamos dos Estudos Culturais para conhecer discursos de enfermeiras sobre o tema. O corpus da pesquisa são artigos de dois periódicos nacionais de enfermagem. Nas análises utilizamos ferramentas propostas por Michel Foucault que possibilitaram constituir quatro categorias: a morte silenciada e ocultada; travando uma luta contra a morte; a morte em cena: multiplicidade de facetas e a morte e os cuidados paliativos: mudança de paradigma. O estudo destaca o modo como as publicações operam na produção dos saberes sobre a morte e o morrer subjetivando as enfermeiras.

Cuidados Paliativos; Enfermagem; Morte


Nos proponemos mirar la muerte y el morir como una construcción social, histórica y cultural. Así, nos aproximamos a los Estudios Culturales para conocer discursos de enfermeras sobre el tema. El corpus de la investigación son artículos de dos periódicos nacionales de enfermería. En nuestros análisis utilizamos herramientas propuestas por Michel Foucault que posibilitaran construir cuatro categorías: la muerte silenciada y ocultada; entablando una lucha contra la muerte; la muerte en escena: multiplicidad de facetas, y la muerte y los cuidados paliativos: cambio de paradigma. El estudio destaca el modo en que las publicaciones operan en la producción de los saberes sobre la muerte y el morir subjetivando a las enfermeras.

Cuidados paliativos; Enfermería; Muerte


We consider looking at the death and dying as a social, historical and cultural construction. Thus, in we approach them to the Cultural Studies to know nurses´ speeches on the subject. The research is periodic articles of two national ones of nursing. In the analyses we use tools proposals for Michel Foucault that they make possible to constitute four categories: the silenced and occulted death; stopping one it fights against the death; the death in scene: multiplicity of faces and the palliative death and cares: paradigm change. The study detaches the way as the publications operate in the production of knowing on the death and dying to them and subjectiving the nurses.

Palliative Cares; Nursing; Death


REVISÃO

Discursos de enfermeiras sobre morte e morrer: vontade ou verdade?

Nurses’ speeches on death and to die: truth or will?

Discursos de enfermeras sobre la muerte y el morir: ¿Voluntad o verdad?

Karen Schein da Silva; Rubia Guimarães Ribeiro; Maria Henriqueta Luce Kruse

Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Departamento de Enfermagem, Programa de Pós-Graduação em Enfermagem. Porto Alegre, RS

Correspondência

RESUMO

Propomos olhar para a morte e o morrer como uma construção social, histórica e cultural. Assim, nos aproximamos dos Estudos Culturais para conhecer discursos de enfermeiras sobre o tema. O corpus da pesquisa são artigos de dois periódicos nacionais de enfermagem. Nas análises utilizamos ferramentas propostas por Michel Foucault que possibilitaram constituir quatro categorias: a morte silenciada e ocultada; travando uma luta contra a morte; a morte em cena: multiplicidade de facetas e a morte e os cuidados paliativos: mudança de paradigma. O estudo destaca o modo como as publicações operam na produção dos saberes sobre a morte e o morrer subjetivando as enfermeiras.

Descritores: Cuidados Paliativos; Enfermagem; Morte.

ABSTRACT

We consider looking at the death and dying as a social, historical and cultural construction. Thus, in we approach them to the Cultural Studies to know nurses´ speeches on the subject. The research is periodic articles of two national ones of nursing. In the analyses we use tools proposals for Michel Foucault that they make possible to constitute four categories: the silenced and occulted death; stopping one it fights against the death; the death in scene: multiplicity of faces and the palliative death and cares: paradigm change. The study detaches the way as the publications operate in the production of knowing on the death and dying to them and subjectiving the nurses.

Descriptors: Palliative Cares; Nursing; Death.

RESUMEN

Nos proponemos mirar la muerte y el morir como una construcción social, histórica y cultural. Así, nos aproximamos a los Estudios Culturales para conocer discursos de enfermeras sobre el tema. El corpus de la investigación son artículos de dos periódicos nacionales de enfermería. En nuestros análisis utilizamos herramientas propuestas por Michel Foucault que posibilitaran construir cuatro categorías: la muerte silenciada y ocultada; entablando una lucha contra la muerte; la muerte en escena: multiplicidad de facetas, y la muerte y los cuidados paliativos: cambio de paradigma. El estudio destaca el modo en que las publicaciones operan en la producción de los saberes sobre la muerte y el morir subjetivando a las enfermeras.

Descriptores: Cuidados paliativos; Enfermería; Muerte.

INTRODUÇÃO

Falar sobre a morte e o morrer não é uma tarefa fácil, pois essas palavras acionam mecanismos cerebrais que afloram nossas referências de vida. Aceitar o fato de que nossa existência, bem como a das pessoas que amamos, tem um “prazo de validade” desconhecido, é árduo. Esse medo do desconhecido torna a morte uma questão difícil de ser discutida, enfrentada e pesquisada.

Qual a definição de morrer? Morrer pode ser definido como deixar de viver, falecer, acabar, cair no esquecimento!(1) Assim, uma forma de nos mantermos vivos após a morte é na memória daqueles que permaneceram vivos(2). Talvez, por isso, morrer seja sinônimo de cair no esquecimento, pois o ser humano existe pelas relações que mantém com a sociedade. A definição de morte carrega consigo alguns problemas, pois como outras definições, é circular. Por isso, conceituar, exatamente, o que é a morte não é possível, já que seu significado varia de acordo com a cultura(3). A cultura forma nossas identidades a partir de arranjos discursivos, submetendo-nos a relações de poder e saber que nos governam e constituem nossas práticas(4).

Ao ingressar na Universidade os acadêmicos de enfermagem enfrentam suas primeiras experiências relacionadas à morte nas aulas de Anatomia, que apesar de causarem desconforto, são pouco comentadas. Essas vivências, muitas vezes silenciadas, servem para extrair saberes dos cadáveres, tomados como objetos de estudo. Observamos que tanto as experiências nessas disciplinas básicas quanto àquelas no ambiente hospitalar são discutidas com “naturalidade”, pelos profissionais de saúde. Essa “naturalidade” seria uma forma de negação e banalização da morte para que os profissionais encontrem auxílio para continuar exercendo suas atividades(5). Assim, trabalhar essa temática e, em especial, as redes discursivas e os saberes que a enfermagem vem construindo às suas margens seria produtivo.

Dessa maneira, propomos realizar uma aproximação com o campo dos Estudos Culturais, especificamente, sua vertente pós-estruturalista para conhecer os discursos, que as enfermeiras têm veiculado nas publicações de enfermagem acerca da morte e do morrer. Procuramos compreender os jogos de poder desses discursos, bem como sua trama discursiva da qual não podemos escapar. Pretendemos ressaltar alguns enunciados acerca da morte e do morrer e a forma como subjetivam essas profissionais. Entendemos que os saberes são produzidos de acordo com regimes de verdade que obedecem a determinadas racionalidades históricas. Com isso, não temos a pretensão de desvendar “verdades” sobre a morte e o morrer, pois acreditamos que não existe nada por detrás dos textos que precise ser descoberto ou explicado, apenas, em alguns momentos, não temos as lentes para ver(6). Deste modo, nosso objetivo é entender como os discursos sobre a morte e o morrer circulam, nas publicações de enfermagem, bem como a forma como essa mídia opera na formação de sentidos produzindo determinadas “verdades” que subjetivam e objetivam as enfermeiras. Para tanto, nos apoiaremos na obra de Michel Foucault, especialmente nos seus entendimentos sobre discurso, poder, saber, sujeito e disciplina.

METODOLOGIA

Para delimitar os artigos do nosso corpus utilizamos o PeriEnf, uma ferramenta disponível na base de dados da biblioteca Wanda Horta, da Escola de Enfermagem, da Universidade de São Paulo. Os unitermos utilizados para a busca de artigos foram morte, morrer e cuidados paliativos. Optamos por fazer uma hipótese de leitura dos artigos publicados na Revista Brasileira de Enfermagem (REBEn) e na Revista Gaúcha de Enfermagem, por acreditar que elas, dentre outras, funcionam como dispositivos que produzem identidades e veiculam alguns dos discursos tidos como “verdadeiros” na profissão. Nosso corpus de análise foi constituído por quarenta e quatro artigos, sendo trinta e quatro da REBEn e dez da Revista Gaúcha de Enfermagem, publicados no período de 1937 a 2005. A coleta e análise dos dados foram feitas a partir da leitura interessada dos textos para avaliar “aquilo que podemos aproveitar e aquilo que podemos descartar, deixar passar ou deixar de lado”(7).

RESULTADOS E DISCUSSÃO

A leitura das publicações possibilitou a construção de quatro categorias discursivas: a morte silenciada e ocultada (1937-1979); travando uma luta contra a morte (1980-1989); a morte em cena: multiplicidade de facetas (1990-1999) e a morte e os cuidados paliativos: mudança de paradigma (2000-2005).

A Morte Silenciada e Ocultada (1937-1979)

Nas primeiras publicações da revista, a morte e o morrer não eram assuntos recorrentes e só passaram a integrar tal cenário após o final da Segunda Guerra Mundial. A visão social desse processo foi sendo modificada podendo ser considerado que existe um “recalcamento” da morte, à medida que a vida ficou mais longa e a morte tornou-se adiada.

De acordo com as publicações desta época, a enfermeira não pode se emocionar e deve desenvolver habilidades de comunicação para confortar familiares e pacientes, saber administrar analgesia, promover o conforto do moribundo e satisfazer a sede espiritual dos pacientes. Os textos têm um tom dogmático, de conotação religiosa e autoritária que manifestam a moral e a obediência, através de expressões como: “deve”, “tornar-se apta”, “dever”, “fazer”, “conhecer” que não deixam dúvidas quanto ao que deve ser feito e pretendem instaurar um modelo de enfermeira. A revista também demonstra uma preocupação com o corpo e seus cuidados, especialmente, após a morte, pois esses devem ser realizados com paciência e amor. É apontada a necessidade de entregá-lo para a família com aparência de conforto, indicando a higiene e o tamponamento dos orifícios como cuidados de enfermagem imprescindíveis. Além disso, as técnicas de preparo do corpo são apresentadas para que as enfermeiras incorporem um jeito de fazer enfermagem e cuidar dos corpos, sejam eles vivos ou mortos.

Nessa categoria discursiva as autoras utilizam formas verbais no imperativo com o intuito de incitar as enfermeiras a desenvolver as ações desejadas, pois esses verbos manifestam ordem e apelo a concretização da ação, o que nos possibilita observar o governamento dos corpos. Além disso, ao longo dos textos, é possível observar a influência dos preceitos de Florence Nightingale, nas referências à insalubridade do ambiente onde o moribundo se encontra, que deve ser combatida através da incidência da luz solar, boa ventilação, iluminação, limpeza e silêncio, pois como refere Foucault a medicina urbana se organizou, primeiramente, não em torno dos homens, mas das coisas(8). Os métodos de Florence, utilizavam como base a moral e o disciplinamento dos corpos das enfermeiras e objetivavam introduzir a ordem no hospital para transformá-lo num local de cura, acúmulo e transmissão de saber.

Travando uma Luta Contra a Morte (1980-1989)

Nesse período, os discursos originam-se, principalmente, das profissionais que trabalham nos Centros de Terapia Intensiva, pois com as novas tecnologias que invadem os hospitais a morte torna-se parte da rotina das enfermeiras que ali atuam entrando na ordem do seu discurso. Assim, acreditamos que “[…] as coisas podem ser ditas, mas não são ouvidas, não são escutadas quando ditas fora de uma ordem. Ou tu te colocas na ordem, ou tu não és escutada”(7). Tais efeitos podem ser observados no que Foucault chamou de ritual, que é a imposição de regras aos indivíduos que pretendem pronunciar determinados discursos, pois eles necessitam ser qualificados para fazê-lo(9). Assim, as enfermeiras, que atuam nesse contexto, têm a aprovação dessa “sociedade de discurso” para veicular, nas páginas das revistas, seus enunciados, já que são detentoras desse saber. Foucault entende como uma “sociedade de discurso” um grupo de indivíduos, limitado, dentre os quais, circula um determinado tipo de discursividade(9).

Os artigos apresentam a morte como algo natural, mas sugerem que o controle do homem sobre a natureza tem sido maior, o que possibilitaria o prolongamento da vida através de determinados comportamentos. Aqui podemos evidenciar a sugestão de que ao assumirmos determinadas práticas e nos disciplinarmos asseguraríamos uma vida mais longa. Assim, a morte, que antes era associada ao processo de viver, agora está associada à possibilidade de adoecer. No que se refere à equipe de saúde, a terminalidade do ser é considerada natural, porém relacionada a sentimentos de medo, impotência, tristeza, depressão, culpa, fracasso e falha. Além disso, ela aparece como algo negado, rejeitado e silenciado. Algumas publicações apontam que os sentimentos da equipe de enfermagem em relação ao cuidado de pessoas que estão morrendo, se refletiria na qualidade assistencial. Nos artigos, observamos referências a preocupação das enfermeiras com o cuidado do corpo e os equipamentos como forma de ocultar a morte, já que o trabalho com pacientes que estão morrendo é tido como desestabilizador emocional da equipe. A identificação com esses pacientes e seus familiares, as dificuldades de conversar sobre o diagnóstico e o prognóstico da doença, a insuficiência de treinamento e a falta de respaldo psicológico são, também, apontadas como fatores que prejudicam o processo assistencial. As revistas referem como atribuições da enfermeira: a observação constante, o atendimento imediato, a individualização e humanização da assistência, a boa comunicação verbal, a assistência farmacológica e fisiológica e o conforto à família e ao moribundo. Aqui podemos constatar mais uma espécie de disciplinamento que o hospital pretende produzir nos corpos dos profissionais que ali atuam, em especial, da enfermeira, pois essa profissional deve estar apta a desenvolver certas práticas que permitam uma normalização de suas atividades. Para isso, ela deve obedecer a um regime disciplinar que permita um controle das suas operações e assegure uma sujeição que a torne governável.

A morte em cena: multiplicidade de facetas (1990-1999)

Nesse período, a morte antes negada, ocultada e silenciada passa a ser objeto de estudo das enfermeiras e entra em cena assumindo um dos focos da atenção profissional.

Os profissionais de saúde continuam sendo questionados sobre suas percepções acerca do término da vida. Aqui são ressaltados os diferentes mecanismos de defesa, como a negação e a racionalização, utilizadas pela equipe de saúde para lidar com os pacientes em fase terminal. Nos artigos publicados o preparo do corpo também é objeto de preocupação, pois os profissionais sentem-se desconfortáveis ao realizar tal prática. A sugestão de um espaço terapêutico para a equipe de enfermagem emerge como necessidade, já que nesse local poderiam ser trabalhados sentimentos frente a perda o que aumentaria a satisfação no trabalho e a qualidade da assistência. A temática da morte emerge, ainda, relacionada à educação sugerindo a necessidade de incluí-la nos currículos de enfermagem para que não continue silenciada. Assim, os alunos de graduação manifestam a vontade de discutir questões relativas ao assunto para que o currículo, que é voltado para a cura e para a preservação da vida, os prepare para enfrentar, também, a morte. As enfermeiras apontam que esse conteúdo deveria ser incluído nos programas de educação em serviço o que melhoraria a qualidade da assistência e diminuiria a ansiedade, o medo e a dor da equipe de saúde.

Com o aumento da violência, as enfermeiras passam a preocupar-se com as mortes relacionadas às causas externas, já que tais acontecimentos seriam preveníveis e estão se tornando um problema de saúde pública. Assim, os conhecimentos epidemiológicos são incorporados a esse saber como forma de estabelecer uma relação entre mortalidade e violência. A terminalidade da vida aparece como um desafio que ameaça os indivíduos devido a falta de explicações científicas dos acontecimentos que a sucedem.

Nessa década, as enfermeiras discutem a transferência da morte do ambiente domiciliar, onde era um fenômeno coletivo, junto a amigos e parentes, para o contexto hospitalar, onde se torna solitária, acompanhada por estranhos, tornando-se um evento dramatizado. Entram em pauta as questões relacionadas a “morte social”, que é o isolamento do moribundo do convívio coletivo antes do acontecimento de sua morte biológica. Quanto ao ambiente hospitalar, algumas publicações defendem a flexibilização das normas disciplinares das instituições permitindo ao moribundo que permaneça com seus familiares até seus últimos dias.

Nos artigos das revistas, a figura do médico aparece, como alguém que lida com a morte de forma impessoal, fria e objetiva por meio de sentimentos ilusórios de soberania no controle das situações de vida-morte, já que esse profissional seria o detentor do poder de prolongar a vida. A figura da enfermeira emerge como a profissional que presta cuidados com fortes sentimentos e que deve os conter perante o paciente. É citado, também, que essas profissionais para se afastarem da morte valorizam procedimentos técnicos em detrimento da relação interpessoal. Entendemos que essas características atribuídas ao médico e a enfermeira carregam nos seus discursos questões de gênero. O médico, representado pelo sexo masculino, emerge como um ser sem fragilidades emocionais, poderoso e com superioridade em relação ao sexo feminino, ou seja, o ser que tem o “poder da cura” e que, portanto, desqualifica as práticas de cuidado(10). As enfermeiras, que organizaram suas práticas baseadas nas ordens sacras, desempenham atividades tidas, na cultura, como “naturalmente” femininas tais como: cuidado e nutrição, pois essa profissional está associada à figura da mulher-mãe, detentora de um saber tipicamente feminino de práticas de cuidados que se profissionaliza e estabelece relações de trabalho num universo médico-masculino(10,11).

Morte e Cuidados Paliativos: mudança de paradigma (2000- 2005)

As publicações das enfermeiras acerca da temática, a partir dos anos dois mil, aumentam bruscamente, e em cinco anos, o número de artigos publicados é quase igual ao das sete décadas anteriores. As novidades, nos periódicos de enfermagem, centram-se no surgimento dos cuidados paliativos, como saber científico e objeto de apropriação profissional. Assim, a morte e o morrer passam a ser vistos sob um “novo regime de discurso” que possibilitaria pensar na chegada do fim da vida como resultante de um processo “natural”(2). Inicia-se, assim, uma modificação nos enunciados e nas formas como eles se implicam e são regidos para serem aceitos como “verdades”(8).

É nesse princípio de século, que as autoras se ocupam mais intensamente de temáticas referentes ao deslocamento da morte do ambiente domiciliar para o hospitalar e apontam que o hospital é o local onde o indivíduo é despido de sua individualidade e identidade e onde ficam ocultados aspectos sórdidos da doença. Nas revistas, as autoras referem que a morte nos hospitais é negada, mecanizada e investida de tecnologias o que auxilia na ocultação das verdades sobre a doença. Assim, as atenções das publicações se voltam para uma nova modalidade de assistência: os cuidado paliativos. Estes surgem com a finalidade de incluir o moribundo permitindo que escolha o local da sua morte. Esses cuidados proporcionariam a família e ao doente a melhor qualidade de vida possível, um cuidado humanizado e uma sobrevida digna mantendo o doente, o menor tempo possível, longe dos seus lugares habituais e permitindo que ele viva com autonomia a própria morte. As publicações de enfermagem ressaltam, ainda, a importância do movimento hospice, que despertaria uma mudança de atitude frente a terminalidade da vida por meio de um serviço multiprofissional centrado na satisfação das necessidades de cuidados e conforto e na liberdade de visitas dos familiares. As enfermeiras ressaltam que essa filosofia pretende delegar um maior poder decisório à família e ao paciente ao contrário do que, usualmente, ocorre no ambiente hospitalar.

Os discursos produzidos acerca dos cuidados paliativos têm a pretensão de modificar as relações de poder envoltas nos cuidados ao paciente fora de possibilidades terapêuticas. Assim, o paciente moribundo, antes ignorado pelo saber médico e suas instituições, torna-se objeto de estudo e contribui para o surgimento de um outro saber, que busca a humanização do processo de morrer se contrapondo as tecnologias da medicina moderna(12). Os cuidados paliativos podem ser vistos como um saber que vem tentando tornar-se científico o que permite estabelecer certas práticas e desqualificar outras. Tal ruptura não trata de libertar os sujeitos da morte silenciada e ocultada, mas de colocá-la em uma nova ordem de discurso submetida a outros dispositivos de poder e saber(13).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Notamos que o saber sobre a morte, objeto de múltiplas discursividades, é permeado por dúvidas que a ciência moderna não consegue esclarecer já que observamos uma busca por “verdades”, e não encontramos autoras que discursassem sobre uma “morte científica”, ou seja, um discurso que carregue consigo as verdades tão comuns na ciência moderna. Nesse sentido, não queremos criticar a forma como esses saberes e poderes se articulam nem como nos tornamos sujeitos de tais discursos, já que não nos colocamos fora dessas práticas e não estamos isentas de suas ações. Aqui, propomos ensaiar uma das possíveis formas de entender como diferentes dispositivos se articulam num funcionamento social constituindo aquilo que somos, valorizando determinadas práticas e desqualificando outras.

Os humanos sempre desejaram encontrar uma explicação sobre porque se morre(2). Nessa perspectiva, a vontade de verdade, um procedimento de controle e delimitação do discurso, atravessa a civilização fazendo com que, cada um de nós, deseje ser o detentor de um discurso verdadeiro que tenha o aval da sociedade e da comunidade cientifica para que possa circular e carregar determinados poderes. Tal discurso guarda relação direta com a vontade de saber. Assim, vontade de saber e vontade de verdade (re)surgem e se (re)formulam, ao longo do tempo, de acordo com os modos pelos quais o saber é distribuído na sociedade e com os tipos de verdades que são valorizadas(9).

Como Foucault, pensamos que resgatar esses discursos nos auxilia a entender como enfermeiras e pacientes vão sendo constituídos e subjetivados tornando-se objetos-objetivo nessa rede de saber e poder que tem efeitos de verdade na assistência de enfermagem(8).

Correspondência:

Karen Schein da Silva

Rua Sofia Veloso 46/207

Bairro: Cidade Baixa

CEP: 90050-140. Porto Alegre, RS

Submissão: 22/11/2009

Aprovação: 03/12/2009

  • 1. PRIBERAN. Morrer. Dicionário Priberan da Língua Portuguesa. Lisboa: Universal; 2006. [citado 02 out 2006]. Disponível em: URL: http://www.priberam.pt/
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Artigos originais • Psicol. USP 14 (2) • 2003 •https://doi.org/10.1590/S0103-65642003000200008  COPIAR

Bioética nas questões da vida e da morte

Bioethics oncerning life and death

Bioéthique dans les questions de lavie et de la mort

Maria Julia KovácsSOBRE O AUTOR

Resumos

O presente trabalho discute questões fundamentais acerca do fim da vida e da aproximação da morte. Como pano de fundo, apresenta uma reflexão bioética sobre temas complexos, tais como: qualidade de vida, dignidade no processo de morrer e autonomia nas escolhas em relação à própria vida nos seus momentos finais. O avanço da tecnologia médica favoreceu a cura de doenças e o prolongamento da vida, porém, levada ao exagero, pode fazer com que o sofrimento seja adicionado ao que se propõe ser um benefício, estimulando a discussão sobre questões relativas ao direito de decidir sobre o momento da morte, eutanásia, suicídio assistido e distanásia. A clarificação e a apresentação destes tópicos, sob vários ângulos, são os objetivos deste trabalho. Propõe-se, ainda, a criação de espaços para a discussão multidisciplinar das questões apresentadas.

Bioética; Morte; Eutanásia; Cuidados paliativos


This article discusses fundamental questions concerning the end of life and the proximity of death. Based on the bioethical approach, issues such as quality of life, dignity in the process of dying, and autonomy of choices regarding life in its final moments are discussed. The improvement of medical technology favoured the cure of many diseases and the prolongation of life. When exaggerated, though, it may add suffering to what is supposed to be a benefit, stimulating discussion about complex issues such as: the right to decide about one’s own death, euthanasia, assisted suicide and dysthanasia. Clarification and presentation of these topics from various angles are objectives of this article. The possibility of multidisciplinary discussion of the issues presented is also suggested.

Bioethics; Death; Euthanasia; Palliative care


Ce travail discute des questions fondamentales entourant la fin de la vie et l’approche de la mort. En toile de fond on présente une réflexion bioéthique sur des thèmes complexes, tels que : qualité de vie, dignité dans l’acte de mourir et autonomie dans les choix en relation à sa propre vie dans ses moments finaux. L’avancement de la technologie médicale a favorisé la guérison de maladies et la prolongation de la vie qui, cependant, de manière exagérée, peut amener à ce que la souffrance s’additionne à ce qui est proposé comme un bénéfice, stimulant la discussion sur les questions relatives au droit de décider sur le moment de la mort, l’euthanasie, le suicide assisté et ? ? ?. La clarification la présentation de ces thèmes sous divers angles sont les objectifs de ce travail. On propose aussi la création d’espaces pour la discussion multidisciplinaire des questions présentées.

Bioéthique; Mort; Euthanasi; Soins palliatifs


ARTIGOS ORIGINAIS

Bioética nas questões da vida e da morte

Bioethics oncerning life and death

Bioéthique dans les questions de lavie et de la mort

Maria Julia Kovács

Instituto de Psicologia – USP

Coordenadora do Laboratório de Estudos sobre a Morte – Departamento de Psicologia da Aprendizagem, do Desenvolvimento e da Personalidade – Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Av. Mello Moraes, 1721, Cidade Universitária – 05508-900 – São Paulo, SP. Endereço eletrônico: mjkorag@usp.br

RESUMO

O presente trabalho discute questões fundamentais acerca do fim da vida e da aproximação da morte. Como pano de fundo, apresenta uma reflexão bioética sobre temas complexos, tais como: qualidade de vida, dignidade no processo de morrer e autonomia nas escolhas em relação à própria vida nos seus momentos finais. O avanço da tecnologia médica favoreceu a cura de doenças e o prolongamento da vida, porém, levada ao exagero, pode fazer com que o sofrimento seja adicionado ao que se propõe ser um benefício, estimulando a discussão sobre questões relativas ao direito de decidir sobre o momento da morte, eutanásia, suicídio assistido e distanásia. A clarificação e a apresentação destes tópicos, sob vários ângulos, são os objetivos deste trabalho. Propõe-se, ainda, a criação de espaços para a discussão multidisciplinar das questões apresentadas.

Descritores: Bioética. Morte. Eutanásia. Cuidados paliativos.

ABSTRACT

This article discusses fundamental questions concerning the end of life and the proximity of death. Based on the bioethical approach, issues such as quality of life, dignity in the process of dying, and autonomy of choices regarding life in its final moments are discussed. The improvement of medical technology favoured the cure of many diseases and the prolongation of life. When exaggerated, though, it may add suffering to what is supposed to be a benefit, stimulating discussion about complex issues such as: the right to decide about one’s own death, euthanasia, assisted suicide and dysthanasia. Clarification and presentation of these topics from various angles are objectives of this article. The possibility of multidisciplinary discussion of the issues presented is also suggested.

Index terms: Bioethics. Death. Euthanasia. Palliative care.

RÉSUMÉ

Ce travail discute des questions fondamentales entourant la fin de la vie et l’approche de la mort. En toile de fond on présente une réflexion bioéthique sur des thèmes complexes, tels que : qualité de vie, dignité dans l’acte de mourir et autonomie dans les choix en relation à sa propre vie dans ses moments finaux. L’avancement de la technologie médicale a favorisé la guérison de maladies et la prolongation de la vie qui, cependant, de manière exagérée, peut amener à ce que la souffrance s’additionne à ce qui est proposé comme un bénéfice, stimulant la discussion sur les questions relatives au droit de décider sur le moment de la mort, l’euthanasie, le suicide assisté et ? ? ?. La clarification la présentation de ces thèmes sous divers angles sont les objectifs de ce travail. On propose aussi la création d’espaces pour la discussion multidisciplinaire des questions présentées.

Mots clés: Bioéthique. Mort. Euthanasi. Soins palliatifs.

A morte no século XXI é vista como tabu, interdita, vergonhosa; por outro lado, o grande desenvolvimento da medicina permitiu a cura de várias doenças e um prolongamento da vida. Entretanto, este desenvolvimento pode levar a um impasse quando se trata de buscar a cura e salvar uma vida, com todo o empenho possível, num contexto de missão impossível: manter uma vida na qual a morte já está presente. Esta atitude de tentar preservar a vida a todo custo é responsável por um dos maiores temores do ser humano na atualidade, que é o de ter a sua vida mantida às custas de muito sofrimento, solitário numa UTI, ou quarto de hospital, tendo por companhia apenas tubos e máquinas.

É neste contexto que surge a questão: é possível escolher a forma de morrer? Observa-se o desenvolvimento de um movimento que busca a dignidade no processo de morrer, que não é o apressamento da morte, a eutanásia, nem o prolongamento do processo de morrer com intenso sofrimento, a distanásia.

O problema é que existe uma grande confusão entre estes termos, e o seu esclarecimento se faz necessário. Assim, a bioética do século XXI deve retomá-los, trazendo à tona a necessidade da discussão destas questões com base em alguns princípios que são muito importantes: beneficência, dignidade, competência e autonomia. O movimento dos cuidados paliativos1 trouxe de volta, no século XX, a possibilidade de rehumanização do morrer, opondo-se à idéia da morte como o inimigo a ser combatido a todo custo. Ou seja, a morte é vista como parte do processo da vida e, no adoecimento, os tratamentos devem visar à qualidade dessa vida e o bem estar da pessoa, mesmo quando a cura não é possível; mas, frente a essa impossibilidade, nem sempre o prolongamento da vida é o melhor, e não se está falando de eutanásia, como muitos crêem.

Entre as grandes questões sobre o fim da vida, destaco as seguintes:

  • Tem a pessoa o direito de decidir sobre sua própria morte, buscando dignidade?
  • Pode-se planejar a própria morte?
  • Os profissionais de saúde, que têm o dever de cuidar das necessidades dos pacientes, podem atender um pedido para morrer?
  • Podem ser interrompidos tratamentos que têm como objetivo apenas o prolongamento da vida, sem garantia da qualidade da mesma?

Whiting (1995-1996) aponta caminhos para algumas respostas a estas questões. Sobre o encerramento da própria vida, a lei não tem o que dizer, uma vez que a decisão é da pessoa e está vinculada a determinantes pessoais e religiosos. Se pensamos em assistência no processo de morrer, aí sim, trata-se de questão legal, porque está envolvida uma proposta homicida, mesmo que por piedade.

Todos esses aspectos tornam-se ainda mais complexos quando envolvem uma pessoa inconsciente ou em coma. Em alguns países, existe a possibilidade de se escrever um testamento, ainda em vida, feito de próprio punho, quando ainda se está saudável, ou no início do processo de adoecimento, com referências ao desejo de não ser mantido vivo sob certas circunstâncias. O problema é saber se o testamento, feito quando a pessoa estava saudável, ainda se mantém válido quando adoece, pois, como aponta Hennezel (2001), crises, como é o processo do adoecimento, podem levar a uma adaptação, após o tempo necessário para elaboração das perdas.

No caso de crianças, há também questões complexas envolvidas: será que elas podem expressar o seu desejo de viver ou de morrer, têm competência para decidir? E, se não puderem, quem pode decidir por elas, seus pais ou um tutor? Tenho certeza que ainda não há consenso sobre estas questões.

A bioética – algumas considerações de ordem geral

Segundo Segre e Cohen (1995), a bioética é o ramo da ética que enfoca questões relativas à vida e à morte, propondo discussões sobre alguns temas, entre os quais: prolongamento da vida, morrer com dignidade, eutanásia e suicídio assistido.

Segundo os autores, o termo bioética foi apresentado, pela primeira vez, pelo oncologista Potter (1971), na sua obra Bioethics – Bridge to the Future. Nesta obra, propõe uma ponte no trabalho de cientistas e humanistas. Nos primeiros trabalhos na área, havia grande preocupação com valores humanos, cabendo à teologia as linhas mestras. Num segundo momento, a filosofia tomou a frente, numa vertente de secularização. Entre 1985 e 2000, a bioética foi adquirindo um caráter multidisciplinar, envolvendo ciências sociais, direito, antropologia e psicologia, além da teologia. Nas ciências da saúde, surge a preocupação com as condutas médicas, que culminou, em 1962, no que se chamou de Comitê de Deus, ou seja, a escolha de pacientes que serão submetidos a determinados tratamentos em detrimento de outros (Pessini & Barchifontaine, 1994). Posteriormente, passaram a ter grande importância a relação médico/paciente, os aspectos relativos à auto-determinação, a autonomia e os direitos humanos.

Na terceira fase das discussões da bioética começam a ter lugar as discussões envolvendo a macropolítica da saúde, a economia e a questão dos excluídos (Anjos, 2002).

As atrocidades cometidas pelo nazismo, na Segunda Guerra Mundial, trazem ênfase à discussão de pesquisas envolvendo seres humanos, as intenções e o sofrimento causado às pessoas, mesmo que em nome da ciência, culminando com o código de Nüremberg, no qual se postula que nenhuma pesquisa possa envolver seres humanos, sem que haja sua autorização explícita. Atualmente, os comitês de ética zelam por estas condições em várias instituições.

Houve, também, um desenvolvimento da bioética vinculada aos seguintes princípios: autonomia, beneficência e justiça, o que Pessini e Barchifontaine (1994) denominaram de trindade bioética.

A autonomia se refere ao respeito à vontade e ao direito de auto-governar-se, favorecendo que a pessoa possa participar ativamente dos cuidados à sua vida. Segundo Fabbro (1999), só se pode falar em exercício de autonomia quando há compartilhamento de conhecimento e informação da equipe de saúde para o paciente, oferecendo dados importantes, em linguagem acessível, para que qualquer decisão possa ser tomada, garantindo-se a competência de todos os membros envolvidos na situação.

Um aspecto importante a ser apontado, quando nos referimos ao princípio da autonomia, é a constatação de que nos cuidados aos doentes, muitas vezes, ocorre uma relação paternalista, assimétrica, entre eles e os profissionais de saúde: em uma das polaridades está o poder da equipe de saúde e, na outra, a submissão do paciente. Quando se favorece a autonomia, ocorre uma relação simétrica entre profissionais e pacientes, sendo que estes últimos participam de maneira ativa das decisões que envolvem seu tratamento, bem como sua interrupção. Enfim, como já apontei, para que a autonomia possa ser exercida é fundamental que o paciente receba as informações necessárias, que o instrumentalizem e o habilitem para a tomada de decisões, diante das opções existentes em cada situação. Cabe lembrar que, em muitos casos, estamos diante de uma situação conflitiva, na qual várias opções devem ser consideradas – aliás, este é o fundamento das questões éticas. Como aponta Segre (1999), faz-se necessária uma hierarquização desses conflitos, para que se possa buscar uma resposta que atenda às necessidades daqueles que estão sob nossos cuidados.

Considerando as questões sobre o fim da vida, podemos observar que existe uma pluralidade de respostas possíveis e que vários pontos de vista devem ser considerados, não se tratando de um relativismo sem limites.

Um outro ponto que provoca discussões importantes no ramo da bioética é o desenvolvimento da tecnologia médica, o prolongamento da vida, às vezes sem limite, e o dilema entre a sacralidade da vida e uma preocupação com a sua qualidade. Se é a vida, como valor absoluto, que deve ser mantida a todo custo, nada poderá ser feito para a sua abreviação, e deve se evitar a morte a todo custo. Foi o desenvolvimento da tecnologia que favoreceu a manutenção e prolongamento da vida, e então pergunta-se até quando investir em tratamentos e quando interrompê-los. Estes são os dilemas relativos à eutanásia, à distanásia, ao suicídio assistido e ao morrer com dignidade.

Na década de 1960, com o advento dos transplantes, começaram a ser questionados os limites da vida, mantida com máquinas. O critério de morte deixa de ser a parada cárdio-respiratória e passa a ser a morte encefálica.

As situações de vida e morte envolvem vários personagens: pacientes, familiares e equipe de saúde, além da instituição hospitalar. Numa relação simétrica, qualquer decisão envolverá todos estes personagens, arrolando-se os prós e os contras de cada uma das opções. Entretanto, na maior parte das instituições hospitalares observa-se a posição paternalista, na qual, baseada no princípio da beneficência, de se fazer o bem e evitar o sofrimento adicional, a equipe age unilateralmente, justificando-se com a idéia de que sabe o que é melhor para o paciente; ou seja, considera que este não está preparado para saber o que é o melhor para si. Assim, a equipe de saúde é a depositária do saber.

Toda esta discussão se torna fundamental quando está em jogo a busca da dignidade, não só durante toda a vida, mas também com a aproximação da morte, envolvendo a valorização das necessidades e a diminuição do sofrimento.

O princípio da justiça envolve a propriedade natural das coisas, a liberdade contratual, a igualdade social e o bem-estar coletivo entendido como eqüidade: cada pessoa deve ter suas necessidades atendidas, reconhecendo-se as diferenças e as singularidades, como apontam Fortes (2002) e Garrafa e Porto (2002).

Segundo Pessini e Barchifontaine (1994), a pessoa é o fundamento de toda a reflexão da bioética, considerando-se a alteridade, isto é, a sua relação com outras pessoas. Retomamos a questão da vida, e da sua manutenção a todo custo. Quando se leva em conta apenas a sacralidade, o que importa é a vida, sem entrar no mérito de sua qualidade. Quando a discussão envolve a qualidade do viver, então, não são somente os parâmetros vitais que estão em jogo, mas sim que não haja sofrimento. O que é fundamental não é a extensão da vida e sim sua qualidade. Na verdade, estas dimensões não são mutuamente exclusivas e contrárias, porém, complementares. Engelhardt (1998) discute a questão da vida biológica e pessoal e a partir destes pontos de vista, surgem as questões: quando deve ser definido o início da vida; no momento da concepção, na sua evolução, ou na possibilidade de estabelecer relações? E quando termina a vida; na perda da consciência, na impossibilidade de cuidar de si, quando apenas aparelhos mantêm a vida, ou quando o último parâmetro biológico deixa de se manifestar? São questões que demandam muita reflexão e discussão.

Anjos (2002) aponta a importância de se pensar numa bioética para o terceiro mundo, na qual a justiça para todos é uma questão importante, uma vocação para se pensar naqueles que são os excluídos, os pobres, para quem não se discute a eutanásia voluntária, e sim, a involuntária. Trata-se de um erro conceitual, são aqueles que morrem antes do tempo, não pela sua vontade, mas pela falta de atendimento adequado e pelas condições subhumanas de vida. É neste contexto que a noção de eqüidade é significativa, ou seja, é fundamental atender um número maior de pessoas nas suas necessidades, tanto na alocação de recursos, quanto na sua qualidade e magnitude. Neste quadro, a teologia tem a sua grande força: a justiça, a solidariedade e a fé.

Garrafa e Porto (2002) trazem a seguinte questão: existe uma ética universal? Se a resposta for positiva, encontram-se, aí, obstáculos intransponíveis, pois uma gama imensa de valores está presente nas grandes questões que atingem a humanidade. Por outro lado, o perigo de não se ter como base alguns valores fundamentais é de se chegar a um relativismo que, em algumas situações, se torna intolerável.

Passo, agora, a apresentar quatro situações específicas, de meu interesse, para as quais a bioética tem voltado sua atenção: pedidos para morrer, eutanásia, suicídio assistido e distanásia. Na seqüência, serão abordados os cuidados paliativos, como opção às três últimas situações nomeadas, e algumas críticas possíveis a eles.

Ao introduzir o assunto, quero ressaltar a importância da clarificação dos termos usados, para que as discussões que envolvem temas tão polêmicos não sejam prejudicadas por diferentes entendimentos. Schramm (2002) aponta que não se trata, apenas, de uma melhor definição dos termos, mas também deve ser observado qual é o posicionamento tomado em cada questão.

Segundo este autor, só uma definição de morte não esclarece este assunto; é preciso entrar no mérito existencial e filosófico, isto é, o que significa fim da vida e por que se quer planejá-lo. A discussão é se existe ou não o direito de determinar o fim da própria vida. O autor cita Frankl e as suas obras que apontam para a questão do sentido da vida, para a percepção do vazio existencial e para o direito de exercer a liberdade da maneira mais radical, ou seja, decidindo sobre a própria vida.

O autor afirma que o temor, em relação à legalização da eutanásia, se relaciona a um suposto aumento do poder dos médicos na determinação da morte. Por outro lado, os que a defendem retomam o princípio da autonomia e a priorização do que é qualidade de vida, apontando que na sociedade atual se observa uma desapropriação da morte. Será que o paciente tem direito a pedir para morrer? O direito à auto-determinação é que poderia justificar uma discussão mais aprofundada sobre a questão da eutanásia.

Retomando a questão de esclarecimento, Wooddell e Kaplan (1997-1998) apontam algumas distinções que devem ser consideradas:

Eutanásia ativa: ação que causa ou acelera a morte.

Eutanásia passiva: a retirada dos procedimentos que prolongam a vida. Esta modalidade, na atualidade, não é mais considerada como eutanásia (grifo meu), desde que diante de um caso irreversível, sem possibilidade de cura e quando o tratamento causa sofrimento adicional. A interrupção dos tratamentos, neste caso, recebe o nome, de ortotanásia, ou seja, a morte na hora certa – distinção ainda não aceita por muitos profissionais. Segundo Maurice Abiven, diretor da Unidade de Serviços Paliativos do Hospital Universitário de Paris, citado por Zaidhaft (1990, p. 120), não há eutanásia passiva, sendo esta uma expressão inadequada. Há, simplesmente, respeito à natureza.

Eutanásia voluntária: a ação que causa a morte quando há pedido explícito do paciente.

Eutanásia involuntária: ação que leva à morte, sem consentimento explícito do paciente. Neste caso, não deveria mais ser chamada de eutanásia, e sim, de homicídio; com o atenuante de que é executada para aliviar o sofrimento, possivelmente dos cuidadores, familiares ou profissionais.

Suicídio: ação que o sujeito faz contra si próprio, e que resulta em morte.

Suicídio assistido: quando há ajuda para a realização do suicídio, a pedido do paciente. Esta situação é considerada crime, do ponto de vista legal.

Suicídio passivo: deixar de fazer alguma ação, podendo resultar em morte; por exemplo, não tomar medicação. Esta é uma situação muito difícil de ser comprovada. Falar em suicídio sempre implica na necessidade de uma cuidadosa investigação, já que vários fatores podem estar envolvidos nesta ação.

Há, ainda, outros termos que são usados quando se fala de morrer com dignidade, envolvendo temas como eutanásia e suicídio assistido:

Duplo efeito (double effect): quando uma ação de cuidados é realizada e acaba conduzindo, como efeito secundário, ao óbito. Um exemplo desta situação é a analgesia e sedação, aplicada em pacientes gravemente enfermos, que têm como objetivo principal aliviar os sintomas e promover qualidade de vida, e não provocar a morte, embora esta possa ocorrer.

Testamento em vida, vontade em vida (living will): o paciente escreve o seu testamento em vida, referindo-se ao que gostaria que acontecesse, quando não mais pudesse fazer escolhas e participar de seu tratamento. Este procedimento é muito utilizado quando se trata de um pedido de não ressuscitamento. É um documento legal nos Estados Unidos da América.

Ladeira escorregadia (Slippery slope): trata-se de uma zona de conflito e polêmica, na qual certa decisão pode ter efeitos sobre os quais não se havia pensado anteriormente. Por exemplo: a legalização da eutanásia poderá colocar em risco de morte antecipada (embora este não seja o objetivo explícito) populações vulneráveis, como: idosos, pobres e doentes mentais.

Poder durável de um advogado para cuidados de saúde (Durable powers of attorney for health care): é documento por meio do qual a pessoa nomeia outra pessoa para tomar decisões sobre os cuidados de sua saúde, se, e quando ela própria se tornar incapaz de fazê-lo, permitindo, assim, que o médico obtenha de alguém o consentimento informado para algum procedimento ou para interrupção de tratamento.

Assim considerados os diversos graus de ação do paciente, pode-se analisar o grau de envolvimento da equipe médica em questões, tais como conhecimento, cumplicidade e uma ação mais direta da equipe, com conhecimento ou não do paciente.

Estas modalidades não são estanques, mas propõem uma forma de compreensão dos movimentos dos pacientes e médicos na preservação da vida, bem como na possibilidade de induzir a morte.

Pedidos para morrer

Muitas pessoas, em fase final da doença, pedem para morrer. O que estaria na base destes pedidos, uma dor intolerável ou depressão?

Chochinov et al. (1995) estudaram 200 casos de pacientes em estágio terminal e verificaram que apenas 8,5% destes pediram que se apressasse a morte e, entre estes, observou-se uma história de depressão e abandono por parte da família.

Vários pedem para morrer porque consideram sua vida insuportável, sentem-se como sobrecarga para a família. Estão internados em hospitais, solitários, abandonados e impotentes diante da vida e da morte. Muitos se referem a um sentimento de falta de controle. Em outros casos, o pedido para morrer está relacionado com o fato de não estarem recebendo cuidados adequados, tendo sua dor subtratada.

Markson (1995) alerta para que não se considerem todos os pedidos para morrer como irracionais, delirantes, ou vindos de uma profunda depressão. Assim, os pedidos nunca devem ser avaliados como questões simples; ao contrário, devem ser escutados e contextualizados, e jamais deveriam receber respostas rápidas e impensadas. Sem dúvida, valores importantes são questionados nestes casos, inseridos numa cultura que sacraliza a vida e vê a morte como um inimigo a ser combatido a todo custo.

Por outro lado, sabe-se que muitas pessoas não agüentam mais a vida, mas nada dizem sobre isso. Não imaginam poder falar com seus médicos sobre o assunto, nem sequer se acham no direito de pedir informações sobre seu estado de saúde e prognóstico de suas doenças.

Mishara (1999) observou que a dor e o sofrimento estão na base de inúmeros pedidos para apressar a morte. Também foi encontrada, pelo autor, forte relação com depressão clínica. Observa, ainda, que está havendo maior incidência de pedidos de eutanásia, suicídio e comportamentos auto-destrutivos em pessoas com os seguintes problemas psicossociais: depressão, perdas significativas, falta de apoio social e dificuldades em dar conta da vida. Mais recentemente, tem-se observado uma alta relação entre suicídio e demência. Muitas pessoas pedem para morrer, ou cometem o suicídio, quando se vêem diante da possibilidade de dependência, aliada a um sentimento de perda de dignidade. No caso do câncer e da Aids, os tratamentos podem causar tanto mal estar e desespero que preferem morrer. Segundo Mishara, há maior tolerância da sociedade com os pedidos de eutanásia, quando são manifestos por pacientes gravemente enfermos, mesmo que nem sempre a morte esteja tão próxima ou que não haja nada mais que possa ser feito.

É necessário saber se a pessoa quer, de fato, morrer, observando-se suas atitudes, pedidos e ações. Chochinov et al. (1995), na pesquisa já mencionada, verificaram que 44,5% dos pacientes falaram que queriam que a morte chegasse logo, mas só 8,5% fizeram um pedido mais explícito e, destes, 60% tinham um quadro de depressão clínica. Entretanto, muitos pacientes em fase terminal se queixaram de solidão, da falta de presença da família e de dor.

Muitos membros da equipe de saúde não sabem como manejar a dor e outros sintomas incapacitantes, e acabam se afastando destes pacientes. Hennezel (2001) considera que 90% dos pedidos de eutanásia desapareceriam se os doentes se sentissem menos sós e com menos dor. Para ela é importante considerar a legitimidade dos pedidos, ou seja, os pacientes poderem falar que estão cansados da vida, que não agüentam mais o sofrimento. Mas ao pedirem que se finalizem os seus sofrimentos, a autora se pergunta: será que para nos apropriarmos de nossa própria morte, é preciso pedir para que alguém nos mate?

Hennezel, explorando o tema, lança um outro olhar para a questão, ao afirmar que, quando o doente pede para morrer, pede também que se olhe para ele, para o seu sofrimento, para que se sinta legitimado na sua dor. Procura também aprofundar a questão, discutindo a diferença entre desejo e necessidade. Para ela, a necessidade é o que está premente, acessível à consciência e demanda uma resolução imediata, como, por exemplo, o alívio da dor. O desejo não é tão claro à consciência. Uma grande dor para o paciente, sensível e atento, é pensar que o enterraram antes do tempo, prevendo sua morte. Nesta situação, antecipa-se, pedindo para morrer antes que o matem. E a autora afirma que, tanto no pedido para morrer, como na eutanásia, podem estar embutidos uma agressividade inconsciente, uma desilusão de ambos os lados, claros indícios de impotência.

E será que o pedido do paciente para morrer não poderia ser também uma resposta ao olhar de impotência do profissional, que não sabe o que fazer na situação? Como já referi, o pedido para morrer pode ser visto como um pedido de atenção, uma afirmação de que se é humano, que ainda se está vivo. Às vezes, o paciente está tão deformado que não se sente mais vivo, nem é mais visto assim. Não pede obrigatoriamente que se faça algo, mas para que seja visto e ouvido. Não podemos nos esquecer da importância dos últimos momentos de vida para o doente e para os seus familiares.

É importante ressaltar: será que o desejo de morrer está sempre relacionado com sofrimento e depressão? Será que, em alguns casos, não é a constatação de que a vida chegou ao fim? A diferença é que, no primeiro caso, os pacientes exalam tristeza e, no segundo, serenidade.

Há pessoas que não conseguem morrer e pedem ajuda para soltar-se. Morrer pode ser tão tensionante, que não conseguem se libertar. Permitir morrer não é igual a matar. Às vezes, o medo de morrer é tão grande que há enorme necessidade de paz, segurança e, à semelhança do parto, é a busca de um contato que não retém e sim liberta. Como o assunto é, certamente, polêmico e não há consenso entre os profissionais envolvidos, aqui estão apenas sendo alinhavadas algumas considerações.

Outro assunto de interessante abordagem é o do testamento em vida (prática que tem aumentado significativamente), no qual é pedido o não ressuscitamento em caso de parada cardíaca – também uma forma de pedir para morrer. É bastante usual, principalmente nos Estados Unidos, segundo Whiting (1995-1996). No Brasil, ainda não temos esta prática estabelecida.

Os testamentos em vida envolvem a recusa de certos tratamentos médicos que têm como objetivo o prolongamento da vida; são feitos pelos pacientes quando conscientes, e deixados com outras pessoas para o momento em que for necessário, seja em caso de inconsciência, ou de qualquer outra impossibilidade de decisão. Mesmo que este documento represente a vontade da pessoa, respeitando-se o princípio da autonomia, é gerador de muita ambivalência, quando se considera a possibilidade de eventual mudança de opinião durante o curso da doença.

Nos EUA, se não tiver sido feito o testamento em vida, os pacientes passarão por procedimentos de ressuscitamento, em caso de parada cardíaca. Segundo Stephen e Grady (1992), um terço destes procedimentos ocorreu contra a vontade dos pacientes, pelo fato de não haver pedido explícito para que não fosse realizado.

Considero que o testamento em vida pode ser instrumento facilitador, quando se trata de tomar uma decisão sobre o que fazer em situação de conflito. O paciente pode, então, clarificar os seus desejos, reduzindo a possibilidade de serem realizados tratamentos contra sua vontade; facilita, também, a situação para a família, quando esta não teve a oportunidade de conversar com ele a respeito deste assunto, e favorece o princípio de autonomia do paciente.

Aliás, os familiares são ambivalentes quando se trata do paciente, mas muitos, quando pensam o que gostariam para si, relatam que prefeririam terminar logo com tudo.

Hennezel (2001) aponta que muitos familiares acabam pedindo que se apresse a morte do paciente, porque não agüentam ver seu sofrimento; o fim da vida pode ser muito assustador, o paciente pode se tornar um estranho para si mesmo, e para aqueles que lhe são mais próximos. Por outro lado, quando o período final da doença é prolongado, os próprios familiares acabam se esgotando por causa das semanas de vigília ao pé do leito, estimulando os pedidos para o abreviamento da situação.

A equipe de saúde também não sabe o que fazer quando surge o pedido de morte pelo paciente. A tendência mais comum é a de sempre preservar a vida; entretanto, o aumento da expectativa de vida e do tempo de doença, começa a criar pontos de conflito sobre até que ponto é legítimo o prolongamento da vida, às custas de muito sofrimento. Os médicos não se sentem preparados para conversar sobre o assunto e não conseguem lidar com o fato de que o pedido para morrer possa ter uma motivação ligada a um sofrimento intolerável – neste caso, o pedido para morrer seria, basicamente, para alívio. Pesquisa de Chochinov et al. (1995) indicou que 54% dos médicos entrevistados acham que o pedido é razoável, quando levam em conta o grau de sofrimento envolvido; entretanto, quando questionados sobre a possibilidade de, eles mesmos, realizarem o ato de apressar a morte, esta porcentagem cai para 33%.

Pesquisas mostraram que 40% dos médicos entrevistados já receberam, de seus pacientes, pedidos para morrer. Este número de pedidos é significativo e demonstra como o fim de vida pode ser muito penoso. Entretanto, a maioria destes pedidos não resultarou em sua aceitação. Quando os médicos falam da consumação do ato, o método mais utilizado é o dos coquetéis que misturam calmante, anestésico e veneno, e que permitem uma morte tranqüila. A fronteira entre sedação e eutanásia é muito tênue; o que diferencia as duas é a intenção, nem sempre muito clara. Infelizmente, a diferença entre palavras e intenções nem sempre pode ser explicitada.

Hennezel (2001) aponta para a importância de o profissional poder se referir à sua impotência e vulnerabilidade diante do paciente, principalmente quando os tratamentos não estão surtindo os efeitos esperados, mas não significa que se tenha de atender o pedido de apressamento da morte. Confirmando, não prolongar a vida com tratamentos invasivos, permitir morrer, não é igual a matar.

Aponta, também, que vários profissionais não suportam ver o sofrimento de seus pacientes, acabando por atender seu pedido de morte, transformando-se nos anjos da morte, também conhecidos como eutanatólogos. Alguns atos de apressamento da morte podem ser fruto da solidão dos profissionais, que se sentem sem apoio nas tarefas de cuidar dos pacientes em grande sofrimento. Esta solidão pode ocorrer, também, em hospitais ultra movimentados, nos quais os corredores fervem com pessoas correndo de um lado para o outro e, talvez, por isto mesmo sejam chamados de “corredores”. Nesta correria ninguém se enxerga e, muitas vezes, nem se sabe o que está acontecendo na sala ao lado.

Em vários hospitais, o fim de vida é pleno de sofrimento, com muitas dores e sem calor humano; pacientes, familiares e enfermeiros abandonados à própria sorte, não sabendo o que fazer, e os últimos tendo mesmo de realizar procedimentos com os quais não concordam.

O que é mais complicado nos hospitais não é a morte em si, mas os dramas até a morte, a agonia. É aí que surge a tentação de aliviar o sofrimento, induzindo a morte. Mishara (1999) observa que houve um aumento de 35% nos pedidos de eutanásia, de 1990 a 1995. Acredito que este fato esteja diretamente ligado às intervenções médicas, que provocam um prolongamento da vida, sem preocupação equivalente com a qualidade da mesma.

Eutanásia

Abordo, agora, como complemento ao anteriormente dito, um dos tema mais polêmicos da bioética nos séculos XX e XXI: a eutanásia, originalmente definida como a boa morte; no grego eu – bom e thanatos – morte. Nos dias de hoje, a isto acrescentou-se mais um sentido: o da indução, ou seja, um apressamento do processo de morrer.

Só se pode falar em eutanásia se houver um pedido voluntário e explícito do paciente – se este não ocorrer, trata-se de assassinato, mesmo que tenha abrandamento pelo seu caráter piedoso. E é só neste sentido que difere de um homicídio, que ocorre à revelia de qualquer pedido da pessoa.

Horta (1999) traça um histórico sobre eutanásia, apontando que, na sociedade greco-romana, o direito de morrer era reconhecido, como também era permitido que os doentes desesperados pudessem pôr fim a uma vida de sofrimentos; este direito foi interrompido quando a vida passou a ser considerada um dom de Deus. Em 1605, Francis Bacon apontou que a eutanásia passava a ser um assunto médico, tendo a conotação de aliviar o sofrimento de doentes terminais; assim, quando fosse necessário, poder-se-ia apressar a morte. Será que o mais nobre propósito da medicina não seria o de proporcionar uma morte livre da dor e do sofrimento? Neste ponto de vista, a eutanásia e o suicídio assistido podem ser vistos como mortes misericordiosas.

França (1999) discute a polêmica questão do direito de matar e do direito de morrer. Na Grécia, os espartanos jogavam do alto de um monte os recém-nascidos defeituosos e os idosos; em Atenas, era o Senado que tinha o poder absoluto de decidir sobre a eliminação dos idosos e dos incuráveis. Em Roma, César autorizava o término da agonia de gladiadores feridos, com um movimento dos dedos. Na Índia, as pessoas com doenças incuráveis eram jogadas no Ganges e sua boca e narinas eram vedadas com a lama sagrada. Na Idade Média, os guerreiros feridos mortalmente tinham direito ao punhal, reconhecendo-se seu uso como ato misericordioso, para evitar o sofrimento prolongado. Assim, a eutanásia era admitida na Antigüidade, tanto para eliminação dos imperfeitos, quanto como forma de aliviar o sofrimento, ficando estes dois sentidos misturados durante muito tempo. Já nas práticas de eugenia, no nazismo, há prevalência do primeiro.

Lépargneur (1999) traça a evolução do conceito de eutanásia no século XX. Na Inglaterra, Millard propôs uma legislação sobre eutanásia, em 1931, que deu origem à Voluntary Euthanasy Society. O pastor Charles Potter fundou, em 1938, a Euthanasy Society of America. Mais para o final do século, em virtude das novas técnicas para prolongamento da vida, a que foram submetidos Karen Ann Quinlan, Marechal Tito e o General Franco, cientistas premiados com o Nobel se manifestaram a favor de uma eutanásia beneficiente, para terminar o prolongamento de uma situação que não mais era vida. Atualmente, estas situações já não seriam configuradas como eutanásia, e sim, como medidas de bom senso.

A Declaração sobre Eutanásia, assinada pela Igreja Católica em 1980, entende a eutanásia como uma ação ou omissão de ação que provoca a morte, com o intuito de eliminar a dor e o sofrimento.

Um outro ponto polêmico é o da eutanásia involuntária, ou homicídio, como afirmaram Wooddell e Kaplan (1997-1998), na qual a sociedade procura dar fim à vida da pessoa, por causa do seu sofrimento ou, o que é mais grave, por razões escusas, tais como: economia, disponibilidade de leitos ou eugenia.

Hennezel (2001) inclui uma questão importante para a nossa reflexão, que é a morte roubada, o apressamento da morte sem que haja o pedido explícito do paciente, porque não se agüenta ver o seu sofrimento. Como a autora ressalta, este apressamento pode abreviar o sofrimento, mas também abrevia a possibilidade do contato mais profundo que a proximidade da morte propõe, principalmente no que concerne às despedidas e ao compartilhamento de sentimentos nestas horas. Os hospitais são os locais onde mais se pratica a morte roubada. A autora questiona: não estará a eutanásia se tornando excessivamente rotineira, eliminando-se vidas com muita facilidade? E complementa, afirmando que o fim da vida é tão importante quanto seu início, e não deve ficar à mercê somente das leis.

E aqui se insere a questão da legalização da eutanásia. A autora pondera que esta poderá fazer com que os impulsos mortíferos de alguns profissionais encontrem, aí, um canal fácil de escoamento. Embora, em algumas instâncias, a eutanásia possa parecer uma ação legítima para aliviar tanto sofrimento, sua legalização abre precedentes para a diminuição de cuidados de outra ordem que possam aliviá-lo, sem necessidade de se recorrer à morte.

Ou seja, será que a legalização da eutanásia não virá em detrimento da criação de programas de cuidados paliativos? A dificuldade de ouvir e compartilhar o sofrimento de outras pessoas pode apressar a morte, sem dar espaço para trocas e despedidas, configurando, assim, a morte roubada. Voltarei à questão legal mais à frente.

A mesma autora tece interessantes reflexões sobre a questão da compaixão e piedade, sendo que esta última se refere à pena, considerando o outro como um ser inferior. Já a compaixão é a possibilidade de sentir junto, sofrer junto. É a possibilidade de permitir que a morte ocorra, mas não significa apressar o processo.

Os pacientes, muitas vezes, pedem que se os acompanhem até o fim da vida, e que não sejam abandonados ou descartados. Como já afirmamos, deixar morrer não significa matar.

Voltando ao aspecto controvertido da eutanásia, é importante salientar que há um intenso debate entre aqueles que são a seu favor e aqueles contrários a ela. Os últimos dizem que é uma “triste sina” para o médico ficar apressando a morte dos seus pacientes, enfatizando os seguintes pontos:

a) A irrenunciabilidade da vida humana.

b) Considerações de ordem prática, como, por exemplo, mudança de idéia por eventual descoberta de um novo tratamento.

c) Necessidade de discussão sobre a relatividade do que se entende como sofrimento intolerável.

d) Considerações sobre a idoneidade moral e profissional do médico.

Outro ponto a destacar é o de que o conceito de eutanásia passiva trouxe muita confusão para a área, ao ser associado à suspensão de certos tratamentos que promovem o prolongamento da vida, no caso de quadros irreversíveis. Existe uma diferença marcante entre deixar morrer no momento em que a morte é inevitável, e a provocação desta. A idéia de eutanásia passiva vem em conjunto com o que conhecemos como obstinação terapêutica, quando se procura manter a vida, onde a morte já impera. Esta obstinação, muitas vezes, vem acompanhada de intenso sofrimento, tanto para o paciente, quanto para os seus familiares, configurando o que se denominou de distanásia, prolongamento do processo natural de morrer, do qual falarei mais adiante.

Uma fonte de erro é não distinguir entre a doença aguda, onde tudo deve ser feito, pois há a possibilidade de vida, e a doença terminal, onde a recuperação não é mais possível.

Outra distinção importante a ser feita é sobre tratamentos nos quais a morte é uma conseqüência indireta, já que o objetivo principal é o alívio do sofrimento; e, por exemplo, o caso do câncer. Alguns autores definem esta ação como eutanásia indireta; entretanto, este conceito pode causar confusão e mal entendidos, já que, neste caso, o objetivo principal não é suprimir a vida, mas cuidar da dor e, se a morte ocorre, é um efeito secundário. Por isto é importante utilizar, sempre, o remédio menos drástico em primeiro lugar.

Sob a ótica da qualidade de vida, e não só da vida, a medicina está a serviço da pessoa. Se a vida que é preservada não tem nenhuma qualidade, pergunta-se: será que vale a pena toda uma série de sofrimentos adicionais? Longe de ser simples, esta questão demanda muita discussão. O direito de morrer aponta para a possibilidade de a pessoa poder protestar contra sofrimentos adicionais proporcionados pelos tratamentos que visam a combater a doença, e que acabam por combater a própria pessoa.

Segundo Lépargneur (1999), a vontade de morrer não pode ser excluída de modo absoluto da vida das pessoas. A medicina tem diante de si um desafio ético de humanizar a vida no seu ocaso, devolvendo a dignidade perdida.

Para as pessoas que advogam a legalização da eutanásia, os grandes medos que a justificam são:

  • Do sofrimento no momento de morrer: com sufocamento, muita dor e tubos por todo o corpo.
  • Da degeneração do corpo, e de que os familiares o vejam assim.
  • Do abandono e solidão na hora da morte.
  • Do não respeito ao desejo de morrer.
  • Da dependência para as atividades cotidianas.

Foi no seio desse debate que se desenvolveram, na segunda metade do século XX, os grupos Pró Morte com Dignidade, entre os quais um dos mais conhecidos é a Sociedade Hemlock.2 Um livro representativo desta época é o de Humphry (1991), Final Exit: The Practicalities of Self Deliverance and Assisted Suicide, ainda sem tradução em nosso meio, e que ficou na lista dos best sellers nos EUA. Vale a pena observar que a palavra deliverance significa parto, ou seja, é uma forma de parto para a morte. Humphry tem outra obra sobre o assunto: Jean’s Way: A Love Story, em que conta como realizou o suicídio assistido de sua esposa.

A sociedade Compassion in Dying localiza-se na cidade de Seattle, EUA, e foi fundada em 1993, oferecendo informações, orientação e apoio a familiares e pacientes. Embora a eutanásia e o suicídio assistido não sejam legalizados neste país, estão surgindo as sociedades que propõem a descriminalização destes atos.

Segundo Whiting (1995-1996), o movimento para o direito de morrer tem apresentado um número significativo de adeptos, que procuram autonomia e o direito de decidir sobre a sua própria morte. A Sociedade Hemlock tem 160.000 membros inscritos e, a Sociedade pelo Direito de Morrer, 147.000 (até a data em que este artigo foi publicado). Estes índices devem ser observados com cuidado e debatidos em vários fóruns, envolvendo o público em geral, pacientes, familiares e profissionais de diferentes áreas.

Voltando à questão da legalização, é interessante enfatizar que na Holanda, mesmo sendo o único país onde se pratica a eutanásia legalmente, são tomados muitos cuidados para se garantir a legitimidade do pedido:

  1. O paciente deve reafirmar o pedido várias vezes, ser adulto e estar mentalmente competente.
  2. É necessária a presença de dois médicos para garantir a legitimidade do sofrimento e da irreversibilidade do quadro.
  3. O paciente deve apresentar dor e sofrimento intoleráveis, tanto do ponto de vista físico quanto psíquico.
  4. O médico que está acompanhando o caso deve ouvir a opinião de outro profissional que não o esteja atendendo.

Embora, em princípio, os quatro pontos tenham enunciados claros, podem gerar dúvida, por exemplo: o que é considerado como “mentalmente competente”? Como se pode garantir que um pedido seja de fato voluntário, e não coagido por circunstâncias externas, como a necessidade de liberar um leito ou aliviar o sofrimento da família? O que é, para cada um de nós, sofrimentos intoleráveis? Será que a pessoa não pode mudar o seu ponto de vista?

A eutanásia traz à tona dois princípios que se chocam: por um lado, a autonomia do paciente que quer cuidar de seu próprio processo de morte e, por outro, a sacralidade da vida, postulada pelas principais religiões que consideram como transgressão a disposição sobre o próprio corpo.

Pessini e Barchifontaine (1994) fazem importante distinção entre eutanásia e morte com dignidade. O conceito de eutanásia pressupõe tirar a vida do ser humano, envolvendo razões humanitárias para aliviar o sofrimento e a dor, como vimos. A questão de manter, ou não, os aparelhos ligados é mais complicada, pois, embora se trate de quadro irreversível, ainda há vida, e desligá-los, mesmo que para evitar sofrimento adicional, provoca a morte. Estas não são resoluções simples, demandando considerações e reflexões por parte da equipe de saúde.

Wooddell e Kaplan (1997-1998), estudando as atitudes frente à eutanásia e ao suicídio assistido, observaram que, em alguns casos, estes pedidos parecem até muito razoáveis, embora, do ponto de vista legal, a eutanásia seja crime.

Lachenmeyer et al. (1998) acrescentam alguns pontos para discussão, pela opinião pública, da eutanásia e do suicídio assistido, observando que 60% dos entrevistados aceitariam a questão do suicídio assistido, para si, se estivessem sofrendo de dor crônica, com doença terminal, perda de mobilidade, perda de independência, ou quando se tornassem uma carga para os outros. Um terço gostaria de morrer se estivesse incontinente, ou se tivesse de ir para um asilo. Entretanto, as pessoas com mais idade concordaram menos com a idéia do suicídio assistido. Uma hipótese possível é que a proximidade da possibilidade da morte também aumente o medo do processo de morrer.

Pesquisas mostram que o público, em geral, tem se manifestado favoravelmente à morte com dignidade e à eutanásia. Mudam de atitude por temor à morte, entretanto, como aponta Mishara (1999), quando a pesquisa é feita com pacientes gravemente enfermos.

Schneirdehan (1999-2000) fez um levantamento com profissionais da área de farmácia, que são os responsáveis pelo fornecimento de medicação nos hospitais. Muitos dos remédios usados para alívio da dor e sedação podem, dependendo de sua dosagem, levar à morte. Eles têm como função principal, assim como todos os profissionais de saúde, proteger e cuidar do paciente. Têm de orientar a equipe quanto aos efeitos colaterais e dosagem dos fármacos, inclusive se forem usados para sedação. E o que é a sedação: busca da morte com dignidade, suicídio assistido ou eutanásia? Como responder? A sedação é uma zona de fronteira entre a eutanásia e um tratamento que pode conduzir ao alívio e controle de sintomas, portanto, favorecendo a qualidade de vida, mesmo que tenha como fator secundário uma abreviação da vida.

Neste caso, os defensores da eutanásia fundamentam seu ponto de vista na incurabilidade de certas doenças, na presença de sofrimento insuportável e citam a questão da morte com dignidade para justificar sua decisão. Neste sentido, o alívio do sofrimento pode ser visto como ato de humanidade e justiça.

Como no debate sobre a eutanásia há muitas opiniões contrárias, surge um novo conceito, o da criptonásia: uma eutanásia que não é propriamente voluntária, já que não há o pedido do paciente, e sim, uma decisão secreta da equipe médica. Ocorre com mais freqüência com idosos pobres, ou com os mentalmente enfermos. Neste caso, a eutanásia passa a ser uma forma de “matar” os excluídos. Nesta ótica, a legalização da eutanásia aparece como estratégia para matar aqueles que incomodam. É uma eutanásia social, muito semelhante aos procedimentos hitlerianos no holocausto.

A associação de eutanásia com assassinato é muito forte, principalmente em regimes autoritários. Por exemplo, na época do nazismo, eram usados eufemismos para convencer o público da oportunidade do uso dos procedimentos médicos experimentais, com aqueles que se queria eliminar. O filme Dasein ohne Leben (Ser sem vida) apresenta cenas de eliminação de pessoas com problemas mentais, como se este ato fosse um grande benefício para a humanidade. E assim se justifica a eliminação de qualquer pessoa que possa perturbar a ordem vigente: doentes, subversivos e judeus. Eram advogados também problemas econômicos: era permitido matar pessoas para que outras pudessem ter melhor qualidade de vida, como, por exemplo, matar doentes e inválidos para destinar os leitos que ocupavam a outros com maior possibilidade de vida, ou com melhores condições econômicas.

Dizendo de outra forma: com o prolongamento da vida e com o agravamento da doença, os recursos disponíveis diminuem e se tornam muito onerosos, fazendo com que a pessoa se sinta como sobrecarga; nestes casos, o pedido para morrer passa a se tornar razoável e até aceito. Considerar a eutanásia como uma escolha pessoal pode ser uma resposta muito simplista. Deve-se levar em conta que muitos pedidos não são, de fato, verdadeiramente voluntários, mas, na verdade, são induzidos ou até forçados pela falta de cuidados e recursos adequados.

Entre os eufemismos ligados à eutanásia, Bel Mitchel (1999-2000) arrola os seguintes: assassinato por piedade, morte piedosa, morte com dignidade, final sem sofrimento, término da vida e tratamento humanitário. Todos estes termos trazem a idéia de que há uma atitude humanitária quando se considera a eutanásia, mas podem, também, esconder uma intenção malévola de matar. Devem ser considerados, ainda, os termos morte manejada e morte planejada, que traduzem a idéia de que se pode organizar a maneira como a morte vai ocorrer, enfatizando a perspectiva da autonomia. Ilustra esta idéia a palavra alemã para suicídio: Selbstmord (auto-morte) e, também, Selbsttötung (auto-assassinato).

Hennezel (2001) apresenta, em seu livro, o manifesto de 132 pessoas a favor da eutanásia na França, sendo a maioria dos argumentos relacionados ao prolongamento da vida, com sofrimento e indignidade. Um dos pontos debatidos é a dificuldade de envelhecer, visto como uma mancha no narcisismo, ou como a impossibilidade de controle sobre a própria vida. O grande medo destas pessoas é o de não ter vida no fim da vida, de estar morta antes de morrer. É uma ferida narcísica e a pessoa questiona: será que poderei ser amada se estiver dependente? A autora rebate a radicalidade destes pontos de vista, perguntando se a dependência não pode ser vivida de outra forma, isto é, associada à solidariedade. Como cuidamos, também podemos ser cuidados um dia.

A autora cita o livro de Albom (1997) A Última Grande Lição: O Sentido da Vida, que relata a experiência de como o professor-protagonista viveu os últimos dias de sua vida, dependente de outras pessoas para todas as atividades cotidianas, e como achava importante compartilhar esta experiência com seu ex-aluno e amigo jornalista, que transformou esses momentos em livro – que poderá ser base de reflexão para pessoas que estão vivendo seus processos de morte. Na obra, constam as conversas entre o autor e Morris, seu professor, e, em cada 3ª feira (dia dos encontros e seu título original), um tema era debatido. Este livro, que aborda diretamente o processo de morrer, em todas as suas facetas, algumas bastante impactantes, ficou várias semanas entre os best-sellers – mais um paradoxo destes tempos de morte interdita.

Eutanásia sob o ponto de vista religioso

As religiões têm um papel muito importante para a humanidade, principalmente quando o sofrimento e a dor se fazem presentes, oferecendo acolhida e reflexão nestes momentos, orientando para uma vida responsável, garantindo uma vida plena de felicidades. De uma forma ou de outra, todas estão relacionadas com o sentido da vida, liberdade, justiça e direcionamento da consciência.

Com exceção do budismo, que considera a vida como um bem precioso, mas não de âmbito divino, em todas as outras religiões ela é vista como sagrada. Em relação às discussões atuais sobre a preservação da vida e o avanço tecnológico, as principais religiões se posicionam pela primeira até seu fim natural, manifestando-se a favor do cuidado aos pacientes com doença avançada, devendo se preservar a dignidade no adeus à vida, evitando-se o prolongamento artificial e penoso do processo de morrer.

As religiões buscam, também, uma ética de responsabilidade, discutindo as conseqüências de certas ações, e também de certas omissões. É aí que cabe a discussão sobre eutanásia. Pessini (1999) traça um painel sobre as diversas religiões, e como seria seu posicionamento diante da questão do apressamento da morte – eutanásia ou suicídio. Seguem-se, pois, as peculiaridades de algumas das principais religiões, atualmente professadas, tal como expostas pelo autor.

Budismo

No Budismo, não há uma autoridade central, sendo objetivo de todos budistas a iluminação e, assim como o próprio Buda buscou o seu caminho, cada pessoa pode traçar o seu. É uma filosofia de vida, o caminho da sabedoria. A vida é transitória e a morte inevitável, e é importante deixar que siga seu transcurso natural. Além disso, a morte perturba o processo dos sobreviventes e não deve ser prolongada indefinidamente quando não houver possibilidade de recuperação, mas, também, não deve ser apressada. O momento da morte é fundamental (como se lê no Bardo Thodol – O Livro Tibetano dos Mortos, apresentado ao mundo ocidental por Ewans-Wentz, em 1960), pois o que governa o renascimento é a consciência e a aprendizagem na hora da morte; por isto, é importante ter pensamentos apropriados neste momento.

Há uma restrição no que concerne aos transplantes, uma vez que a unidade corpo e espírito continua após a morte. Remover um órgão do cadáver é uma perturbação desta unidade; pelo mesmo motivo, autópsias também são contra-indicadas.

Como a morte é uma transição, o suicídio não pode ser visto como escape, portanto, é condenado. Alguns suicidas foram perdoados por Buda, quando este percebia que não eram atos egoístas, movidos pelos desejos, mas sim, guiados pelo caminho da iluminação. Há um reconhecimento da sabedoria das pessoas na determinação do fim desta existência e a passagem para a seguinte. É importante considerar o momento da morte e a maneira como vai ocorrer, a sua dignidade.

Devemos lembrar que a lei japonesa não incentiva o suicídio, e penaliza aqueles que ajudam os outros a executá-lo. Entretanto, se no processo de morrer houver sofrimento intolerável, é permitido o auxílio, é o que se vê no hara kiri quando o samurai, rasgando seu abdômen, tem um auxiliar que o degola, porque o sofrimento é muito grande e demorado com o corte abdominal. É importante que a tensão seja diminuída, para que se possa ter paz mental.

As drogas usadas para aliviar a dor são permitidas, mesmo que possam matar o paciente. Entretanto, é necessário verificar se é o caso de administrá-las, garantindo o máximo possível de lucidez do paciente no momento de sua morte. Por isto, na visão budista, é um absurdo manter o paciente inconsciente, vivo, quando não há possibilidade de recuperação. Na tradição budista, valoriza-se muito a decisão pessoal sobre o tempo e a forma da morte. Todos os atos que dificultem esta decisão, ou que nublem a consciência da pessoa, são condenados. A vida não é divina e, sim, do homem, e a preocupação é com a evolução da pessoa, a lei do Karma.

Islamismo

Islamismo significa, literalmente, submissão a Deus. A vida humana é sagrada e tudo deve ser feito para protegê-la; o mesmo vale para o corpo, que não deve ser mutilado em vida ou depois da morte. É importante lavá-lo e envolvê-lo em pano próprio, orar e depois enterrá-lo.

Deus é a suprema força que governa os homens, portanto, o suicídio é considerado como transgressão. O médico é um instrumento de Deus para salvar pessoas, não pode tirar a vida de ninguém, nem mesmo por compaixão; mas também não deve prolongá-la a todo custo, principalmente quando a morte já tomou conta. Os islâmicos são totalmente contrários aos transplantes, porque provocam mutilação no corpo.

Judaísmo

A grande questão para o judaísmo é definir o momento da morte, término da vida. A morte encefálica é o determinante do momento da morte. Mas, para alguns mais tradicionalistas, o critério válido de morte é a parada cardíaca e respiratória.

Sobre a eutanásia, os rabinos de várias linhagens têm opiniões coincidentes. A morte não deve ser apressada e o moribundo deve receber os tratamentos dos quais necessita. A decisão sobre a própria morte não cabe ao sujeito, e sim aos rabinos que, ao interpretar a Torah, aplicam seus conhecimentos à vida cotidiana. Mesmo não sendo a cura não é possível, não se deve deixar de cuidar, e a pessoa não deve ser deixada sozinha quando estiver morrendo. O médico é um servo de Deus para cuidar da vida humana e não deve apressar a morte. O que deve ser preservado é a vida e não a agonia.

Cristianismo

A “Declaração sobre a Eutanásia”, de 5 de maio de 1980, da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, é o documento mais completo sobre o assunto nesta religião. A eutanásia é condenada como violação da lei de Deus, ofensa à dignidade humana e um crime contra a vida. Entretanto, isto não quer dizer que se tenha de preservá-la a todo custo, prolongando a agonia e o sofrimento. O conflito sobre o que seriam tratamentos ordinários e extraordinários ainda continua, assim como uma grande preocupação com o sofrimento durante o processo da morte, e com a velhice indigna. Não é considerada eutanásia a interrupção de um tratamento, que não oferece cura ou recuperação, e, sobretudo, causa muita dor e sofrimento. Deixar morrer não significa matar. Esta última ação é que é vedada.

Observando os postulados dos credos religiosos apresentados, a eutanásia é uma transgressão e, também, assunto fértil para controvérsias, conflitos e discussões. O foco é o questionamento sobre a autoridade divina e a possibilidade de auto-determinação do ser humano e por isto o diálogo entre ética e religião é fundamental. A vida não é só biológica, mas também biográfica, incluindo: estilo de vida, valores, crenças e opções.

Eutanásia e a questão legal – mais algumas implicações

O debate sobre a legalização da eutanásia está cada vez mais presente, principalmente depois que a Holanda se tornou o único país a legalizar o ato de apressar a morte. Todavia, se, por um lado, há grande pressão para essa legalização, por outro existe o movimento contrário, igualmente forte, pelo temor de que seja praticada sem limites; este temor é tal que, na própria Holanda, foi criada uma “Associação de Proteção à Eutanásia”.

A discussão sobre a legalização da eutanásia é trazida à baila quando são cometidos abusos terapêuticos como, por exemplo, manter a todo custo uma vida que está se finalizando. É sempre importante a escuta e a acolhida de alguém que quer encerrar sua vida com dignidade. Por outro lado, existe o temor de que a morte será apressada de modo muito fácil com os chamados excluídos: pobres, idosos, deficientes e psicóticos – como já foi comentado.

Dodge (1999) aponta que o pedido para descriminar a eutanásia e o suicídio assistido aparece quando se vêem casos extremos, em que tanto a manutenção acirrada da vida, como o apressamento da morte, trazem o conflito à tona. Para o autor, o argumento principal para a legalização de eutanásia é o princípio da autonomia: as pessoas têm direito moral de tomar decisões a respeito de suas próprias vidas e a lei deveria respeitar este direito.

Entretanto, a própria idéia de autonomia pode ter contornos polêmicos, quando se pensa na possibilidade de se fazer o que se quer: até onde se pode ir, quando se ferem os direitos de outros? Quando o tema é abordado, estamos perante uma pluralidade de pontos de vista. No que se refere a direitos humanos e, mais particularmente, quando está em jogo a vida e a morte, é fundamental considerar que são os membros da sociedade que devem ser protegidos, e não o desejo dos poderosos.

A ligação da morte com dignidade e a permissão para matar é complicada e pode representar risco para aqueles que são, de alguma forma, vulneráveis. A ligação da eutanásia com doença terminal não é obrigatória; primeiro, porque o assunto não é só pensado para estes pacientes e, segundo, porque a eutanásia não é o único procedimento que resta para pacientes gravemente enfermos. Então, a questão de ser ou não um doente em estágio terminal não é o ponto essencial na discussão sobre eutanásia e sua legalização.

Outro aspecto a ser considerado é o que define um sofrimento como insuportável, e quem assim o define: o paciente ou a equipe? Pode-se dizer que um pedido é justificado e outro não? São perguntas complexas que demandam discussões multidisciplinares.

Mais uma questão a ser levantada é que a legalização da eutanásia pode levar a erro, abuso e desgaste da relação médica. Cada vez mais é necessário desenvolver o que se chama de diretrizes futuras, os testamentos de vida e os poderes legais, como já mencionamos; todos estes são instrumentos jurídicos, que podem ser usados para decisões subrogadas, quando a pessoa não pode mais falar de si e por si.

No Direito Brasileiro, a eutanásia é vista como homicídio, portanto, ilícita e imputável, mesmo que a pedido do paciente (Artigo 66/1988). A morte termina a existência de uma pessoa e, com isto, cessam seus direitos; mas o paciente terminal, mesmo que em agonia, mantém a personalidade jurídica, pois ainda vive. Há um grande paradoxo sobre o fim da vida, e o Código Civil Brasileiro fala em liberdade e dignidade, mas esta liberdade não inclui a disponibilidade da própria vida, como aponta Martin (1993), que realiza uma leitura ético-teológica da relação médico-paciente terminal nos códigos brasileiros de ética médica.

Uma das conclusões importantes desse autor é a riqueza de aspectos apresentada sobre o tema nos códigos brasileiros, com um forte cunho humanitário de tradição secular, cujo valor central é a pessoa humana, com a ênfase na benignidade e que muitos profissionais desconhecem. A esta tendência se contrapõe uma ética mercantilista, preocupada com a economia, que vê a medicina como um negócio como outro qualquer.

E, talvez por isso, aumentaram os pedidos para legalização da eutanásia, relacionados também com a necessidade de “racionamento” da assistência médica por falta de recursos.

Se, em 1984, há uma predominância do medicocentrismo e uma busca, nos aspectos legais, da decisão para os seus atos, perdendo-se um pouco o valor do humano, já, em 1988, retomam-se como eixo os direitos do paciente terminal, o direito à verdade e o direito de participar das decisões sobre a própria vida.

Dodge (1999) também apresenta um histórico dos códigos criminais no Brasil, em relação ao tema da eutanásia. No código de 1830 nada constava sobre eutanásia, mas havia referências ao suicídio assistido, imputando-se pena de dois anos de prisão e, em 1890, é previsto um aumento desta pena. No Código vigente, a eutanásia é vista como assassinato, e o motivo piedoso alegado não atenua a pena.

Entretanto, o médico será obrigado a prolongar a vida se este for o desejo explícito do paciente ou de seus familiares. Portanto, a distanásia não é imputável, mesmo se comprovado que causa muito sofrimento, a não ser que as intervenções utilizadas para prolongar a vida possam ser caracterizadas como a razão para seu encurtamento.

Infelizmente, não se pode condenar o médico quando este realiza tratamentos fúteis, infligindo grande sofrimento aos seus pacientes. O consenso, nestes assuntos, é muito difícil de ser alcançado.

ortotanásia, entendida como possibilidade de suspensão de meios artificiais para manutenção da vida quando esta não é mais possível (desligamento de aparelhos quando o tratamento é fútil, não promovendo recuperação e causando sofrimento adicional), não é um ato ilícito. Ou seja, a conduta de desligar equipamentos será lícita se não significar encurtamento da vida, obedecendo ao princípio de não maleficência.

Definição do momento da morte e suas implicações

No meio desta polêmica sobre a abreviação ou prolongamento do processo de morrer, cabe uma questão importante: a definição do momento da morte. Lamb (2001) descreve os aspectos envolvendo a trajetória e as definições sobre a morte encefálica – atualmente condição necessária e suficiente para se atestar a morte, já que define um ponto sem retorno no processo de morrer, no qual a perda de integração do corpo é definitiva.

A morte encefálica é a ausência total das funções cerebrais, coma irreversível, apnéia e reflexos e, neste caso, a Lei 9434, de 1997, em território nacional, permite a retirada de órgãos, tecidos e partes do corpo humano.

A definição de morte encefálica tem sua origem na França a partir do conceito de coma depassé, um estado além do coma, descrito nos trabalhos de Mollaré e Goulon (1959) e citados por Lamb (2001), que o definiram como um estado de irresponsividade, flacidez, dificuldade de regulação térmica, ausência de reflexos e falta de respiração autônoma. Como este termo chegou a gerar confusão com os outros estágios do coma, passou-se a utilizar o termo “morte encefálica” em vez de coma, para evitar qualquer ambigüidade. Esta definição passou a ser fundamental devido ao avanço tecnológico da medicina e às inúmeras intervenções para adiar e prolongar o processo de morrer.

Este autor, ao traçar um histórico a respeito dos critérios para definição da morte, lembra que religiões e culturas tinham as mais variadas concepções sobre a morte, antes de serem definidos os critérios médicos. Os egípcios consideravam o coração como o órgão vital mais importante, e os judeus atribuíam à respiração independente e aos batimentos cardíacos os elementos essenciais para se considerar a vida. Os cristãos acreditavam que a alma estava na cabeça, por isto, o critério cerebral pode ser adequado. No pensamento japonês, o abdômen e as vísceras são considerados o elemento chave para a vida, daí a origem do hara kiri, no qual a espada é enfiada nesta região e não no coração. Por toda esta diversidade de órgãos essenciais, pode-se imaginar que não é fácil a aceitação do critério encefálico como o único para a definição da morte.

No histórico das definições da morte, esta foi considerada como o último sopro de vida. Ainda no século XVIII a putrefação dos corpos era o sinal manifesto de que a morte havia, de fato, ocorrido. Os velórios, nesta época, além de serem rituais de despedida, permitiam o tempo necessário para comprovar que a morte havia ocorrido, e de que não se enterraria uma pessoa viva. Com a descoberta da circulação sangüínea e do estetoscópio, o critério da morte passa a ser a ausência dos batimentos cardíacos.

O autor aponta, como fato interessante, que os escritos de Descartes afirmavam que o ser vivo era uma máquina, e na divisão que propunha, os médicos cuidavam da mecânica e, os padres, do espírito.

Do ponto de vista biológico, a morte pode ser vista como um processo que se inicia quando um órgão vital cessa seu funcionamento, e acaba quando todo o organismo se decompõe. A moral e a lei exigem que a morte seja tratada como evento no qual a impossibilidade de organização e integração das funções do corpo leva a uma perda do que é essencial e significativo de forma irreversível; ou seja, há impossibilidade de regeneração. Quando se chega a este estado, não vale a pena nenhuma intervenção ou substituição de órgãos. O Papa Pio XII, grande autoridade religiosa do século XX, se pronunciou a respeito da questão, afirmando que o prolongamento da vida é uma questão médica e não religiosa, e que critérios razoáveis devem ser aplicados neste caso.

Lamb (2001) enfatiza a necessidade de discussão sobre a diferença entre os termos morte encefálica, que representa o fim da coordenação da vida vegetativa e da vida de relação, e morte cerebral ou cortical, que significa o fim da vida de relação. A morte não é um evento instantâneo, na maior parte das vezes, e sim, uma seqüência de fenômenos que ocorrem gradativamente nos vários órgãos do corpo.

Do ponto de vista psicossocial, pode-se falar na morte em vários níveis: físico, psicológico ou social; entretanto, o critério de morte, tem de ser único e preciso. Segundo o autor, é necessário que se faça uma diferenciação entre definições possíveis e critérios. A definição pode ter vários contornos, como já vimos, mas os critérios têm de ser objetivos. Portanto, morte encefálica não é um conceito novo e sim, um critério. O encéfalo é um órgão crítico para o que chamamos de vida, e que não pode ser substituído; neste caso, não importa que outros sistemas estejam funcionando por meios artificiais, pois sabe-se que, após a morte encefálica, os outros sistemas, como o circulatório e respiratório, cessam também, após algumas horas ou dias.

A definição do momento de morte, além de garantir os rituais fúnebres a quem de fato morreu, se reveste de grande importância para se estabelecer o momento de retirada de órgãos para fins de transplante. O grande desenvolvimento das técnicas de reanimação, a partir da década de 1960, traz à tona a questão sobre quais são os casos que devem ser submetidos a elas. O desenvolvimento da respiração artificial, em 1976, permite a reanimação, menos artesanal do que os sais aromáticos usados para os desmaios nos tempos antigos e, mais recentemente, os choques cardíacos.

Para se determinar a morte encefálica é necessário excluir aquelas situações que apresentam características semelhantes, como é o caso de hipotermia e intoxicação por drogas. A grande diferença é que, nestas últimas situações, pode haver uma reversão dos quadros e, no caso da morte encefálica, a irreversibilidade é total. Daí a necessidade de se esperar pelo menos 72 horas para concluir o diagnóstico, e não apressar a morte, mesmo que seja para fins de transplante. O problema é que os instrumentos para avaliar a morte encefálica ainda não são tão precisos. O eletroencefalograma, um dos exames clássicos, apresenta distorções, pois é sabido que algumas pessoas com traçado isoelétrico se recuperaram. Outro exame que também é utilizado é a angiografia; é um procedimento extremamente invasivo, que pode causar danos adicionais. Então, o dilema se coloca: é válido realizar um exame para se saber se ocorreu morte encefálica, e aí poder causar uma lesão que pode ser o motivo da morte?

O parecer nº 12/98 do Código de Ética Médica se refere à morte encefálica como o momento do óbito, e a família precisa ser avisada antes do desligamento dos aparelhos ou da não reanimação. É importante, também, informar a equipe de enfermagem, que é a que está mais em contato com o paciente e seus familiares. Como a morte encefálica é considerada, na maior parte dos países ocidentais, como sinônimo de óbito, só após sua ocorrência se passa a manipular o corpo cadáver, em caso do uso de órgãos para transplante. Se for constatada morte encefálica, o prolongamento dos tratamentos pode configurar obstinação terapêutica, como já apontado.

Assim, do ponto de vista ético, não se justifica o apressamento da morte, mesmo que seja para fins de transplante; o argumento de que uma vida pode ser salva não permite que se disponha de uma que ainda está presente. Vemos que a compreensão sobre vida e morte no caso da morte encefálica é complexa, embora os critérios estejam definidos. Podemos observar esta ambigüidade, quando os médicos pensam em anestesiar os pacientes com morte encefálica, ao retirar os órgãos, para que não sintam dor. O reconhecimento da morte encefálica afirma que o paciente está morto, e não que está para morrer e que ainda pode se recuperar.

França (1999) apresenta uma questão interessante: não cabe matar quem está vivo, nem manter vivo quem está morto, não há meia vida nem meia morte.

De qualquer forma, o conceito de morte encefálica deve ser mais bem explicitado para a sociedade, a fim de que esta possa se tornar co-partícipe na discussão. Ao se definir melhor o conceito de morte e de morte encefálica, cai por terra o conceito de eutanásia passiva. O esclarecimento sobre o que constitui distanásia também é importante, porque o prolongamento da vida, a todo custo, é absolutamente inútil.

Finalizando, pode-se enfatizar que muitos debates sobre eutanásia acabam por promover uma polêmica entre o tudo ou nada, levando a conclusões simplistas em questões que demandam demorada reflexão, até que todos os pontos de vista sejam considerados.

Suicídio assistido

O que diferencia a eutanásia do suicídio assistido é quem realiza o ato; no caso da eutanásia, o pedido é feito para que alguém execute a ação que vai levar à morte; no suicídio assistido é o próprio paciente que realiza o ato, embora necessite de ajuda para realizá-lo, e nisto difere do suicídio, em que esta ajuda não é solicitada.

A seguir, explicitarei melhor o que entendo por suicídio assistido. Cabe lembrar que, às vezes, a diferença entre eutanásia e suicídio assistido não fica muito clara, o que dificulta a realização de pesquisas sobre o assunto.

O contexto cultural da morte planejada envolve importantes significados sociais. Historicamente, o suicídio teve conotações diferentes. Na Grécia, os estóicos viam o suicídio como um ato racional, alternativa para uma vida em desarmonia. Os romanos consideravam que se podia preparar a própria morte, principalmente quando a vida era indigna; os únicos que não podiam assim pensar eram os escravos, porque não eram considerados como seres humanos e, sim, como mercadoria e, portanto, sua morte envolveria perdas financeiras. Do ponto de vista cristão, pode se olhar a questão do suicídio por dois ângulos: a possibilidade de elevação da alma, através do martírio, o que é aceito e até louvado; entretanto, o homem não tem direito de dispor da própria vida, desafiando Deus.

O suicídio já foi visto como crime e, portanto, passível de punição, ou seja, se a morte não ocorresse, a pessoa era condenada à pena máxima.

Na atualidade, a psicanálise, a partir dos estudos sobre a dinâmica psíquica, encaminha a questão para o âmbito subjetivo, ligando o suicídio à doença mental.

No século XX, a partir da mentalidade da morte interdita e vista como fracasso, e com o prolongamento da vida a todo custo, surgem vários movimentos que discutem a dignidade no processo de morrer. É no seio deste movimento que começa a germinar, como um dos seus focos, o suicídio assistido. O termo suicídio assistido apareceu em 1990, envolvendo Jack Kervokian, médico do estado de Oregon, que relata o caso de sua paciente Janet Atkins, portadora da doença de Alzheimer. O suicídio assistido, neste caso, foi proposto como uma forma de driblar a solidão que ela sentia. No geral, a proposta de Kerkovian sustenta que o suicídio assistido é uma forma de morte planejada, como possibilidade de se assumir tanto a vida como a própria morte com dignidade.

Kervokian desenvolveu o mercitron, uma máquina que provoca suicídios “piedosos” (merciful), segundo suas palavras. A máquina tem três seringas e uma agulha com um dispositivo para ser acionado; na primeira seringa existe uma solução salina, cuja função é deixar uma veia aberta; na segunda, um poderoso relaxante muscular, que pode ser manipulado pelo paciente, quando este quiser iniciar o processo; e na terceira, cloridato de potássio, que provoca parada cardíaca imediata. Quando o paciente aciona a segunda seringa, imediatamente inicia o processo de sua morte. Este é o exemplo clássico de suicídio assistido porque, de alguma forma, implica na vontade e ação do paciente, configurando o que Kervokian chama de medicídio, a morte planejada.

Nos Estados Unidos, o movimento do suicídio assistido adquire grande força, já que, neste país, a autonomia e a individualidade são consideradas grandes valores. Kervokian propõe alívio da dor, do sofrimento e diminuição dos custos na hora da morte. É uma forma de planejar e administrar a morte. Os obitaristas, ou administradores da morte, serão os responsáveis por esta tarefa.

Markson (1995) refere-se a esse médico, conhecido como o Dr. Morte, que auxiliou 92 pessoas no processo de morte, e foi condenado a 25 anos de prisão por assassinato e uso de substâncias proibidas. Kervokian escreveu, em 1991, uma obra chamada Medicide, na qual expõe suas idéias principais.

Omega, Journal of Death and Dying, dedica o volume 40 (1999-2000) à discussão sobre Kervokian, apresentando a opinião de eminentes tanatologistas sobre o assunto.

Kastenbaum (1999-2000), o eminente tanatólogo americano, tece suas considerações sobre esse médico, situando-o na história das mentalidades sobre a morte, no final do século XX. Refere-se à sua origem como patologista, e sua preocupação com o momento da morte, tendo posteriormente se envolvido com a questão de doação de órgãos de prisioneiros condenados. Considera que Kervokian acabou se tornando mais conhecido pelo seu sensacionalismo, do que pela contribuição que pudesse ter dado à área da tanatologia. Lembra, também, que o médico não se vinculou ao movimento hospice, que se preocupa fundamentalmente com a dignidade no processo de morrer. O autor faz um mea culpa ao analisar o colega, afirmando que no movimento dos deathnicks, como denomina os tanatólogos, houve preocupação muito maior com a questão do luto e com o detalhamento de variáveis em inúmeras pesquisas, do que com o processo da morte. Considera que Kervokian pode ter se apropriado deste espaço, já que inúmeras pessoas se preocupam muito com a sua própria morte, e com o processo de morrer, porque acreditam que ocorrerá com sofrimento intolerável.

Canetto e Hollenshead (1999) realizaram um estudo que analisou 47 casos atendidos por Kervokian, entre os anos de 1990 e 1997, dos quais 68% eram mulheres; 31% estavam em estágio terminal da doença; 74% tinham dor e, apenas 42,6% destes, tinham uma explicação orgânica para seu quadro, muitos tinham dor intolerável e, pior ainda, sofriam sem saber a causa, sendo acusados de estar fingindo ou inventando; 36% tinham depressão; 66% grandes deficiências e 90% estavam totalmente dependentes, corroborando o fato de que, mais do que o medo da morte, está presente um grande temor de se sentir dependente e à mercê de outra pessoa. Do total dos casos, 47% eram portadores de câncer e uma porcentagem significativa tinha esclerose múltipla.. O autor considera importante observar o porquê de uma porcentagem maior de mulheres pedir ajuda para o suicídio, e sugere que seria pelo fato de viverem por mais tempo e, por isto, sofrerem mais com doenças crônicas, incapacitantes. Estas mulheres têm menos apoio da família, muitas vezes não presente, já que seus esposos morreram; estavam sós e várias delas institucionalizadas.

Kaplan e Bratman (1999-2000) atualizaram o estudo anterior, incluindo 75 casos, com as mesmas tendências. É importante considerar que Kervokian foi sempre muito favorável a expor seus casos na mídia, como forma de ampliar a militância na questão da morte com dignidade e pelo direito à morte. Estes autores discutem sobre quem ele é: um visionário, um serial killer ou um mártir. Em 1998, o médico ofereceu à rede de TV americana CBS a realização do processo de eutanásia ao vivo, o que obviamente não foi aceito. Mesmo assim, participou do programa, e afirmou que, se fosse preso, faria greve de fome.

A discussão proposta é: dependendo da interpretação que se faça dos seus atos, ele pode aparecer como alguém que se preocupa com a qualidade de vida, autonomia de pessoas em intenso sofrimento, advogando a dignidade no processo de morrer. Porém, com a necessidade de aparecer e criar polêmica, pode estar fazendo um desserviço para o movimento pró morte com dignidade. Muitos o vêem como assassino, e concordam com a sua prisão.

Segundo Gutman (1999-2000), o que assusta no caso Kervokian não é seu empenho em tentar ajudar os pacientes a terem uma morte digna, e sim, o fato de poder estar usufruindo prazer deste ato, mantendo-se sempre na berlinda. O autor traça um paralelo com os xamãs, grandes curadores, que, por isto, se tornavam muito poderosos; esta sensação de poder tende a cegar a racionalidade e a humildade frente à vida e à morte.

Segundo Kaplan e Bratman (1999-2000), a eutanásia é ilegal nos Estados Unidos, mas o suicídio assistido foi legalizado nos estados de Oregon e Michigan, este último terra de Kervokian. Como a diferença entre suicídio assistido e eutanásia nem sempre é muito clara, a confusão permanece.

Um dos pontos mais temidos no processo de morrer, na atualidade, é a incerteza, isto é, saber que a morte virá, mas não saber quando nem como, sem controle ou planejamento. Aí a eutanásia e o suicídio assistido podem surgir como possibilidades para este planejamento.

Distanásia

A manutenção dos tratamentos invasivos em pacientes sem possibilidade de recuperação é considerada distanásia, obrigando as pessoas a processos de morte lenta, ansiosa e sofrida, sendo sua suspensão uma questão de bom senso e racionalidade.

Melhor definindo, distanásia é morte lenta, ansiosa e com muito sofrimento. Trata-se de um neologismo composto do prefixo grego dys, que significa ato defeituoso, e thanatos, morte. Trata-se de morte defeituosa, com aumento de sofrimento e agonia. É conhecida também como obstinação terapêutica e futilidade médica.

A distanásia é sempre o resultado de uma determinada ação ou intervenção médica que, ao negar a dimensão da mortalidade humana, acaba absolutizando a dimensão biológica do ser humano.

Entre pessoas famosas que passaram por esta situação podem ser citados: Truman, Hiroíto, Franco e, no Brasil, Tancredo Neves.

O maior risco da distanásia ocorre em instituições de saúde muito bem aparelhadas, com instrumentos cada vez mais sofisticados para o ressuscitamento, trazendo a questão: até quando a vida deve ser prolongada, e a quem cabe tal decisão?

Associada à distanásia, surge a questão sobre o que são tratamentos fúteis. A futilidade foi definida pelo Hastings Center, que estabeleceu as diretrizes nesta área, e que fez publicar o documento Guidelines on the Termination of Life Sustaining Treatment and the Care of the Dying (Hastings Center, 1987). O termo fútil se origina da palavra futilis, que significa furado. Os tratamento fúteis são entendidos como aqueles que não conseguem manter ou restaurar a vida, garantir o bem estar, trazer à consciência, aliviar o sofrimento; ao contrário, só levam a sofrimentos adicionais. A grande dificuldade é determinar o que são tratamentos ordinários, obrigatórios para salvar o paciente, ou oferecer alívio e controle de seus sintomas; e quais são extraordinários, também conhecidos como fúteis. Surge, então, um novo conceito, que é o do tratamento proporcional para cada caso, ou seja, eficaz para cuidar daquilo a que se propõe.

Pessini (2001b) escreveu sua tese de doutorado sobre a distanásia, relacionando-a com as principais questões da bioética. Intitulada Viver com Dignidade a Própria Morte: Reexame das Contribuições da Ética Teológica no Atual Debate Sobre Distanásia, foi publicada, no mesmo ano, em livro: Distanásia: Até Quando Prolongar a Vida? (Pessini, 2001a). São obras de leitura obrigatória para aqueles que se debruçam sobre os temas do prolongamento da vida, distanásia, tratamentos fúteis e ortotanásia.

Pessini foi capelão do Hospital das Clínicas da FMUSP, de 1983 a 1995, e teve contato muito grande com pacientes internados, muitos deles em estágio terminal da doença, vivendo a dor e o sofrimento que a aproximação da morte provoca. Atualmente, é o dirigente do Centro Universitário São Camilo, responsável por vários cursos na área de saúde e teologia, e um dos mais conhecidos bioeticistas em nosso meio.

Segundo o autor, a questão da distanásia surge num contexto da medicina e da tecnociência que, diante de uma doença incurável, transforma em obsessão a “cura da morte”, como se isto fosse possível, negando-se a dimensão de finitude da humanidade. Cabe ressaltar, no entanto, que a crítica ao tratamento fútil não significa matar o paciente, nem abandoná-lo à própria sorte.

Alguns países propuseram diretrizes sobre como definir a irreversibilidade dos quadros, medidas cabíveis e o prolongamento ou não da vida, e Pessini (2001a, 2001b) cita-os em seu trabalho. As dificuldades maiores estão relacionadas com alguns profissionais de saúde, que não conseguem reconhecer que a morte é irreversível, que não há mais sentido em manter tratamentos que só prolongam funções fisiológicas. Além disto, muitos deles têm dificuldades de comunicarem este fato à família.

A pergunta que se coloca é: o que deve predominar na decisão sobre os tratamentos, a sacralidade ou a qualidade de vida? Pergunto, então, sobre a diferença entre a vida biológica e biográfica. Pessoas podem estar vivas e não ter vida. Ou seja, o coração pode estar batendo, e a pessoa estar totalmente inconsciente, sem possibilidade de contato.

Também é importante considerar que há diferenças entre matar e deixar morrer. Quando uma pessoa não tem mais vida, estando apenas algumas funções vitais preservadas, interromper os tratamentos não é eutanásia.

Quando se analisa a questão de pacientes em estágio terminal da doença, é importante considerar que existem vários níveis de gravidade. Há pacientes com doença avançada, que podem se beneficiar de tratamentos, mesmo que sejam invasivos e dolorosos, porque há possibilidade de melhorar sua qualidade de vida. Em outros casos, nenhuma recuperação é possível, e estes mesmos tratamentos passam a representar um sofrimento inútil. É neste caso que se faz necessária a reflexão sobre sua continuidade, configurando a distanásia. Ou seja, o mesmo procedimento pode ser a conduta indicada, ou o prolongamento de um sofrimento inútil.

Uma outra questão polêmica, já mencionada, é a diferença entre o que se considera como tratamento ordinário ou extraordinário. Uma traqueotomia para facilitar a respiração pode ser considerada como tratamento ordinário para um paciente com doença irreversível. Submeter este mesmo paciente à hemodiálise pode ser considerada medida extraordinária, uma vez que só prolonga a vida, sem perspectiva de melhora.

O temor que surge, a partir dessas questões, é que alguns procedimentos, como cuidados com alimentação, higiene, alívio da dor etc., podem deixar de ser usuais para garantia da qualidade de vida e se tornarem procedimentos extraordinários no caso de pacientes em estágio avançado. Como já exaustivamente defendido, cuidados constantes, discussões com familiares e pacientes, sempre devem fazer parte dos procedimentos no caso do agravamento da doença. Todas estas questões se complicam, ainda mais, quando o paciente é uma criança.

O conceito de futilidade médica leva em conta somente a duração da vida, e não sua qualidade, como já vimos. Ou seja, há casos em que o prolongamento da vida só causa sofrimento. Por exemplo, nos casos de má-formação grave, nos quais só há perspectiva de vida vegetativa, com alto risco de morte, fica a pergunta: quanto investir e quando parar? Pacientes em estágio vegetativo não apresentam possibilidade de recuperação, não têm evidência de consciência, não manifestam comportamentos voluntários, não têm compreensão ou expressão verbal, apresentam estado de acordar intermitente, sem as mínimas condições de sobrevivência, mesmo que apresentem alguns reflexos. Muitos destes quadros são ligados a lesões graves do sistema nervoso central e a síndromes degenerativas e metabólicas.

Em pesquisa realizada com médicos sobre como e quando retirar o suporte vital, os pontos considerados foram: a) qualidade de vida do paciente, b) possibilidade de sobreviver ao tratamento; c) natureza da doença e sua reversibilidade.

Kipper (1999) discute que, com todos os problemas econômicos do Brasil, ainda se mantêm os pacientes em estado terminal por muito tempo nas UTIs, porque os profissionais de saúde temem as conseqüências do desligamento dos aparelhos, e se sentem sozinhos nestes momentos. A família precisa ser informada, e ter tempo para elaborar o que significa este desligamento de aparelhos.

Mota (1999) comenta que, às vezes, os tratamento fúteis são propostos porque é difícil assistir à pessoa durante seu processo de morte. O paciente pode ser colocado no respirador porque é muito angustiante ver suas dificuldades respiratórias. Não se percebe o limite entre o que é razoável e a obstinação terapêutica, quando o que se proporciona são apenas sofrimentos.

Quando se discute o que é vida, devemos lembrar que a medicina não tem como único objetivo manter índices fisiológicos, como o pulsar de um órgão, e sim cuidar de uma pessoa. A escolha de determinado procedimento está relacionada ao valor subjacente. Para alguns profissionais da saúde só há tratamento quando se faz algo efetivamente e, numa época tão plena de novas tecnologias, estas são usadas como tentação – a de que se está fazendo de fato alguma coisa, aliviando-se a consciência.

Outro ponto a ponderar envolve a questão econômica: é rentável submeter os pacientes a um grande número de tratamentos, mesmo que o resultado seja praticamente nulo, pois aumenta o faturamento. A questão é: quem é que está sendo beneficiado, o paciente, a família ou as empresas de saúde?

Segundo Lépargneur (1999), a distanásia reflete uma atitude orgulhosa de confiança na técnica, uma idolatria da vida, o medo de encarar a morte de frente, representando um ataque contra a dignidade da pessoa. É também um ataque à sociedade, um uso excessivo de energia, que é ainda mais grave quando os recursos são limitados e, em conseqüência, quando se pensa que muitas pessoas não têm direito a uma assistência básica e necessária de saúde, resultando em um grande número de mortes, configurando o que se denominou de mistanásia (Martin, 1993). Esta discussão é fundamental em um país tão marcado pelas desigualdades, com parcos recursos, exigindo a responsabilidade coletiva sobre assistência de saúde. Segundo Fortes (2002), a grande questão que se coloca é o que significa distribuição justa, ou seja, atender a cada pessoa segundo as suas necessidades.

Com o avanço biotecnológico, corre-se o risco de perder o bom senso diante de um paciente com um quadro irreversível e, em vez de se proporcionar a vida, prolonga-se o processo de morrer. Mas, longe de consenso, estas práticas ainda suscitam polêmica, dúvidas e conflitos que demandam conversa e troca de experiências num debate pluralista.

E, finalmente, uma pergunta: do ponto de vista religioso, será que a distanásia não seria considerada uma transgressão à vontade divina, na medida em que se mantém vivo alguém que está praticamente morto?

Programas de cuidados paliativos – opção à eutanásia, ao suicídio assistido e à distanásia?

Seriam os cuidados paliativos um caminho entre a eutanásia, o suicídio assistido e a distanásia? Uma possibilidade de operacionalização da ortotanásia? A morte na hora certa?

Pacientes gravemente enfermos que freqüentam programas de cuidados paliativos têm grande possibilidade de terem aliviados seus sintomas incapacitantes e sua dor e há grande preocupação da equipe em relação à qualidade de vida. Assim, pode-se dizer que o movimento de cuidados paliativos traz um grande progresso no que concerne aos cuidados no fim da vida, restituindo o bem estar global e a dignidade ao paciente gravemente enfermo, favorecendo a possibilidade de viver sua própria morte, um respeito por sua autonomia e não o abandonando à própria sorte.

Quando discutimos criteriosamente a morte com dignidade, temos de ficar alertas sobre como isto será entendido no futuro. Devemos lembrar que as intenções de Hitler foram consideradas como uma valorização da humanidade, e muitos se iludiram com as suas belas palavras. O que dificulta ainda mais a questão é que pessoas em estado crítico da doença, com perda de consciência, não conseguem participar da decisão sobre a sua própria vida. A humanização da morte não é o seu apressamento, nem o seu prolongamento indefinido. Se a discussão que se propõe é sobre o que seja morte com dignidade, o movimento de cuidados paliativos defende que seja a morte sem sofrimento, nem rápida, nem demorada demais.

A morte relacionada com quadros de demência como é o caso do mal de Alzheimer é considerada como ruim. Aí, uma grande indagação surge: é possível haver uma boa morte? Não se trata, porém, de normatizar o que seria a boa morte, enquadrando os pacientes num padrão.

O que pode ser esboçado, isto sim, é conhecer melhor as diversas facetas da significação da morte e alguns dos medos que a acompanham. Pois bem, entre os grandes temores do processo de morrer, na atualidade, há o de sofrer muito, ter dor insuportável, ver a degradação do corpo, ser dependente, sobrecarregar a família e deixar grandes ônus financeiros. Os programas de cuidados paliativos buscam amenizar estas questões, mas não as eliminam totalmente, em especial, quando a rede de apoio familiar e social do paciente se encontra reduzida. E, quando o paciente diz que gostaria de encerrar a vida, a equipe não abre o espaço para esta discussão, embora seja bem verdade que é fundamental que a pessoa possa falar sobre seu desejo de morrer, e a finalização dos assuntos pendentes. Entretanto, é importante enfatizar que escutar o desejo de morrer não significa atendê-lo, como já afirmado anteriormente. Os programas de cuidados paliativos não propõem eutanásia.

Enfim, restam algumas perguntas fundamentais: será que os programas de cuidados paliativos são a solução em todos os casos? Será que estão disponíveis para todos aqueles que deles necessitam? Na França, sim, por lei de 1999, que garante esse acesso. E nós perguntamos: quando isto acontecerá no Brasil?

Finalizando este tópico, e para demonstrar que a discussão está (e estará por muito tempo) em aberto, trago algumas críticas e ponderações sobre o movimento de cuidados paliativos, lançando mão de um artigo de Logue (1994).

A autora esboça uma crítica aos programas de cuidados paliativos, especialmente pelo fato de não abrirem espaço para a discussão sobre o direito de morrer. Embora reconhecendo que esses programas se preocupam com a qualidade de vida e bem estar dos pacientes, pergunta: será que são o melhor encaminhamento para todos os casos de doença grave? Mesmo havendo ênfase na questão da autonomia e controle do paciente, ela questiona: será que é de fato assim? Será que o fim da vida é sempre pleno, com descobertas, com possibilidade de contato com a transcendência – ou esta é uma visão idealizada da morte? Será que não há uma idealização da bela morte nos programas de cuidados paliativos?

A autora continua a expor suas críticas, apontando que os pacientes que participam de programas de cuidados paliativos são ultra selecionados. Muitos outros, com intenso sofrimento, nem chegam a ser atendidos. É um programa ideal para pacientes com câncer avançado; já os que têm AIDS em estágio adiantado, com múltiplos sintomas e quadros demenciais, correm o risco de não serem aceitos. Pacientes idosos também podem não participar, pois há dificuldades em cuidar de seus múltiplos sintomas, ficando mais difícil garantir uma boa qualidade de vida. Além disto, embora grandes avanços tenham sido obtidos no caso do controle da dor, muitos outros sintomas ainda não são cuidados de maneira efetiva, como, por exemplo, a fadiga e a solidão, só para citar alguns. Em 16% dos casos, infelizmente, não é possível sequer o controle total da dor. E mais: são muitas as seqüelas dos opiáceos: enfraquecimento, fadiga, dependência e perda de controle do corpo. A isso tudo, soma-se a sensação de ser uma sobrecarga para a família – estão constituídos os principais motivos arrolados para se desejar morrer.

A autora argumenta, ainda, que, embora os tratamentos para prolongamento da vida não ocorram em programas de cuidados paliativos, há alguns procedimentos para controle da dor que são agressivos, citando como exemplo as amputações. Estas últimas podem até ser necessárias para a contenção de um tumor, entretanto, são muito temidas e sentidas como piores do que a própria doença.

Os programas de cuidados paliativos não têm aparelhos para ressuscitamento, nem propõem os tratamentos heróicos das UTIs. Entretanto, não ligar o respirador ou desligá-lo nem sempre leva à morte. Segundo a autora, confirmando o que já foi dito, os programas de cuidados paliativos são muito importantes e ajudam na busca de uma boa qualidade de vida nos últimos dias, mas, de longe, não são a única resposta para a discussão sobre estas questões do fim da vida.

Finalizo com importante ponderação de Lépargneur (1999) que, embora enfatizando a importância do movimento de cuidados paliativos, afirma que, encerrar toda a polêmica sobre eutanásia com o desenvolvimento desses programas é muito simplista, pois é ingênuo acreditar que toda angústia de uma pessoa que pede para morrer esteja relacionada com o fato de ter sua dor não controlada. Propõe que o desejo de morrer possa ser discutido amplamente entre o paciente, familiares e equipe, e, se necessário, em caso de conflito, que grupos multidisciplinares de ética possam ser chamados a intervir.

Para encerrar, quero enfatizar que, embora o tema da morte ainda seja tabu, atualmente tem havido grande busca de discussão e reflexões sobre o tema, o que inclui, também, incremento de pesquisas. Assim, é cada vez mais importante discutir aquelas que envolvem pessoas no fim da vida e/ou enlutadas; é, necessário, portanto, abrir espaço para esta reflexão.

Cook (1995) traça um histórico sobre a questão do consentimento informado, trazendo os primeiros exemplos em que a pessoa é consultada sobre se quer ou não submeter-se a uma certa intervenção. Refere-se a um exemplo do século XIX, época em que as cirurgias eram feitas sem anestesia, envolvendo um sofrimento atroz, quando, em 1833, um homem com ferimento exposto na perna se colocou disponível para que observassem o que acontecia. Uma das situações que trouxe profundas discussões sobre a importância do consentimento informado é o que ficou conhecido como o desastre de Lübeck, em que um teste da vacina BCG foi aplicada em 100 crianças, sem que seus pais soubessem ou tivessem dado autorização; isto aconteceu em 1930, e morreram 75 crianças.

Segundo estes autores, houve um grande desenvolvimento destes procedimentos depois que foram divulgadas as atrocidades cometidas na guerra, com as experiências nazistas. As denúncias de Beecher, na Inglaterra e Estados Unidos, envolvendo a questão do uso do placebo: o uso de células cancerosas em crianças com deficiência mental para testar a imunidade em relação ao câncer vieram à tona.

Cook (1995) propôs uma séria revisão de diretrizes para pesquisa, enfatizando a importância do consentimento informado e da preocupação em não aumentar o sofrimento dos pesquisados, pois já era muito grande.

Mais ou menos na mesma época, o Conselho Nacional de Saúde (Brasil, 1996) posicionou-se, arrolando os seguintes princípios norteadores dos estudos que envolvem seres humanos:

  • Beneficência: maximização dos bons resultados para a ciência, a humanidade e diminuição ou evitamento de riscos.
  • Respeito: proteção à autonomia da pessoa, honrando a possibilidade da escolha em participar ou não da pesquisa, preocupando-se com o bem estar dos participantes.
  • Justiça: distribuição eqüitativa dos benefícios e a segurança do que é razoável, não explorando as pessoas e garantindo cuidadosos procedimentos de pesquisa.

O consentimento informado envolve os seguintes aspectos:

  • Os participantes devem ter aceitado participar da pesquisa voluntariamente, com base nas informações recebidas.
  • Podem se retirar da pesquisa quando desejarem.
  • Todo o risco desnecessário deve ser eliminado, incluindo-se os procedimentos físicos invasivos, os psicológicos e os sociais.
  • Os benefícios para o indivíduo e para a sociedade devem ultrapassar os riscos.
  • A pesquisa deve ser conduzida por pessoas qualificadas.

Todos esses ângulos e possibilidades devem ser analisados cuidadosamente, em especial quando se pensa em pessoas que estão sob grande sofrimento, como pacientes gravemente enfermos, familiares e profissionais de saúde. É necessário um comitê de ética independente do pesquisador.

Uma questão polêmica que surge é sobre a utilização de tratamentos ainda não comprovados e que precisam ser testados, sem colocar em risco a vida das pessoas. No consentimento em participar deste tipo de pesquisas estão envolvidas: decisão voluntária, qualidade da informação dada e sua compreensão.

A decisão deve ser voluntária, sem coerção, sendo necessário verificar se não está havendo nem mesmo alguma pressão sutil. Esta questão fica ainda mais evidente, se as pesquisas são realizadas em hospitais, onde os pacientes podem temer que sua não aceitação, desagradando médicos e cuidadores, implique em prejuízo do tratamento. Por esta razão, há um item fundamental no consentimento informado: a garantia de que os não participantes não sofrerão represálias nem alteração nos seus tratamentos, pela recusa em participar de protocolos de pesquisa, e, para os participantes, em caso de abandono.

Por outro lado, o abandono da pesquisa, a qualquer momento, pode ser uma variável muito complicada para o pesquisador, por ter sua amostra diminuída, dificultando o tratamento dos dados. Mas, devem ser sempre considerados os riscos e benefícios de cada participante.

O princípio da confidencialidade garante a privacidade dos sujeitos com a salvaguarda sobre que tipo de informações serão divulgadas. Há casos em que esta privacidade não pode ser garantida.

Para que o consentimento seja dado com propriedade é essencial que as informações sejam completas e precisas. A utilização de jargão deve ser evitada, pois, além de dificultar a compreensão, pode propiciar a ocorrência de confusão e mal entendidos, aumentando o medo e a ansiedade.

Outras questões que se colocam são: pessoas em intenso sofrimento têm a capacidade de exercer sua vontade (ou ter clareza sobre ela) de participar ou não de um protocolo de pesquisa? No caso de não poder dar o consentimento, alguém pode fazer isso por ela? São questões difíceis de responder, e que exigem discussões em comitês de ética, buscando-se as especificidades de cada situação.

E aqui finalizo estas reflexões sobre a bioética nas questões de vida e morte, porém, longe de trazer respostas e, sim, com a certeza de que este campo continua aberto, a cada dia com novas questões a serem debatidas, pois envolvem conflitos, dado que vários pontos de vista são possíveis, demandando constante aprofundamento.

Recebido em 19.11.2002

Aceito em 17.02.20031

Movimento de cuidados a pacientes gravemente enfermos, buscando alívio e controle de sintomas.2

Hemlock significa cicuta, poderoso veneno usado por Sócrates na hora de sua morte.

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1 Movimento de cuidados a pacientes gravemente enfermos, buscando alívio e controle de sintomas. 2 Hemlock significa cicuta, poderoso veneno usado por Sócrates na hora de sua morte.